domingo, 18 de dezembro de 2016

ESPÍRITO DE NATAL


 

                    Lucilene Gomes Lima
Era antevéspera de natal. Em toda parte, havia alguma coisa a lembrar o mês
 natalino: árvores artificiais ou verdadeiras cobertas de lampadazinhas multicores,
enfeites em forma de sino, bota ou rosto bonachão de Papai Noel.
Duas mulheres, integradas nesse clima, faziam compras.

- O que você acha, levamos essas bolas?

- Para a árvore?

- Claro, Sandra, para que mais poderia ser?
- Ô, Mãe! Eu estava distraída.

- Ora, leve aquelas brilhantes que eu acho mais bonitas.

- É,  as brilhantes são mais bonitas, mas quebram facilmente. Sabe quantas sobraram do Natal passado? Nenhuma. Vocês não têm cuidado com nada, não sabem que dinheiro custa ganhar.
- Por que está reclamando? Papai não lhe deu o dinheiro do décimo terceiro para fazer as compras?
- Quem disse que ele me deu o décimo?
- Ele mesmo.
- Mentiroso! Deu nada. Ele nem me mostrou o contracheque, ficou fazendo mistério. Olha, Sandra! Aquela árvore branca! Que linda! Eu queria tanto uma como aquela. Já faz cinco anos que a gente monta a mesma árvore. Nem existe mais aquele modelo. Essa é tão bonita, Sandra, olha...
É bonita, sim. Mas eu acho mais bonitas ainda aquelas naturais. Por que a gente não põe uma em frente lá de casa? Tem lugar que vende, mãe, já vem grande.
- Agora, só se for no ano que vem. Ia ficar lindo mesmo.
As duas gastaram aproximadamente uma hora e meia escolhendo os enfeites da árvore. Depois, entraram num supermercado para comprar os ingredientes da ceia. Tinham saído de casa pouco depois do meio dia e retornaram ao anoitecer. Vinham sobrecarregadas de sacolas. Não havia ninguém à porta para ajudá-las. Entraram, exaustas, chamando por alguém que estivesse em casa. 
- Pai!
- Afonso, Nelsinho, Júlia! Aonde foi todo mundo? Ai, Sandra, segure aqui se não essas coisas vão quebrar!
- Não posso. Nem o pai nem os meninos estão em casa?
Nesse momento, Afonso aparece, todo suado e ofegante.
- Vocês compraram tudo o que tinha nas lojas? Pensei que não voltariam mais hoje – diz ele, ajudando-as com os pacotes.
- Por que é que não veio logo ajudar a gente? Estou com meus braços moídos.
- Estava ocupado, tentando consertar o telhado.
- Está vendo, Sandra? Amanhã é véspera de Natal e o teu pai inventa de consertar o telhado. É sempre assim. Tudo cai nas minhas costas.
- Haja paciência! Se eu  não conserto, reclama; se conserto também reclama. Muitas telhas estão soltas lá em cima.
- Ora, deixe para consertar isso amanhã de amanhã!
- Amanhã de manhã? Nem pensar, minha filha! Não vou deixar de tomar meu chopinho na véspera de Natal com meus amigos para consertar telhado.
- Conserte amanhã à tarde, então, pai.
- Não, Sandra. Amanhã à tarde ele vai me ajudar a pendurar os enfeites lá fora. Todo mundo está com as frentes das casas decoradas e só nós é que vamos passar o Natal com essa casa toda desengonçada. Já basta que nem pintamos a casa esse ano. E quando eu pergunto pelo dinheiro o que ele responde? – “Você só fala em dinheiro, Iraci, não me aborreça, Iraci”
A noite da antevéspera prosseguiu marcada pela ansiedade com que aguardavam o dia seguinte. O tempo se manteve quente. Lá pela madrugada, contudo, enquanto todos dormiam, subitamente começou a ventar forte e o telhado que Afonso deixara por consertar ficou em pior estado.
Manhã do dia 24 de dezembro, véspera de Natal. Iraci cuida dos preparativos para a ceia. Enquanto corta, lava, tempera, cozinha alimentos, queixa-se ininterruptamente. De algum modo, essa atitude confere sentido a sua vida. Engana-se quem a ouve e julga que está descontente. Lamenta-se como se cantasse, como se fosse imprescindível expressar-se dessa forma.
- Na hora de comer, todo mundo aparece. Olha, essas batatas! Não aparece ninguém que descasque. A pia já está cheia de louça. Eu sou uma só. Quero ver que hora vou me desocupar para ajeitar meu cabelo e fazer minhas unhas. Júlia, bata esses ovos. Onde é que está a Sandra?
