quinta-feira, 1 de julho de 2021

TERRA DE NINGUÉM

                                                                                                           Isaac Warden Lewis

 

Eu vou partir para a terra de ninguém.

A terra de ninguém é um lugar onde ninguém possui terra.

A terra é de todos e é cultivada para produzir o alimento de todos.

O alimento é dividido entre todos os habitantes.

Todos os habitantes trabalham um pouco para o bem-estar de todos.

O bem-estar de todos é importante na terra de ninguém.

Porque o direito de cada pessoa é igual ao direito de todas as pessoas.

Todos vivem livremente sem explorar o trabalho dos outros.

O trabalho dos outros torna possível a minha liberdade.

Assim como o meu trabalho torna possível a liberdade dos outros.

Como pode uma pessoa ser livre, se o seu trabalho é explorado

                                                            para o bem-estar de poucos?

Eu vou partir para a terra de ninguém.

A terra de ninguém é um lugar onde a propriedade privada foi abolida.

 

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Do livro “Sentimento e consciência”

quarta-feira, 30 de junho de 2021

A ILHA DAS ARANHAS

 

                                                                    Lucilene Gomes Lima 


Era uma vez uma ilha cujas condições geográficas possibilitavam que as aranhas fossem abundantes. Nessa ilha havia várias canoas motorizadas, várias motocicletas, alguns carros.

A ilha tinha algumas igrejas, um complexo turístico, um clube futebolístico, uma quadra esportiva, um hospital, algumas escolas. Porém, apesar de ter escolas, não tinha uma biblioteca. Nas casas dos habitantes da ilha também não havia livros, mas todas as casas tinham um aparelho de tv e quase todos os habitantes da ilha tinham um telefone celular. Os habitantes da ilha viviam praticamente da mesma forma que os animais que ali existiam. Comiam, bebiam, reproduziam-se e, principalmente, divertiam-se.

Os primeiros habitantes da ilha conheciam o lugar, os animais, as plantas, os lagos, os rios. Por muitos séculos, esses conhecimentos empíricos foram transmitidos a várias gerações. Mas, a nova geração de descendentes que agora se locomovia motorizadamente e utilizava aparelhos modernos para se distrair, desconhecia tudo isso. Não se dedicava em saber o nome dos peixes, dos pássaros, não conhecia as características e as propriedades das plantas. Esses novos descendentes não conheciam o trabalho artesanal, manual, viviam de eflúvios de fora, sem se preocuparem como se originava aquilo que absorviam, o que realmente era.

A ilha das aranhas, como os animais que lhe davam o nome, vivia somente para o interior de sua teia, recebia as coisas de fora, mas nada produzia para fora de sua teia. Era uma ilha no sentido estrito, isolada, cercada pelas águas.

Um dia, a ilha das aranhas foi inundada e submergiu. A sociedade que ali então vivia, sem raízes, solta no ar como as teias das aranhas, desapareceu sem deixar marcas, sem  dar contributo para a humanidade.


terça-feira, 15 de junho de 2021

IDENTIDADE SOCIAL E CULTURAL EM PAÍS COLONIZADO

                                                                                                                    Isaac Warden Lewis*

 

Vamos aceitar o desafio de intelectuais judeus e judias:“É preciso chamar as coisas pelo nome. É chegada a hora, de nós, intelectuais, livres pensadores judeus e judias progressistas, descendentes das maiores vítimas do regime nazista, posicionarmos, como atores sociais, diante do debate público,  sobre o atual momento nacional.. É perceptível que o governo encabeçado por Jair Bolsonaro tem forte inclinação nazista e fascista [....]”...

Desde a diáspora imposta à população judaica pelo imperador de Roma no ano 70 d. C., os judeus e as judias testemunharam o desenvolvimento de instituições e nações europeias que os marginalizaram, os discriminaram e os massacraram impiedosamente.  Tanto indivíduos quanto comunidades judaicas sofreram perseguições na maioria dos países ocidentais e naqueles que seguiram a cultura ocidental. Apesar disso, descobertas, conhecimentos científicos e filosóficos foram produzidos por judeus e judias. O desenvolvimento econômico das nações europeias contou com a participação de judeus, principalmente, na Holanda, Inglaterra, França. Esse desenvolvimento foi construído através da exploração de nativos de todas as partes do mundo, incluindo judeus operários ou camponeses por capitalistas europeus, norte-americanos com apoio incondicional de capitalistas judeus. Sabemos também que o regime nazista (regime pró-capitalista, diga-se de passagem) contou com apoio incondicional de judeus capitalistas. Passados mais de dois anos da eleição de Jair Bolsonaro, a hora de manifestação dos intelectuais judeus e judias do Brasil parece um pouco tardia, pois há mais de quinhentos anos que as classes privilegiadas portuguesas e as classes favorecidas luso-brasileiras administraram o território brasileiro, cometendo genocídios através de forças de segurança, exploração violenta dos nativos da América e da África, com apoio financeiro de capitalistas europeus e judeus. Por que os intelectuais judeus e judias demoraram a se manifestar? Entendemos essa demora por parte dos intelectuais luso-brasileiros como parte da hipocrisia cultural cultivada pelos descendentes das classes favorecidas desse país. O que explicaria a demora dos intelectuais judeus e judias “diante do atual momento nacional” que, afinal, não é tão atual? Além disso, os intelectuais judeus e judias deveriam saber que o governo encabeçado por Jair Bolsonaro não se orienta por ideias e princípios nazistas e fascistas.. Esses princípios surgiram, primeiramente, como reação à dominação imperialista, capitalista inglesa, francesa e norte-americana sobre todos os países e povos do mundo. O Brasil não possui e nunca possuiu uma burguesia moderna. Então, os políticos e as classes favorecidas nunca pensaram em reagir contra ou competir com os principais países capitalistas e imperialistas europeus ou norte-americanos. Todos os princípios ditos democráticos, socialistas, comunistas, nazistas ou fascistas sempre sofreram desvirtuamentos levianos no Brasil devido à pobreza intelectual de seus ideólogos. Talvez isso explique a participação e a colaboração de descendentes de judeus, africanos, japoneses, italianos e portugueses no governo de mentirinha chefiado por Jair Bolsonaro.

