Lucilene Gomes Lima
Quando o SARS-CoV 2 começou a
grassar pelo mundo, ouvi de um habitante de Manaus, capital do Amazonas, que
aqui ele não se criava. Há quase um ano tem-se comprovado que isso era um
engano. O vírus atingiu Manaus e o Amazonas como um todo. Chegou à ilha de
Saracá ou Silves, como é mais comumente conhecida. A pandemia do SARS-Cov 2
acentuou indisfarçáveis pontos problemáticos do sistema capitalista - a
superpopulação concentrada nos grandes centros urbanos, a alimentação de má
qualidade, o mau gerenciamento dos recursos físicos e humanos no sistema de
saúde, a desigualdade social.
A pequena vila de Silves não pode
incluir-se em todas essas características. A ideia de cidade é muito precária e
incipiente. Os seus habitantes, e neles se incluem os galináceos, os cães e as
aves de rapina, como os urubus, são indiferentes ao modo de vida civilizacional
humano. Os cães vivem a dormir sossegados nas ruas porque ignoram o tráfego de
veículos, que são poucos. Os galináceos
ciscam à vontade pelos quintais, não têm sua liberdade tolhida e nem são o
prato principal dos habitantes humanos, que ainda podem se alimentar de peixe
por eles mesmos pescados, apesar de, às vezes, comerem a comida ruim, embutida,
enlatada, congelada da cidade. A divisão dos terrenos em Silves não obedece à
geometria triangular dos terrenos das capitais urbanas, os habitantes talvez
ignorem o que seja propriedade privada. A maioria dos terrenos não tem muros
que separem uma casa de outra ou portões que estabeleçam aos estranhos a
privacidade dos moradores, quase todos os moradores se conhecem ou são
aparentados. Não chegou à ilha a violência, como ela se apresenta nos grandes
contextos urbanos, apesar de ter chegado o barato dos entorpecentes. Os
modismos de massa e a alienação chegaram com a televisão. A esperança não vem
do lago Saracá vem, parafraseando uma canção, das antenas de tv. “A arte de
viver da fé. Só não se sabe fé em quê”.
Todos os dias os habitantes da ilha de Saracá cumprem os mesmos rituais: pescam, nadam e alguns brincam na praia reduzida do período de enchente. Um dia, porém, desses anos pandêmicos de 2020/21, a prainha ficou deserta, sem risos, vozerio de seus frenquentadores esparsos. Na prainha só restou uma canoa sem piloto, sem aquele que lhe dava função, uma das vidas ceifadas pelo mal. Uma canoa vazia, de luto, como todo o Amazonas pego de surpresa com a pandemia, mas ainda brincando com a morte.
A civilização, nos termos em que
a engendra o corrupto sistema capitalista, chega de alguma forma ao vasto
Amazonas, com a política rasteira de período eleitoral, com a catequese
cultural representada nas estátuas de santos que ornamentam as praças das vilas
amazônicas, com a máquina pública apadrinhada, com a discrepância entre a
estrutura física administrativa e o serviço público precário. A civilização
traz também os males globais. É uma evidência histórica que os vírus sempre
existiram entre os seres humanos, mas é falso concluir que as epidemias são
naturais. Uma pandemia é consequência dos gradativos processos coloniais
humanos. Como afirma Alfred W. Crosby, em seu livro Imperialismo ecológico: “[...]
o maior desastre demográfico do mundo foi iniciado por Colombo, Cook e outros
navegadores [...]” (2011, p. 218). A pandemia é de complexo controle no mundo globalizado à medida que já não há mais lugar isolado.
Nenhum comentário:
Postar um comentário