- Não sei, mãe.
- Agora ela desaparece. Quando queria que eu comprasse aquele vestido caro só vivia atrás de mim. Os filhos são uns ingratos mesmo.
- Assim está bom, mãe? – pergunta a menina, mostrando uma vasilha com claras de ovos batidas.
- Ah, deixa. Deixe isso aí. Esse bolo é muito complicado de fazer.
A menina continua mexendo as claras como se não a tivesse escutado.
- Pára! Eu disse para deixar, Júlia! Está estragando os ingredientes.
- Por que não faz outro bolo?
- Você não entende de nada. Não está vendo que é um bolo especial de Natal? Vá, pode ir brincar. Só está me atrapalhando. Quero saber que hora o Afonso vai me ajudar a colocar aqueles enfeites. Ai, me cortei! Júlia! Mas para onde foi essa menina?
No decorrer do dia, formaram-se nuvens escuras no céu. A chuva ameaçou cair por mais de uma vez, mas até o anoitecer, ainda não havia chovido. Afonso chegou e ajudou Iraci a enfeitar a fachada da casa. À noite, acenderam o jogo de luzes, dando o toque que faltava.
Às onze e meia, estava tudo preparado para a ceia. A família ficou de prontidão, aguardando que o relógio marcasse meia-noite para iniciar oficialmente a comemoração. Por essa altura, relâmpagos começaram a iluminar o céu, seguidos de estrepitosos trovões. Uma chuva forte e contínua desabou. As telhas que estavam soltas voaram devido a força do vento. Com isso, várias partes da casa ficaram expostas à chuva. Iraci desesperou-se, não podia crer numa tal desgraça na noite de Natal.
- Afonso, corre aqui – ela gritava com as duas mãos na cabeça – está alagando tudo. Conserta esse telhado pelo amor de Deus!
- Agora? Debaixo dessa chuva e com esses relâmpagos? Isso só pode ser consertado quando a chuva passar – ele respondeu, enquanto arrastava um móvel para um lugar onde a água ainda não penetrara.
- E por que você deixou isso acontecer? Que adianta a gente ter um homem em casa?
- Pois vá consertar você mesma! – ele retrucou aborrecidamente, cruzando os braços.
A chuva cessou às onze e quarenta e cinco. Afonso, Iraci e os filhos ficaram refugiados num cantinho enxuto da casa. Olhavam-se, calados. Júlia e Nelsinho foram os primeiros a romperem o silêncio.
- Mãe, estou com fome.
- Eu, também, mãe. Quando vamos comer?
Iraci levantou a cabeça que estava reclinada sobre a mão e olhou tristemente para o relógio pendurado na parede da sala, respingado de chuva.
- Ainda não é meia-noite. Só quando der meia-noite – disse, e desabou numa crise de choro.
- Ninguém teve disposição para começar a limpeza da casa que ficara em estado lastimável. A mesa posta com tanto capricho para a ceia encharcara-se. À meia-noite em ponto, Júlia e Nelsinho puderam finalmente comer. O peru de Natal estava imerso numa bandeja cheia d’água. As crianças provaram um pouco da porção da ceia que Iraci lhes serviu num prato e a devolveram quase da mesma forma. Ela se voltou com intenção de recriminá-las, mas seus rostos, expressando insatisfação, seus sapatos novos encharcados fizeram-na calar-se.
Os foguetes explodindo sucessivamente no céu, o som contínuo das buzinas dos carros e a alegria geral das pessoas saindo à porta das casas para se parabenizarem fizeram com que Iraci, Afonso, Sandra, Júlia e Nelsinho também se sentissem participantes da festa. Saíram todos para a rua, deram e receberam abraços, confraternizaram-se. E ali, em frente da casa, nada parecia ter dado errado. Os enfeites continuavam lá, as luzes apagavam e acendiam. Era Natal.
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Do livro “O julgamento e outras histórias”

 

             

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A GRANDE FESTA


                                                                         Isaac Warden Lewis

A festa natalina é realmente uma grande festa.
E as semanas que antecedem o natal são semanas
de grande correria e de grande expectativa.

Compras e mais compras são realizadas.

Vendas e mais vendas são efetuadas.

Presentes e mais presentes são trocados.
 