Se “é preciso chamar as coisas pelo nome”, deveremos chamar as ideias e os princípios confusos seguidos pelo presidente Bolsonaro, pelos militares, ministros, policiais e outros seguidores ignorantes que o apoiam de princípios terroristas, tais como os defendidos e praticados pelos grupos terroristas em várias partes do mundo, os quais cometeram e cometem crimes arbitrariamente em nome de preconceitos religiosos, surgidos na pré-história e ainda mantidos pelos semitas (árabes e judeus) e de seus vis interesses. O atentado sofrido por MalalaYousafzai no Paquistão em 9 de outubro de 2012 e o assassinato da vereadora Marielle Franco no Brasil no dia 14 de março de 2018 demonstram a pertinência dos nomes que devemos dar às ações praticadas pelo grupo político que dirige o país no momento atual. Esperamos que os descendentes das maiores vítimas do regime nazista sejam mais coerentes com a história de judeus e judias progressistas que lutaram e lutam coerentemente por uma sociedade justa para todos os seres humanos.

 

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segunda-feira, 14 de junho de 2021

O FIM DE UM CASAMENTO

                                                                                    Isaac Warden Lewis

I

Kátia Morais e Antônio Gaspar conheceram-seem um baile há doze anos... Eles gostavam de dançar nos finais de semana. Kátia Morais trabalhava como telefonista no setor de Cobrança de uma grande loja no Rio deJaneiro. AntônioGaspar era vendedor numa loja de móveis numa outra loja. Além de dançar, Kátia Morais apreciava as novelas e as fofocas soBre os atores e as atrizes dessas novelas.. Além de dançar, Antõnio Gaspar gostava de acompanhar os jogos de futebol de seu time preferido na televisão ou no estádio do Maracanã.  Kátia Morais e Antônio Gaspar moravam em um bairro da Baixada Fluminense. Estudaram até o ensino médio e começaram a trabalhar. Não aprenderam muita coisa na escola; Kátia Morais estudou o magistério em nível médio, porém parecia saber menos do que sua mâe quefizera somente o ensino primário. Tal como a mãe, Kátia Morais acreditava em forças místicas que governariam os destinos do universo, da sociedade e dos seres humanos. Ela sempre apelava para um ser divino para conseguir algum benefício ou para agradecer algum milagre ou para fazer alguma apelação. De modo geral, ela nunca refletira sobre essas palavras ou  as ideias que proferia automaticamente como costumava fazer a maioria das pessoas analfabetas ou ignorantes. Antônio Gaspar também parecia não ter aprendido muita coisa na escola. Ele gostava de passar várias horas com seus amigos, bebericando cerveja, conversando sobre o nada, a vida alheia ou os jogos do campeonato de futebol do Rio de Janeiro e do Brasil. Kátia Morais e Antônio Gaspar se correspondiam, nunca se preocuparam com os problemas políticos, sociais, econômicos da sociedade em que viviam. Não conheciam a verdadeira história do Brasil ou da religião que diziam professar..Diziam-se cristãos e nunca se perguntaram quem foi o indivíduo real chamado Jesus Cristo”. Tudo o que sabiam sobre tal personagem aprenderam nas conversas dos parentes e dos vizinhos que também falavam frases, como: “Se deus quiser, hoje não vai chover” ou “Graças a deus, meu filho ficou bom da tosse” ou “Meus deus, a polícia matou um menino na favela com sete tiros” e nunca se preocuparam para saber do que ou o que realmente estavam falando. Souberam que as autoridades policiais e políticas colonizadas declararam que a morte do menino fora uma fatalidade. Kátia Morais lembrou-se que sua avé morrera em uma clínica e ninguém nunca soube se ela foi realmente bem medicada ou se foi morta por negligência. Seus parentes louvavam os planos de saúde e de previdência de seus idosos, mas nunca tiveram acesso às dependências das clínicas e dos hospitais para obterem informações sobre o que os médicos e enfermeiros estavam realizando com seus pacientes. Estranharam as faturas que indicavam tratamentos clínicos e remédios receitados a sua avó. O diretor e dono da clínica informou aos parentes que sua avó fora bem tratada e que sua morte fora uma fatalidade. Kátia Morais começou a imaginar que o sistema educacional brasileiro (civil ou militar) formava “especialistas em fatalidades”.

Tal como os pais e vizinhos, descendentes de africanos, Kátia Morais e Antônio Gaspar acreditavam que o Brasil era um país democrático, mas nunca estudaram a origem da ideia de “democracia” ou sobre a história da revolução francesa ocorrida em 1789. Apesar dessa ignorância, consideravam-se felizes.. Acreditavam que poderiam continuar felizes, se casassem. Kátia Morais queria casar--se na igreja com véu e grinalda e convidar suas amigas. Antônio Gaspar queria fazer uma grande festa e convidar seus amigos para beberem livremente para comemorar o maior evento de sua vida.

 

II

 

Passaram-se dez anos de casados. Kátia Morais e Antônio Gaspar discutiram muito, fizeram a paz, xingaram-se mutuamente inúmeras vezes.. Ele a chamava de vadia, vagabunda, galinha, puta. Ela retrucava, dizia que ele era vagabundo, vadio, sem vergonha, filho da puta, machista e imprestável. Ele e ela sentiam profundamente os golpes dessas palavras de baixo calão, porém sobreviveram para celebrar os dez anos de casados do mesmo modo que outros casais da sociedade brasileira, tanto das classes desfavorecidas quanto os das classes favorecidas, tanto os das favelas quanto os dos ditos luxuosos condomínios das zonas privilegiadas... Afinal de contas, a educação brasileira, latifundiária e escravista, moldou todos os cidadãos nascidos numa sociedade colonizada que se jacta de ser ocidental, católica, cristã, civilizada, fundada segundo as normas medievais das Ordenações das cortes portuguesas do século XVI.

Três meses depois do grande evento da festa de dez anos de casados, Antônio Gaspar chegou em casa de madrugada. Bêbado, trôpego, dirigiu-se para o quarto para dormir. Nessa noite, a filha do casal, Catarina, não estava em casa. Ela fora dormir na casa da avó, que ficava numa outra rua do mesmo bairro. Kátia Morais decidiu entrar no quarto para xingar fundamente seu marido por chegar em casa de madrugada. Mal ela começara os xingamentos, ele sentou-se e pronunciou pouquíssimas e inéditas palavras que ela jamais ouvira dele:

- O que você quer, sua feia, horrorosa? Saia daqui, suma da minha frente”. Repetiu as palavras fatais: “Sua feia, horrorosa”.

Kátia Morais ficou chocada, atordoada.. Não conseguiu articular uma palavra para se defender ou atacar seu marido. De repente, ela começou a chorar, a gritar, a urrar horrivelmente, saiu do quarto do casal, entrou no quarto da filha, gritou desesperadamente, chorou, urrou por vários minutos e parecia que não iria parar nunca. Chorou e urrou até as seis horas da manhã. Em seu quarto, Antônio Gaspar não entendia o que estava acontecendo com a sua esposa e adormeceu como se não tivesse feito mal algum a sua mulher.. Por fim, Kátia Morais parou de chorar, levantou-se, dirigiu-se ao quarto do casal. Pegou suas roupas, colocou-as em uma sacola, dirigiu-se à porta, abriu-a, saiu de casa e nunca mais foi vista naquele bairro.

