Isaac Warden Lewis
I
Kátia Morais e
Antônio Gaspar conheceram-seem um baile há doze anos... Eles gostavam de dançar
nos finais de semana. Kátia Morais trabalhava como telefonista no setor de
Cobrança de uma grande loja no Rio deJaneiro. AntônioGaspar era vendedor numa
loja de móveis numa outra loja. Além de dançar, Kátia Morais apreciava as
novelas e as fofocas soBre os atores e as atrizes dessas novelas.. Além de
dançar, Antõnio Gaspar gostava de acompanhar os jogos de futebol de seu time
preferido na televisão ou no estádio do Maracanã. Kátia Morais e Antônio Gaspar moravam em um
bairro da Baixada Fluminense. Estudaram até o ensino médio e começaram a
trabalhar. Não aprenderam muita coisa na escola; Kátia Morais estudou o
magistério em nível médio, porém parecia saber menos do que sua mâe quefizera
somente o ensino primário. Tal como a mãe, Kátia Morais acreditava em forças
místicas que governariam os destinos do universo, da sociedade e dos seres
humanos. Ela sempre apelava para um ser divino para conseguir algum benefício
ou para agradecer algum milagre ou para fazer alguma apelação. De modo geral,
ela nunca refletira sobre essas palavras ou
as ideias que proferia automaticamente como costumava fazer a maioria
das pessoas analfabetas ou ignorantes. Antônio Gaspar também parecia não ter
aprendido muita coisa na escola. Ele gostava de passar várias horas com seus
amigos, bebericando cerveja, conversando sobre o nada, a vida alheia ou os jogos
do campeonato de futebol do Rio de Janeiro e do Brasil. Kátia Morais e Antônio
Gaspar se correspondiam, nunca se preocuparam com os problemas políticos,
sociais, econômicos da sociedade em que viviam. Não conheciam a verdadeira
história do Brasil ou da religião que diziam professar..Diziam-se cristãos e
nunca se perguntaram quem foi o indivíduo real chamado Jesus Cristo”. Tudo o
que sabiam sobre tal personagem aprenderam nas conversas dos parentes e dos
vizinhos que também falavam frases, como: “Se deus quiser, hoje não vai chover”
ou “Graças a deus, meu filho ficou bom da tosse” ou “Meus deus, a polícia matou
um menino na favela com sete tiros” e nunca se preocuparam para saber do que ou
o que realmente estavam falando. Souberam que as autoridades policiais e
políticas colonizadas declararam que a morte do menino fora uma fatalidade.
Kátia Morais lembrou-se que sua avé morrera em uma clínica e ninguém nunca
soube se ela foi realmente bem medicada ou se foi morta por negligência. Seus
parentes louvavam os planos de saúde e de previdência de seus idosos, mas nunca
tiveram acesso às dependências das clínicas e dos hospitais para obterem
informações sobre o que os médicos e enfermeiros estavam realizando com seus
pacientes. Estranharam as faturas que indicavam tratamentos clínicos e remédios
receitados a sua avó. O diretor e dono da clínica informou aos parentes que sua
avó fora bem tratada e que sua morte fora uma fatalidade. Kátia Morais começou
a imaginar que o sistema educacional brasileiro (civil ou militar) formava
“especialistas em fatalidades”.
Tal como os pais
e vizinhos, descendentes de africanos, Kátia Morais e Antônio Gaspar
acreditavam que o Brasil era um país democrático, mas nunca estudaram a origem
da ideia de “democracia” ou sobre a história da revolução francesa ocorrida em
1789. Apesar dessa ignorância, consideravam-se felizes.. Acreditavam que
poderiam continuar felizes, se casassem. Kátia Morais queria casar--se na igreja
com véu e grinalda e convidar suas amigas. Antônio Gaspar queria fazer uma
grande festa e convidar seus amigos para beberem livremente para comemorar o
maior evento de sua vida.
II
Passaram-se dez
anos de casados. Kátia Morais e Antônio Gaspar discutiram muito, fizeram a paz,
xingaram-se mutuamente inúmeras vezes.. Ele a chamava de vadia, vagabunda,
galinha, puta. Ela retrucava, dizia que ele era vagabundo, vadio, sem vergonha,
filho da puta, machista e imprestável. Ele e ela sentiam profundamente os
golpes dessas palavras de baixo calão, porém sobreviveram para celebrar os dez
anos de casados do mesmo modo que outros casais da sociedade brasileira, tanto
das classes desfavorecidas quanto os das classes favorecidas, tanto os das
favelas quanto os dos ditos luxuosos condomínios das zonas privilegiadas...
Afinal de contas, a educação brasileira, latifundiária e escravista, moldou
todos os cidadãos nascidos numa sociedade colonizada que se jacta de ser
ocidental, católica, cristã, civilizada, fundada segundo as normas medievais
das Ordenações das cortes portuguesas do século XVI.
Três meses
depois do grande evento da festa de dez anos de casados, Antônio Gaspar chegou
em casa de madrugada. Bêbado, trôpego, dirigiu-se para o quarto para dormir.
Nessa noite, a filha do casal, Catarina, não estava em casa. Ela fora dormir na
casa da avó, que ficava numa outra rua do mesmo bairro. Kátia Morais decidiu
entrar no quarto para xingar fundamente seu marido por chegar em casa de
madrugada. Mal ela começara os xingamentos, ele sentou-se e pronunciou
pouquíssimas e inéditas palavras que ela jamais ouvira dele:
- O que você
quer, sua feia, horrorosa? Saia daqui, suma da minha frente”. Repetiu as palavras
fatais: “Sua feia, horrorosa”.
Kátia Morais
ficou chocada, atordoada.. Não conseguiu articular uma palavra para se defender
ou atacar seu marido. De repente, ela começou a chorar, a gritar, a urrar
horrivelmente, saiu do quarto do casal, entrou no quarto da filha, gritou
desesperadamente, chorou, urrou por vários minutos e parecia que não iria parar
nunca. Chorou e urrou até as seis horas da manhã. Em seu quarto, Antônio Gaspar
não entendia o que estava acontecendo com a sua esposa e adormeceu como se não
tivesse feito mal algum a sua mulher.. Por fim, Kátia Morais parou de chorar, levantou-se,
dirigiu-se ao quarto do casal. Pegou suas roupas, colocou-as em uma sacola,
dirigiu-se à porta, abriu-a, saiu de casa e nunca mais foi vista naquele
bairro.
F
I M
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Maio de 2021
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