Na noite da véspera do natal,
grandes festas acontecem.

Todos comem e bebem.

Todos falam e cantam.

Todos estão alegres e satisfeitos.


Os antípodas confraternizam-se

na grande noite da ilusão.

E as crianças recebem, de manhã, os brinquedos,

as razões sociais da indústria e do comércio de brinquedos.

 
Mas, se o grande ausente e homenageado
tivesse o poder de ver tudo isso de algum ponto do universo,

comentaria simplesmente:

“Quanta hipocrisia se comete em meu nome”.

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Do livro “Sentimento e consciência”

 

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

AS MEIAS VERDADES DA CULTURA SUBDESENVOLVIDA


                                                                                         Isaac Warden  Lewis
Max Weber considerava que o compromisso dos cientistas era com a verdade, mas que os políticos não precisavam necessariamente ter tal compromisso. Para Max Weber, a realidade política demandava dos políticos compromisso com as meias verdades. Claro que Max Weber não poderia imaginar as consequências de suas ideias não só na Alemanha, como em todo mundo e, em especial, no mundo subdesenvolvido (incluindo Brasil e Estados Unidos), onde as ideias esboçadas na Europa eram distorcidas, enviesadas e passavam a ser consideradas ideias civilizadas, superiores por letrados preguiçosos que assimilavam tais ideias acriticamente.
No Brasil, no período colonial, os jesuítas foram mestres em ensinar meias verdades, pois seus educandos , os nativos da América, os senhores e as senhoras de escravos e os próprios escravos não deveriam saber das questões científicas que foram e estavam sendo desenvolvidas naquele momento na Europa, assim como não deveriam saber sobre as críticas feitas à religião pelos não católicos.
Sabemos que nem todo cientista tem compromisso com a verdade e nem todo político orienta-se por meias verdades. Na realidade, há pessoas, de modo geral, que buscam a verdade para se orientarem, assim como há pessoas que, esperta ou ingenuamente, se satisfazem com as meias verdades pronunciadas por agentes ou instituições qualificados ou não pertencentes a uma determinada sociedade.
Certa vez, um professor de História de uma renomada instituição universitária paulista e também um ativista de esquerda, em um congresso de professores, pronunciando-se contra qualquer debate sobre quotas ou política afirmativa na universidade, declarou extemporaneamente que em Ruanda membros da etnia hutu haviam massacrado membros da etnia tutsi. Em nenhum momento, esse professor de História sublinhou que os membros da etnia tutsi haviam massacrado anteriormente membros da etnia hutu com apoio dos colonizadores belgas. Esse professor, como cientista e como esquerdista radical, pronunciou uma meia verdade, fazendo coro com as autoridades políticas belgas que condenavam os massacres contemporâneos em Ruanda, sem mencionar seu apoio às arbitrariedades e discriminações promovidas pelos tutsis contra os hutus durante sua colonização do país. Estranhamos o posicionamento de um professor de esquerda que se solidariza com os colonizadores europeus.
Um outro exemplo de meia verdade está sendo propalado pela propaganda do Ministério da Educação do Brasil a favor de uma reforma que prosseguirá a precarização da formação de qualquer profissional nesse país. No início do século XX, vários filósofos educacionais (americanos, principalmente) propugnaram que os educandos não precisavam aprender tantas matérias para se tornarem profissionais de que a sociedade precisava.
Imaginamos que, para esses filósofos educacionais, o bibliotecônomo não precisaria saber ler, escrever, contar, literatura, história, geografia, qualquer conhecimento científico. Bastaria ele saber pegar um livro, ler o código e colocá-lo na estante. Imaginamos também que um médico não precisaria saber ler, escrever, contar, literatura, ciência, biologia, física, química e nem anatomia. Bastaria esse acadêmico escolher sua especialidade, por exemplo, implantação de silicone, seguir os manuais produzidos nos países globalizados corporativos onde a medicina é estudada seriamente e, pronto,  já poderia atuar como cirurgião do silicone no país globalizado dependente.
Esses filósofos educacionais modernos não explicavam  por que Bertrand Russell, sendo um brilhante matemático, era também  filósofo e escritor. Nem seriam capazes de explicar a genialidade de Oscar Niemeyer que, além de arquiteto, era também escritor e escultor. A lista seria interminável, se pesquisássemos profissionais que se notabilizaram em várias áreas.
Os filósofos educacionais dos países globalizados dependentes, como o Brasil, foram mais longe. A um estudante de matemática não se deveria exigir o estudo da língua materna, de história, geografia, filosofia, ciência. Do mesmo modo, a um estudante de língua estrangeira, não se deveria exigir o estudo da língua nacional, de história, geografia, matemática, ciência, filosofia. A um estudante da língua nacional, não se deveria exigir o estudo de gramática. Para tais filósofos, esse estudo atrapalhava a aprendizagem da língua. A abolição de disciplinas e de conteúdos tornou-se a experiência pedagógica moderna e avançada para esses pseudo filósofos educacionais. Para serem consequentes, deveriam ter proposto a abolição da escola.
A reforma do ensino médio, proposto por autoridades burocráticas do Ministério da Educação com apoio de autoridades políticas e governamentais, é tardia e extemporânea como são as reformas que imitam reformas realizadas há muito tempo em outros países e a publicidade do Ministério da Educação não esclarece que vários países que realizaram esse tipo de reforma, segundo os filósofos educacionais modernos, voltaram atrás ou estão voltando atrás, adotando a educação tradicional que ensina os educandos a estudarem toda e qualquer disciplina para enriquecerem seu conhecimento e seu pensamento, haja vista que os exercícios de múltipla escolha adotados como exercícios modernos em muitos países foram abolidos imediatamente porque professores e pedagogos desses países descobriram que exercícios de múltipla escolha não possibilitavam que os educandos desenvolvessem seu conhecimento e seu pensamento. Tal descoberta ainda não chegou aos países de cultura subdesenvolvida, embora muitos professores brasileiros já tenham abolido, por conta própria, esse tipo de exercício.