 

                                             F I M

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Maio de 2021

 

domingo, 2 de maio de 2021

A REVOLTA DE MESTRES E ESTUDANTES

                                                                                                          Isaac Warden Lewis

 

Era o ano de mil novecentos e oitenta e ... , Marisa Campelo e seu irmão, Lourival Campelo, saíram cedo de casa. Ela era professora primária  e ele começaria sua atividade como policial na cidade de Manaus. Marisa Campelo passara no Sindicato dos Professores para se reunir com colegas professoras e professores que iriam organizar piquete em frente de escolas para impedir a entrada de alunos e professores. Lourival Campelo dirigiu-se ao Quartel da Polícia. Seu plantão começaria às seis horas da manhã. Ao chegar ao quartel, ele fora informado que todos os soldados deveriam participar de uma reunião que seria coordenada pelo sargento Jorge Feliciano. Às seis horas, o soldado Campelo dirigiu-se ao pátio, onde outros soldados aguardavam a chegada do sargento Feliciano. Ao chegar, o sargento cumprimentou os soldados e passou a transmitir as ordens do dia. Sob seu comando, eles deveriam seguir para algumas escolas para determinar que os professores e alunos suspendessem seu movimento de revolta contra as autoridades constituídas e caso os revoltosos recusassem obedecer as determinações, os policiais deveriam atacá-los com seus cassetetes e obrigá-los a se dispersarem e caso alguns baderneiros, que se dizem professores, reagissem, os policiais deveriam usar suas armas para prendê-los. O sargento encerrou informando que nenhuma passeata dos professores deveria se aproximar do Palácio do Governo ou do Quartel da Polícia. Por fim, disse que essas eram as ordens dadas pelo Coronel Teixeira, comandante daquele quartel. Pediu que todo soldado cumprisse as ordens com bravura e valentia. A seguir, o sargento dividiu os soldados em grupos, designando um deles para o comando e informando as ruas e as escolas para onde cada grupo deveria seguir. Ele dirigiu-se ao soldado Campelo, designando-o para comandar um grupo de soldados e informando a rua e a escola para onde ele deveria seguir com sua tropa. O soldado Campelo solicitou permissão ao sargento para falar. Ele declarou que não iria cumprir a ordem de acossar, atacar e combater professores e alunos que estavam lutando por melhores salários, melhores condições de trabalho e melhores condições de vida. O sargento Feliciano ficou perplexo com a audácia de um soldado que começava sua atividade policial naquele momento e disse:

  “Então, temos um soldado que quer nos ensinar o nosso ofício já no primeiro dia de sua apresentação nesse quartel. Isso é bem típico para um filho de um comunista que não respeita as leis de nossa sociedade. Afinal de contas, o que o senhor pretende, soldado Campelo? O senhor quer que a revolta dos vagabundos comunistas comece nos quartéis, é isso? Pois, eu lhe dei uma ordem e você vai cumpri-la, como determinam as normas dessa corporação, está bem claro, soldado Campelo?”

 “Senhor, eu não vou cumprir uma ordem para atacar, agredir, combater a população desse país. Eu pressuponho que o senhor sabe que, no período colonial, a Força Policial atendia os interesses das classes favorecidas nacionais e das classes privilegiadas internacionais e os policiais brasileiros e luso-brasileiros eram meros capitães de mato que perseguiam os nativos da América, África e da Ásia Penso que o papel da Polícia não é exatamente esse.”

 “Qual é, soldado Campelo, o papel da Polícia para o senhor? Isso está ficando muito interessante. Agora temos um soldado que quer ensinar seus superiores qual é o verdadeiro papel da Polícia. Vamos encerrar esse lero-lero. O senhor vai ou não vai cumprir as ordens que todo mundo recebeu?

 “Eu não sou todo mundo. Eu me nego a cumprir uma ordem para combater os meus concidadãos em nome da lei e da ordem”.

– “Muito bem, soldado Campelo. O senhor ficará preso nesse quartel por se recusar a cumprir as ordens que recebeu de seus superiores.”

A seguir, o sargento Feliciano virou-se para o grupo que seria comandado por Lourival Campelo e designou outro soldado para comandar o grupo. Depois, ele comandou que todos os grupos partissem para a sua missão. Lourival Campelo permaneceu  no quartel, refletindo sobre sua atitude. Lembrou que seu pai, agora aposentado, comandara muitas greves de sua categoria profissional. Lembrou que sua irmã estava em alguma escola continuando a luta por melhores condições de vida para todos os seres humanos. Ele levantou-se, saiu do quartel, foi a uma papelaria, comprou papel e envelope. Escreveu sua carta de demissão de soldado de polícia, entregou-a na Seção de Protocolo da Secretaria de Segurança e foi para casa, sentindo-se bem.  

Naquele dia, as professoras, os professores, os alunos e as alunas fizeram uma passeata pela cidade, dirigiram-se ao Palácio do Governo. Um batalhão da Polícia esperava os grevistas. De repente, ouviu-se um tiro. Um tenente da Polícia atirou para o alto em sinal de alerta. Alguns policiais usaram seus cassetetes, batendo e surrando covardemente jornalistas, professores, professoras, alunos e alunas. Alguns grevistas conseguiram adentrar ao Palácio do Governo. O governador, acompanhado de seguranças, ordenou que os policiais se retirassem para seus quartéis. Concordou em receber uma Comissão constituída de mestres, estudantes e jornalistas. Os grevistas permaneceram em frente do Palácio do Governo. Depois de uma hora, o governador e a Comissão dirigiram-se aos grevistas. O governador anunciou que concordava com a maioria dos itens da pauta de reivindicação dos mestres e dos estudantes e que continuaria a dialogar com os grevistas para o bem da educação. Os grevistas se confraternizaram  e se retiraram para suas casas. O sargento Feliciano tentou processar o soldado Campelo, porém a Secretaria de Segurança lhe informou que Lourival Campelo não poderia ser processado porque não era membro da Corporação Policial.

 

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Abril 2021.

quinta-feira, 1 de abril de 2021

AS MENTIRAS INSTITUCIONAIS DE UM PAÍS COLONIZADO

                                                                            Isaac Warden Lewis

Vamos discordar do Senhor Luiz Inácio Lula da Silva quando ele afirmou que foi vítima da maior mentira jurídica em mais de quinhentos anos da história do Brasil. Infelizmente, o ex-presidente demonstra não conhecer a verdadeira história do Brasil. Neste país, tudo sempre foi uma grande mentira, tanto no período colonial quanto no período imperial e no republicano. 

A primeira grande mentira foi contada pelos portugueses e pelos luso-brasileiros que diziam ser “descobridores, conquistadores, desbravadores” das terras brasileiras, fingindo não saber da existência de inúmeros grupos de seres humanos que habitavam essas terras há milhares de anos. A outra grande mentira foi se assumirem como proprietários dessas terras, impedindo os nativos de usufruírem delas como já faziam há milhares de anos. A outra grande mentira, aceita como verdade, foram as discriminações e preconceitos emitidos nas bulas papais e nas ordenações elaboradas pelos reis de Portugal contra os povos que habitavam a Ásia, África e América. A outra grande mentira foi os colonizadores, os colonos portugueses e luso-brasileiros considerarem os nativos da América, África e Ásia como bárbaros e selvagens, enquanto assumiam o direito legal, contido nas bulas e ordenações, de praticarem barbáries e selvagerias contra os nativos dos continentes invadidos. A outra grande mentira foi afirmarem aos nativos desses continentes que os europeus, supostamente cristãos e civilizados, aportaram a esses continentes para ajudá-los a se tornarem “civilizados e cristãos”.

A outra grande mentira foi a chegada de padres de várias ordens religiosas, que se diziam “homens santos”, para ensinarem aos nativos o “amor de Cristo”, juntamente com os colonos e colonizadores, armados com bacamartes e canhões, para trucidarem os nativos, caso não aceitassem os preceitos da “civilização europeia” e o “amor de Cristo”. Nos períodos imperial e republicano, o exército brasileiro continuou praticando crimes e genocídios contra os indígenas, os afro-brasileiros, os cafuzos, os mulatos, os brancos como se isso fosse natural.  E para terminar essa longa lista de mentiras institucionais, o poder judiciário, o poder político, o poder policial, o poder militar sempre agiram parcialmente em favor das classes favorecidas nacionais e das classes privilegiadas internacionais e sempre em desfavor dos segmentos das classes desfavorecidas.

É muito difícil, para nós, brasileiros, indígenas, afro-brasileiros, nos convencermos que só em 2018, o senhor Luiz Inácio Lula da Silva tenha sido vítima da maior mentira do poder judiciário desde a invenção desse país, um estado burocrático de direito, levando-se em conta que os membros privilegiados de todos os poderes mencionados acima pertenceram ou pertencem ou estão ligados aos elementos que invadiram e escravizaram nativos da América e da África violentamente em nome da civilização e de um suposto indivíduo que teria vivido na Judeia. O governo do Partido dos Trabalhadores nada contribuiu para combater as maiores mentiras que orientaram  as práticas de injustiças e as desigualdades sofridas pelas classes desfavorecidas desse país, haja vista que os direitos das trabalhadoras domésticas só foram promulgados no Brasil graças às pressões de órgãos internacionais porque até o século XXI elas trabalhavam e viviam como escravas domésticas de muitas senhoras que se diziam livres e feministas.  

 

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segunda-feira, 1 de março de 2021

ENCONTRO E DESENCONTRO

                                                                                    Isaac Warden Lewis

Adriana Silva e José Santos conheceram-se numa escola secundária. Tornaram-se colegas, amigos, namorados, noivos, cônjuges, nessa sequência. Depois do ensino secundário, Adriana e José decidiram cursar o magistério. Pretendiam ser professores primários. Adriana levou a sério o ato de estudar, José, nem tanto. No primeiro ano, ele resolveu abandonar o curso de magistério para fazer exames para a polícia. Queria ser policial. Adriana continuou seus estudos. Formou-se professora. Fez concurso para professora primária do estado. Passou e foi designada para lecionar numa escola de um bairro da periferia. Era o que ela queria. José passou nos exames para polícia. Tornou-se soldado, fez outros exames e tornou-se cabo. Cabo Santos. Ele estava feliz. Dizia que era uma autoridade. Propôs casamento à Adriana. Os dois pareciam felizes. Nem tanto. Três anos de casados, a professora Adriana Silva e o cabo José Santos tinham duas crianças, um menino – Josué, e uma menina – Josefina. Adriana cuidava da casa, dos filhos e de seus alunos prazerosamente, mas, há algum tempo, ela vivia intrigada e inquieta. Não entendia como o seu marido conseguia acumular bens e dinheiro com o seu salário de policial. Ele lhe dizia que o coronel Meira era seu amigo de longa data, pois sua mãe trabalhava para a mãe do coronel Meira e, por isso, este sempre o ajudava. Adriana achou tudo isso estranho e tentou compreender a relação de seu marido com o coronel Meira.

Adriana Silva nasceu na Paraíba. Ela tinha dois irmãos e duas irmãs. A família – pai, mãe, irmãos e irmãs – migraram para o Rio de Janeiro quando Adriana tinha sete anos. Ela era a caçula. Ela e seus irmãos eram mulatos claros e mulatos escuros, fortes e determinados. Tinham sentido de justiça e orgulhavam-se de sua afro-descendência. Esforçavam-se para conseguir suas coisas e amavam as coisas simples da vida. Ambicionavam somente o que era necessário para viver bem, sem sobressaltos ou vaidosas preocupações. José Santos nasceu no Rio de Janeiro. Considerava essa a melhor cidade do mundo, embora não a conhecesse minimamente. Ignorava os problemas e as condições que a tornavam uma cidade corrupta e inviável para a maioria de seus habitantes. Tinha um irmão – Paulo Santos, que detestava não só o Rio de Janeiro como os cariocas que gostavam de se exibir nas praias e nas festas. Vivia para ler e pensar, não necessariamente nessa ordem. Sua mãe, Marlene Santos, era empregada doméstica. Ela trabalhava para a dona Glória Meira, esposa do doutor Lúcio Meira, despachante remediado. Dona Glória era baixa, gorda, tinha cabelos longos, esticados e alourados artificialmente. Ela dizia ser morena clara. Parecia se orgulhar de sua imagem. Também nasceu no Rio de Janeiro. Marlene Santos considerava dona Glória uma pessoa muito inteligente. Para ela, toda pessoa rica ou remediada era boa e inteligente. Ela dizia que o marido da dona Glória, Lúcio Meira, e seu filho, Luiz Meira, eram inteligentes. Ela sempre apregoava que a família Meira era maravilhosa.