A ILHA DA FANTASIA


                                                                                         Isaac Warden Lewis
Alguns homens e algumas mulheres chegaram  à Ilha da Fantasia e apropriaram-se dela. Fundaram  uma vila chamada Fartura. Nessa vila, esses homens e essas mulheres passaram a usufruir do fruto da terra, construíram moradias, criaram condições de vida para si e seus filhos.
Anos depois, chegaram à ilha da Fantasia outros homens e mulheres. Não puderam ter acesso aos bens materiais e culturais da Vila da Fartura por serem diferentes. Alguns eram discriminados por serem mais claros ou mais escuros do que os primeiros habitantes. Outros, por serem mais baixos ou mais altos. Outros, por virem de um mundo distante. Outros,  por serem mais inteligentes ou menos inteligentes. Além disso, os primeiros habitantes criaram   um  exército e uma legislação especial para garantir seus privilégios na Ilha da Fantasia.
Por isso, os estrangeiros, ou seja, os que chegaram depois, foram-se instalando nos charcos, nos mangues, nas praias, vivendo em condições precárias. Suas casas eram feitas de materiais frágeis. Não tinham  muito o que comer e não tinham onde produzir alimento. Desse modo, surgiu uma outra vila chamada Miséria.
As duas vilas prosperavam  a seu modo. A riqueza material e cultural da Vila da Fartura crescia rapidamente. Outrossim a pobreza e a ignorância da Vila da Miséria desenvolviam-se de maneira espantosa.
Em resumo, a população da Vila da Fartura tinha acesso à moradia decente, a uma boa alimentação e ao trabalho gratificante. A população da Vila da Miséria não tinha como atender as suas necessidades de moradia decente, alimentação básica e de trabalho digno. Ela era levada a se prostituir ou a cometer crimes para sobreviver.  
Os moradores da Vila da Fartura acreditavam que o seu bem-estar e a sua felicidade eram uma providência do destino. Os moradores da Vila da Miséria acreditavam que a sua provação era um desafio estabelecido por um ser divino para que pudessem  alcançar uma vida melhor depois da morte.
Um certo dia, começou a grassar um mal entre os homens, as mulheres e as crianças da Vila da Miséria. Somente os animais – os bois, os cavalos, os cachorros, os gatos, os ratos e os pássaros –  eram imunes a esse mal. A população da Vila da Miséria lutava desesperadamente contra o mal que ceifava gradativamente a vida dos membros da sua comunidade.
Os políticos, os cientistas, os jornalistas e a população da Vila da Fartura não se preocuparam com o mal que grassava na Vila da Miséria. Pensavam que esse mal era exclusivo da população miserável. Porém, um certo dia, os moradores da Vila da Fartura deram-se conta, muito tardiamente,  de que o mesmo mal atingia também as pessoas da sua comunidade.
Em pouco tempo, não havia mais seres humanos na Ilha da Fantasia. Sobreviveram somente os bois, os cavalos, os cachorros, os gatos, os ratos e os pássaros. Esses animais souberam  aproveitar e compartilhar os recursos naturais que floresceram  na ilha depois do desaparecimento dos seres humanos.
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Do livro “A ilha da Fantasia e outras histórias”