Adriana Silva ficou muito decepcionada quando conheceu a mãe de José. Ela considerava Marlene Santos mais uma lacaia dos Meiras do que uma empregada doméstica. Ela não podia entender como, em pleno século XX, depois da revolução francesa e da abolição da escravidão e da servidão em todo mundo, ainda existiam pessoas como a Marlene Santos. O cabo Santos também não vivia muito feliz. Ele pressentia que sua esposa não apreciava o seu sucesso como policial. Ele relatou a ela que ia estudar para se tornar sargento e que o coronel Meira o incentivava. Adriana sabia que ele decidiu ser policial por sugestão da mãe do coronel Meira. Esta sugeriu à mãe do José que este abandonasse o curso de magistério e seguisse uma carreira mais profícua, mais lucrativa, como a da polícia. Adriana lembrou-se de seus professores do ensino secundário. Eles eram pobres, porém sábios. Ela e seus colegas aprenderam muito sobre honradez, dignidade com seus professores. Um velho professor de latim ensinou, com simplicidade, a turma a traduzir textos latinos, a ler e gostar de autores latinos e gregos. O professor de História, sempre com a mesma roupa surrada, retirava fatos escondidos nos escaninhos e ensinava quem  foi o papa Alexandre Borgia que dividiu as terras a serem descobertas entre os espanhóis e portugueses, terras ocupadas pelos índios. Um papa corrupto que seria capaz de pregar novamente Jesus Cristo na cruz e vender o próprio deus para o diabo. Além de ensinar fatos históricos exigidos em concursos e exames, esclareceu sobre a verdadeira personalidade de Cristóvão Colombo, dos colonizadores portugueses que se diziam “descobridores do Brasil”. Lembou-se do professor de literatura que sempre se referia à América Latina como América Latrina. A maioria dos estudantes aprendeu muito com esses professores. Até os professores de matemática ensinavam conteúdos de história, filosofia ou de linguagem. Para esses professores, a reflexão sobre as condições de vida na sociedade humana era mais importante do que as preocupações com os jogos do campeonato de futebol ou as viagens interplanetárias. Parece que o José nada aprendeu. Ele não percebeu que as aulas desses professores ensinavam sobre as desigualdades, as injustiças e as misérias no Brasil. Ele insiste em ignorar que a polícia, a justiça, o governo e os políticos vivem e sobrevivem de corrupção desde que os colonizadores portugueses chegaram a essa cidade, trazendo a religião do amor de Cristo e armas para atirarem em quem não aceitasse incondicionalmente tal amor. Ela concluiu que tudo continua do mesmo jeito no Brasil de hoje.   

Adriana soube, pelo noticiário, que o batalhão de polícia invadiu a comunidade da periferia, cometeu arbitrariedades contra a população pobre, trabalhadores, trabalhadoras, jovens, crianças, atirou indiscriminadamente , matando pessoas desarmadas. Tanto o coronel Meira quanto o cabo Santos foram detidos, acusados de atirarem com suas armas.  Adriana imaginou que seu marido cometia crimes graves, pois ele tinha duas armas. Uma era da corporação, a outra tinha numeração raspada. Há muito, ela estranhava o comportamento de seu marido. Toda a vez que ele discutia com ela parecia estar bêbado ou drogado. Ela decidiu abandonar o marido. Foi morar com os seus familiares, os quais, para ela, eram pessoas simples e normais.

O cabo José Santos era suspeito de assassinar um colega policial que não concordava com as suas abordagens discriminatórias contra pessoas pobres da periferia. Era acusado de atirar contra moradores de rua, camponeses sem terra e de surrar uma prostituta. Apesar disso, continuou atuando como policial, pois todos os inquéritos policiais ou administrativos foram estranhamente arquivados. Depois de seis dias de detenção, o cabo José Santos foi libertado mais uma vez. Foi para casa. Não encontrou Adriana e nem as crianças. Sua esposa deixara-lhe um bilhete, comunicando-lhe que queria separar-se dele e que iria viver com sua família, com o Josué e a Josefina, desejava-lhe muitas felicidades como sargento da polícia. José Santos pensou em reagir, em ameaçar sua mulher, forçá-la a voltar para casa. Depois, imaginou que a esposa já tinha conseguido uma medida protetiva. Depois de muito refletir, percebeu que Adriana não precisava de medida protetiva. O pai, os irmãos e as irmãs de Adriana eram sua medida protetiva.

 

Manaus, fevereiro, 2021.

 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A CANOA DE LUTO


                                                                                                 Lucilene Gomes Lima

Quando o SARS-CoV 2 começou a grassar pelo mundo, ouvi de um habitante de Manaus, capital do Amazonas, que aqui ele não se criava. Há quase um ano tem-se comprovado que isso era um engano. O vírus atingiu Manaus e o Amazonas como um todo. Chegou à ilha de Saracá ou Silves, como é mais comumente conhecida. A pandemia do SARS-Cov 2 acentuou indisfarçáveis pontos problemáticos do sistema capitalista - a superpopulação concentrada nos grandes centros urbanos, a alimentação de má qualidade, o mau gerenciamento dos recursos físicos e humanos no sistema de saúde, a desigualdade social.

A pequena vila de Silves não pode incluir-se em todas essas características. A ideia de cidade é muito precária e incipiente. Os seus habitantes, e neles se incluem os galináceos, os cães e as aves de rapina, como os urubus, são indiferentes ao modo de vida civilizacional humano. Os cães vivem a dormir sossegados nas ruas porque ignoram o tráfego de veículos, que são poucos.  Os galináceos ciscam à vontade pelos quintais, não têm sua liberdade tolhida e nem são o prato principal dos habitantes humanos, que ainda podem se alimentar de peixe por eles mesmos pescados, apesar de, às vezes, comerem a comida ruim, embutida, enlatada, congelada da cidade. A divisão dos terrenos em Silves não obedece à geometria triangular dos terrenos das capitais urbanas, os habitantes talvez ignorem o que seja propriedade privada. A maioria dos terrenos não tem muros que separem uma casa de outra ou portões que estabeleçam aos estranhos a privacidade dos moradores, quase todos os moradores se conhecem ou são aparentados. Não chegou à ilha a violência, como ela se apresenta nos grandes contextos urbanos, apesar de ter chegado o barato dos entorpecentes. Os modismos de massa e a alienação chegaram com a televisão. A esperança não vem do lago Saracá vem, parafraseando uma canção, das antenas de tv. “A arte de viver da fé. Só não se sabe fé em quê”.

Todos os dias os habitantes da ilha de Saracá cumprem os mesmos rituais: pescam, nadam e alguns brincam na praia reduzida do período de enchente. Um dia, porém, desses anos pandêmicos de 2020/21, a prainha ficou deserta, sem risos, vozerio de seus frenquentadores esparsos. Na prainha só restou uma canoa sem piloto, sem aquele que lhe dava função, uma das vidas ceifadas pelo mal. Uma canoa vazia, de luto, como todo o Amazonas pego de surpresa com a pandemia, mas ainda brincando com a morte.


A civilização, nos termos em que a engendra o corrupto sistema capitalista, chega de alguma forma ao vasto Amazonas, com a política rasteira de período eleitoral, com a catequese cultural representada nas estátuas de santos que ornamentam as praças das vilas amazônicas, com a máquina pública apadrinhada, com a discrepância entre a estrutura física administrativa e o serviço público precário. A civilização traz também os males globais. É uma evidência histórica que os vírus sempre existiram entre os seres humanos, mas é falso concluir que as epidemias são naturais. Uma pandemia é consequência dos gradativos processos coloniais humanos. Como afirma Alfred W. Crosby, em seu livro Imperialismo ecológico: “[...] o maior desastre demográfico do mundo foi iniciado por Colombo, Cook e outros navegadores [...]” (2011, p. 218). A pandemia é de complexo controle no mundo globalizado à medida que já não há mais lugar isolado.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

CRÔNICA DE UM PAÍS COLONIZADO

                                                                                                                Isaac Warden Lewis

Nos países colonizados, muitas pessoas ficam perplexas ao tomarem conhecimento de que alguns indivíduos se utilizam de suas condições favorecidas para usufruírem de vantagens, benefícios, privilégios como se ainda vivêssemos em um regime colonial onde poucas pessoas detinham direitos, privilégios às custas da carência e do sacrifício da grande maioria da população desfavorecida. O mais surpreendente é que esses indivíduos das classes favorecidas declaram continuamente que vivemos em um estado democrático de direito. Isso ocorre porque esses indivíduos frequentaram escolas, faculdades e até universidades onde aprenderam que deveriam estudar saberes técnico-profissionais para atuarem na sociedade sem refletirem que sociedade é essa onde irão atuar? Que saber técnico irão aprender? Como  se desenvolveram a sociedade e os saberes técnicos? Para que servem os saberes técnicos na sociedade onde irão atuar? Ademais não se interessam em saber se vivemos em um estado democrático de direito ou em um estado burocrático de direito. Como surgiu o estado democrático de direito e como surgiu o estado burocrático de direito? Esses egressos de nossas escolas e faculdades supõem-se civilizados, seres humanos superiores, mas, na realidade, agem e vivem como a maioria dos animais domésticos e selvagens. Por exemplo, as galinhas e os galos nascem pintinhos, crescem ciscando o chão em busca de seus alimentos. Não se perguntam se amanhã haverá chão, não se preocupam em saber como surgiu a terra onde vivem, não precisam de respostas fáceis elaboradas por sacerdotes na pré-história e, muito menos, lhes interessam saber se alguns cientistas descobriram fatos que refutaram os falsos conhecimentos propagados pelos sacerdotes. As galinhas põem ovos, chocam seus ovos e quando nascem os pintinhos, elas caminham pela terra ciscando, alimentando-se de minúsculos animais, os pintinhos, por sua vez, aprendem a fazer as mesmas coisas para se tornarem galos ou galinhas. Esses animais não precisam de um estado burocrático de direito, camuflado de estado democrático de direito, para se beneficiarem de vantagens indevidas.

No mundo antigo, o estado burocrático foi modelado para garantir os direitos e os interesses dos grupos favorecidos e, ao mesmo tempo, negar direitos para a grande maioria das classes desfavorecidas (de fato, as classes trabalhadoras) e também desconsiderar os interesses .dessas classes. A sociedade indiana antiga constituía um exemplo em que as castas favorecidas usufruíam da exploração do trabalho da maioria da população desfavorecida, que vivia eternamente empobrecida. No século VI a. C., um brâmane, chamado Sidarta Gautama, o Buda, depois de refletir sobre a miséria em que vivia a maioria da população, concluiu que todos os seres humanos eram iguais, propondo a abolição do sistema de castas privilegiadas e de castas desfavorecidas. Entretanto a ideia e a prática da desigualdade e  injustiça continuaram prevalecendo no mundo (incluindo Grécia, Roma, Judeia), onde as concepções religiosas orientavam o comportamento social de suas populações tanto para o bem quanto para o mal. As sociedades cristãs e muçulmanas adotaram e sintetizaram os rituais e os princípios preconceituosos e discriminatórios das religiões antigas (tanto as primitivas quanto as pré-históricas). Essas concepções podem ser assimiladas em obras literárias. Na Grécia Antiga, Ésquilo (525-456 a. C.) e Sófocles (495-406 a. C.) produziram tragédias nas quais os destinos dos personagens eram determinados pelos deuses. Vale ressaltar que alguns autores discordaram disso. Menandro (342-290 a. C.), por exemplo, elaborou obras literárias, ressaltando que os personagens são responsáveis pela sua felicidade ou infelicidade. Na Itália, no século XIV, Bocaccio, no livro Decamerão, elaborou uma série de contos em que os personagens são responsáveis por suas vicissitudes ou idiossincrasias.

A partir do século XIV, vários estudiosos começaram a refletir sobre os conhecimentos herdados das civilizações antigas, contruíram novos métodos epistemológicos para construção e aprimoramento dos conhecimentos humanos. Aprendemos que os estados burocráticos de direito surgiram no período de transição da pré-história para os períodos históricos quando os seres humanos decidiram dividir as tarefas necessárias para a sobrevivência da comunidade. Surgiram as atividades específicas de pescadores, pastores, caçadores, coletores de frutas etc. Essa divisão trouxe enriquecimento para várias coletividades, havendo, então, necessidade de outras divisões de tarefas. O acúmulo de produtos tornou necessária a preparação de pessoas para controlar e dividir os produtos de acordo com as necessidades de cada pessoa ou de cada grupo de pessoas. Para guardar e proteger os produtos de serem saqueados por grupos humanos, foi necessário que guerreiros fossem designados para defenderem a produção da coletividade. Depois de algum tempo, surgiu a necessidade de coordenar ou administrar todas as tarefas da coletividade. Surgiram os faraós, os comandantes, os reis, os chefes etc. A divisão mais estrutural ocorrida nesse período foi a divisão do trabalho mental do trabalho manual  Surgiram os sacerdotes, especializados em explicar o destino, o bem, o mal, a tragédia, a fatalidade produzidos pelas divindades do bem ou do mal. Tais sacerdotes se autodenominaram representantes ou filhos dessas divindades.  Nesse período, alguns coordenadores e sacerdotes começaram a administrar os bens coletivos como se fossem seus bens particulares e começaram a inventar leis, mandamentos, diretrizes para serem obedecidos pelas classes desfavorecidas, declarando que tais leis, mandamentos  e diretrizes foram determinados por alguma divindade superior para o bem de todos, de tal sorte que as vantagens, benefícios e privilégios eram acessíveis às classes favorecidas dirigentes, enquanto que as classes trabalhadoras desfavorecidas eram destituídas de qualquer direito. A sociedade humana começou a tornar-se complexa.