terça-feira, 1 de novembro de 2016

O ANIMAL QUE GANHOU UM DIPLOMA


                                                                          Isaac Warden Lewis
A presente história de um animal que ganhou um diploma é verdadeira e dou fé, pois ocorreu numa determinada escola, num determinado ano, num determinado município do Brasil. Lamento não poder precisar o ano e nem citar o nome da escola e o do município por uma questão ética.
Oito anos antes da data referida acima, um menino começou a frequentar a escola mencionada. Ele tinha um cachorro, chamado Tupã de Oliveira, que o acompanhava a todos os lugares onde ia. Quero alertar que o nome do cachorro é fictício. Por razões óbvias, não posso mencionar seu verdadeiro nome. Quando o menino começou a frequentar a escola, Tupã acompanhou-o também durante os oito anos letivos.
A princípio, Tupã ficava perto do portão e aguardava o menino sair da escola. Mas, pouco a pouco, ele foi fazendo amizade com os colegas do menino, os funcionários e os professores da escola e, logo, era admitido na sala de aula em que o menino estudava. Assim, por oito anos, Tupã frequentou as aulas da referida escola.
Consta que Tupã comportava-se bem, prestava atenção às palavras dos professores e jamais faltou às aulas. É certo que, muitas vezes, ele cochilava durante algumas aulas, principalmente, àquelas em que os professores discorriam sobre algum tema durante todo o tempo da aula. Entretanto, nas aulas em que os professores propunham brincadeiras, atividades extra-classe ou culturais e nas festas, Tupã participava ativa e alegremente.
Desse modo, Tupã e a maioria das crianças passaram os oito anos na escola. Quase todas iriam receber seus diplomas de conclusão do curso. Os técnicos escolares estavam satisfeitos, pois a maioria das crianças, que ingressaram no mesmo ano que o menino e o cachorro, estavam concluindo a oitava série. As estatísticas revelavam insignificante índices de evasão e de repetência. Os técnicos olhavam os gráficos com alegria.
De repente, o supervisor chamou a atenção de que havia um membro da escola, cuja matrícula, frequência e aproveitamento não foram computados pelos técnicos. Diante da estupefação de seus colegas, ele lembrou que Tupã de Oliveira frequentara aulas durante oito anos e o gráfico não registrava esse fato. Argumentou que a escola também deveria conceder um diploma ao Tupã de Oliveira.
Entretanto alguns técnicos alertaram  que Tupã não havia realizado provas e exercícios escolares e que, por conseguinte, a escola não tinha notas do referido cachorro. O supervisor sugeriu que o Conselho de Classe da escola poderia resolver questão tão insignificante. Isso era um mero detalhe. Todos os técnicos concordaram, então, unanimemente, em convocar o Conselho para que atribuísse notas às várias disciplinas necessárias para a aprovação de Tupã de Oliveira.
Dias depois, o Conselho estava reunido. Os professores que o constituíam julgaram vários casos, promovendo automaticamente os alunos reprovados para as séries seguintes. O caso mais difícil foi o do Tupã, pois ele não tinha nota em nenhuma disciplina. O supervisor, que presidia o Conselho, defendeu a aprovação do cachorro, ressaltando que, durante os oito anos de frequência às aulas, Tupã jamais causara algum problema. Nunca faltou às aulas desde que ingressara na escola. Respeitava os professores, os funcionários e os outros estudantes. Era um estudante exemplar. Ponderou que, nesse caso, a avaliação qualitativa era mais importante do que a quantitativa, pois interessava à escola e à sociedade o comportamento exemplar demonstrado por Tupã de Oliveira. Não importava se ele não sabia nada sobre a língua nacional, a matemática, as ciências, a história e a geografia. O que importava era que ele era educado e respeitador das normas da escola e da sociedade.
Um dos professores que sempre criticava as concepções e os procedimentos pedagógicos dos técnicos daquela escola replicou que a concessão de um diploma àquele cachorro seria a comprovação da falência da educação nacional. A seu ver, a escola deveria conceder diploma ou certificado a um aluno como prova de que esse aluno adquiriu e domina determinados conhecimentos das várias áreas do saber, pois a função da escola era transmitir e desenvolver tais conhecimentos. Se o Conselho se propunha a dar diploma sem considerar essa função da escola, era melhor, então, fechá-la e deixar aberta a sua secretaria para dar ou vender diploma a quem quisesse. A escola que concedia diplomas sem considerar se o aluno adquiriu conhecimentos de acordo com a sua série escolar desperdiçava tempo, dinheiro e recursos humanos irresponsavelmente. Argumentou ainda que a avaliação quantitativa pressupunha a avaliação qualitativa e que os professores e técnicos que defendiam a avaliação qualitativa sem considerar a quantitativa não entendiam e nunca entenderam quais eram os verdadeiros objetivos de uma escola. Possivelmente, em sua vida estudantil, esses professores e técnicos não aprenderam absolutamente nada, por isso postulavam que os alunos deviam  ser avaliados mais em relação aos seus comportamentos do que em nível de aprendizagem do conteúdo das disciplinas oferecidas pelo currículo escolar.
A maioria dos professores presente à reunião do Conselho de Classe sentiu-se abalada com essa argumentação. Porém o supervisor rapidamente tomou a palavra e disse que a reprovação de Tupã de Oliveira seria um ato de injustiça daquela escola e da sociedade. O domínio desse ou daquele conhecimento não era relevante para o aluno. O que importava era a garantia de acesso à escola para todas as crianças. Elas precisariam de diploma ou certificado para conseguir um emprego mais tarde. A manutenção das crianças na escola era o meio de evitar que elas passassem a viver nas ruas e se tornassem marginais. A função da escola era, portanto, tirar as crianças das ruas. A concessão de um diploma ao Tupã de Oliveira era um avanço da escola e do município para tirar também os cachorros das ruas, onde viviam na vadiagem e na sem-vergonhice. Tupã de Oliveira aprendeu muito nessa escola. Sempre participou de festas e de atividades culturais. Durante esses oito anos, tornou-se o mascote da escola nos desfiles escolares por ocasião das festas cívicas. Tupã de Oliveira devia não somente receber um diploma, mas também uma medalha pelo seu comportamento e dedicação à escola.
A seguir, os professores votaram  sobre a pertinência ou a não pertinência de se conceder um diploma ao cachorro. A maioria votou a favor da concessão. Depois, os professores atribuíram notas às várias disciplinas do currículo para que Tupã fosse aprovado. Foi assim que um animal ganhou um diploma.   
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Do livro “Educação no Reino de Banan e outras fábulas”