Vários estudiosos começaram a questionar sobre a origem da desigualdade e injustiça nas sociedades humanas. Logo surgiram propostas para abolir as discriminações entre os seres humanos. Depois de muitos debates (como os escritos produzidos pelos enciclopedistas franceses) e combates (como as revoluções ocorridas na Inglaterra e na França), novas organizações sociais foram projetadas para os seres humanos. Consensualmente, os revolucionários decidiram pelo estabelecimento de um estado democrático de direito que considerasse a igualdade de todos os seres humanos e o direito de todos à liberdade, abolindo-se os estados burocráticos que consideravam os interesses e privilégios das classes favorecidas. Nos países colonizados (o Brasil, em especial), os objetivos dessas lutas foram totalmente distorcidos pelas classes favorecidas (colonos, latifundiários, senhores escravagistas). Ficou claro, para a maioria das pessoas das classes desfavorecidas que a democracia, a liberdade, os direitos não são dádivas, mas objeto constante de luta, pois o bem estar coletivo deve ser conquistado cotidianamente através de lutas. É da natureza das classes favorecidas instrumentalizarem as leis e as instituições do estado para favorecer seus interesses. Desse modo, não devemos ficar perplexos com as atitudes do prefeito de Manaus e das médicas recém formadas em distorcerem os princípios de prioridades para vacinação durante a pandemia de covid-19 (janeiro de 2021) para se apropriarem do imunizante como se fossem de sua propriedade. Faltou a imprensa informar (e isso sempre falta) em que instituições essas médicas estudaram?

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Isaac Warden Lewis é professor aposentado da Faculdade de Educação/UFAM

sábado, 2 de janeiro de 2021

VIVA FESTAS! VIVA!!!

  Isaac Warden Lewis

 

I

 

As festas atraem muitas pessoas adultas. Algumas pessoas são atraídas por festas desde pequenas. Elas adoram aniversários, natais, anos novos, baladas, carnavais e mais programas nos finais de semana. Desde pequena, Esmeralda Figueira era uma dessas pessoas que adoravam festas. Para ela, um ano deveria ser trezentos e sessenta dias de festas. Sua mãe a matriculara num Jardim de Infância aos três anos de idade para estudar. As aulas no Jardim de Infância “Raios de Luz” resumiam-se em brincadeiras e festas todas as semanas. Quando Esmeralda foi transferida para uma escola aos sete anos para aprender a ler, escrever e contar foi um verdadeiro trauma para ela. Não havia brincadeiras e nem festas. Ela não gostou da escola. Levou três anos para aprender a ler e escrever algumas palavras. Contar tornou-se um desafio acima de suas capacidades mentais. Ela acabou sendo transferida para outra escola para alunos problemáticos. Aos quinze anos, conseguiu terminar as primeiras séries do Ensino Fundamental. Sua mãe foi aconselhada a matricular a filha numa escola noturna para terminar as últimas séries do Ensino Fundamental. Logo Esmeralda mostrou interesse em frequentar a escola noturna. Para ela, os professores e as professoras eram pessoas chatas, só pensavam em passar e explicar matérias e mais matérias. Muitos alunos e muitas alunas só pensavam em estudar, estudar e estudar. Mas havia algumas colegas que se tornaram amigas de Esmeralda. Elas também não gostavam de estudar e muito menos fazer esforços para aprender qualquer coisa. Elas sabiam onde e quando havia festas, baladas, programas divertidos. Esmeralda aprendeu que deveria sempre levar uma blusa extra em sua mochila para ir a essas festas. Esmeralda reencontrou as alegrias dos tempos de jardim de infância. A escola noturna era uma festa. A vida voltou a ser festa, divertimento e alegrias. Houve somente um contratempo no final do ano. Ela e suas amigas foram reprovadas. Teriam de repetir a mesma série no ano seguinte. Isso não preocupou muito Esmeralda Figueira. “Afinal de contas quem precisa saber em que hemisfério fica seu país? Qual a diferença entre um vegetal e um animal? O Brasil foi descoberto ou foi invadido? Como se escrevem tais e tais palavras: com ch ou com x? Como devemos pronunciar palavras escritas com e? Devemos pronunciar escola ou iscola, sequer ou siquer, descobrir ou discobrir? Caxias foi um herói ou um genocida? Por que devemos nos esforçar para entender as coisas, como informavam alguns professores?” Esmeralda parou de pensar. 

II

 

Durante as férias escolares, ela continuou frequentando festas e baladas com suas amigas e com o seu namorado. No retorno às aulas, Esmeralda retomou seu desinteresse pelas aulas, frequentando-as mais para ter oportunidade para sair de casa todas as noites. No primeiro semestre, descobriu que estava grávida. Ela procurou ocultar isso de sua mãe até o dia em que teve de ir a uma maternidade para ter o filho. Seu namorado desapareceu. Sua mãe a condenava constantemente. Assim que voltou da maternidade, Esmeralda ficou algum tempo cuidando do seu filho. Logo ela arranjou desculpas para sair com suas duas amigas, Marcelina Souza e Ingrid da Silva. Todos os sábados e domingos, elas iam a festas. Cansada das admoestações da sua mãe, Esmeralda resolveu deixar sua cidade no interior do Pará, à beira do rio Amazonas. Deixou seu filho Carlos com sua mãe, prometendo que viria buscar o menino na primeira oportunidade. Foi para Belém. Nessa cidade, descobriu os bares da vida, onde se empregou como garçonete, pois além de servir os clientes, ela ouvia e dançava as músicas de carimbó,  sertanejos, e os grandes sucessos de Reginaldo Rossi, Waldick Soriano, Amado Batista. Suas amigas de trabalho eram todas festeiras, os clientes também gostavam de se divertir e de ver futebol na televisão. Assim passaram vários anos. Às vezes, Esmeralda se lembrava que tinha um filho. Escrevia para sua mãe, dizendo que “estava bem empregada e que estava bem. Mandava algum dinheiro para o filho e, assim que pudesse, voltaria para passar férias com a família”. Essas cartas geravam muitas dúvidas e preocupações à mãe de Esmeralda, pois ela já conhecia histórias de muitas moças que deixaram aquela cidade e diziam estar bem empregadas e, de repente, retornavam pobres e envelhecidas precocemente. Esmeralda nunca retornou para passar férias em sua cidade natal. Seu sonho era viajar para São Paulo. Um certo dia, ela conheceu um caminhoneiro no bar. Depois de muitas bebidas e de ébrias conversas, ele se ofereceu para levá-la para São Paulo.  Depois de sete dias de viagem, parando em pequenas vilas para dormirem em pousadas à noite, eles chegaram a uma rodovia paulista e resolveram pernoitar num hotel a cinco horas de São Paulo. Quando Esmeralda acordou às cinco horas da manhã, o caminhoneiro já havia partido. Ele deixou algum dinheiro sobre a mesa. Esmeralda descobriu que ela poderia pegar um ônibus que levaria seis horas para chegar na rodoviária de São Paulo. Perto do hotel, havia um bar que atendia caminhoneiros. Tentou conseguir trabalho no bar. Não havia vagas para garçonetes naquele momento. O proprietário disse à Esmeralda que ela poderia ajudar os clientes, os quais sempre recompensavam as moças. Esmeralda resolveu ficar. Toda noite, ela ia ao bar, beber , conversar, dançar as mesmas músicas que ela já conhecia de outros bares boêmios. Três meses depois, ela conseguiu uma carona com outro caminhoneiro para seguir para a cidade de São Paulo. Essa cidade deslumbou-a. Era o mundo dos mundos. Andou pela cidade por vários dias. Encontrou trabalho em um bar que funcionava à noite. Encontrou outras amigas e se divertia com os clientes, servia-lhes, bebia, conversava e dançava com eles. Conseguiu juntar um dinheirinho. Planejou passar férias em sua cidade natal. Era fim do ano. Numa noite festiva, um caminhoneiro fez-lhe um convite para morar em Manaus com ele, pois ele iria gerenciar uma agência da transportadora nessa cidade. Além do salário, a empresa pagaria o aluguel de uma casa. Esmeralda perguntou ao seu companheiro, Oscarino das Neves, se ela poderia trabalhar e se ele arranjaria um emprego para ela em Manaus. Oscarino lhe disse que, em Manaus, poderiam procurar alguma coisa para ela.

 

III

 

Esmeralda e Oscarino deixaram São Paulo em janeiro. Moraram em um hotel no subúrbio de Manaus. Em fevereiro, conseguiram uma casa no mesmo bairro, perto do escritório da transportadora. A empresa alugou a casa residencial. Esmeralda e Oscarino começaram uma nova vida em uma nova cidade. O novo sempre incorpora o velho, assim como o velho sempre incorpora o novo ou a inovação. Oscarino das Neves também era paraense e conhecia bem o mundo de bares, onde ele sempre parava em suas viagens pelas cidades brasileiras. Apreciava as mesmas músicas e as letras das músicas que Esmeralda tanto apreciava. Nos bares, ele se resumia a ficar sentado, bebendo cerveja e, eventualmente, conversava com seus parceiros e parceiras. Logo a casa residencial do conjunto onde foram morar tornou-se um ponto para bebericar cerveja, conversar ebriamente sobre o tudo ou o nada e ver jogos de futebol na televisão. Isso aconteceu da seguinte maneira. Todos os dias, Esmeralda perguntava ao Oscarino se ele iria conseguir algum trabalho para ela. De tanto ser cobrado, ele sugeriu a ela fazer um restaurante para atender clientes para almoço. Logo o restaurante virou um bar à noite, principalmente, em dias de jogos. Os bebericadores de cerveja e apreciadores de jogos de futebol na televisão tornaram-se clientes preferenciais do bar. Todas as sextas-feiras, sábados e feriados, havia uma programação de músicas características de bares da vida. Ocorriam conversações ébrias, cantorias de músicas bregas. Os participantes  chegavam com seus carros caros somente para se divertir. Os vizinhos denominaram esse bar clandestino de “Pequena Belém”, pois seus frequentadores eram principalmente pessoas paraenses que residiam e trabalhavam em Manaus. Homens e mulheres, entre quarenta e sessenta anos, comportavam-se como adolescentes que não fizeram a transição para a vida adulta. Numa manhã de segunda-feira, um desses frequentadores chegou à casa de Esmeralda para beber. Ela lhe perguntou se havia acontecido alguma coisa. Ele relatou que chegara em sua casa de madrugada e encontrou-a totalmente  vazia. Sua mulher havia ido embora, levou os móveis, levou tudo, incluindo as duas filhas do casal. Esmeralda quis saber o que ele havia feito contra sua esposa. Ele respondeu que não havia feito nada. Ele não sabia para onde ela tinha ido e não sabia como encontrá-la e as filhas. E continuou bebendo e falando de coisas banais que homens e mulheres falam em bares da vida. Esmeralda Figueira lembrou-se de seu filho. Naquele dia, ela escreveu para a mãe. Relatou que estava vivendo em Manaus. Informou que estava bem, morando em uma casa grande, casada com um gerente de uma transportadora. Disse que sentia saudade da família e convidava a mãe e o pai para visitarem-na em Manaus. Escreveu que, no momento, ela não poderia visitá-los porque ela era dona de um restaurante, além disso, tinha de cuidar da sua casa. Disse que ia mandar um dinheiro para mãe e enviava beijos e abraços para todos. Depois disso, começou a varrer e a limpar o ambiente, pois, no dia seguinte, seria feriado e haveria uma festa de aniversário para o homem cuja mulher fora embora com os móveis e as filhas. Ele contratou os serviços de Esmeralda porque ele iria superar as perdas com uma festa e muita coragem. Pediu para Esmeralda providenciar bolos e salgadinhos e que houvesse cerveja para todos e concluiu: “O que seria da vida sem festas!”.

 

Dezembro, 2020.

THE TREE

                                                 Isaac Warden Lewis

 

From the seed buried in the soil,

there appeared a timid, little plant,

which, receiving water and solar rays,

grew and invigorated itself as time passed.

After having lived its infancy and its youth,

it became an adult tree, strong and leafy,

bearing fruits for a long time.

 

As time passed by, the tree stopped to develop itself.

Its leaves stopped to renew themselves

and, sooon, it stopped bearing fruits.

The tree, then, lived quietly at the mercy of the Wind and the Time.

The branches became weak and, now and then, they fell.

And so, the tree went on shedding its leaves and lopping itself.

 

The tree, however, remained standing

and, about it, there were, now, other plants

that were born from the seeds of its fruits.

The mother-tree that, little by little, was desappearing

                             /from the scenery of life,

left the earth full of daughter-trees and granddaughter-trees,

that, in its turn, would recycle life on Earth.