 

sábado, 1 de outubro de 2016

REFORMA DA EDUCAÇÃO OU EDUCAÇÃO PARA REFORMA ?


REFORMA DA EDUCAÇÃO OU EDUCAÇÃO PARA REFORMA?
                                                                                          Isaac Warden Lewis
Falar de reforma da educação no país chamado Brasil implica falarmos radicalmente sobre muitas outras reformas necessárias, como, por exemplo, a reforma do serviço de saúde, da política de segurança e, principalmente, das instituições políticas e jurídicas que servem os interesses das classes privilegiadas e favorecidas nacionais e internacionais. Isso nos faz lembrar um velho conhecido, o qual afirmou que “ser radical é agarrar as coisas pela raiz”
Para reformarmos uma casa, por exemplo, precisamos, primeiro, avaliarmos as condições dessa casa, seu alicerce, suas estruturas, sua funcionalidade e até o solo onde a casa está construída. Para reformarmos uma instituição social, a avaliação tem de ser mais complexa porque as instituições de uma sociedade são construídas histórica e socialmente, o que significa dizer que elas são construídas politicamente e dependem da correlação de forças entre os sujeitos privilegiados e os sujeitos desfavorecidos da sociedade num determinado momento.
A essa altura, convém indagarmos se cabe uma reforma dessa ou daquela instituição na sociedade brasileira ou se cabe revolucionarmos as estruturas sociais e políticas que sustentam as instituições sociais dessa sociedade. É como se tivéssemos de decidir se vale a pena remendarmos, retocarmos, pintarmos uma casa velha que não serve a finalidade de seus moradores ou se é preferível derrubarmos a casa velha e construirmos uma nova.
Afinal de contas reformar por reformar já se tornou tradição das classes privilegiadas há centenas de anos na sociedade brasileira. Temos visto, por exemplo, reformas e reformas de escolas e universidades públicas, sem que secretários e ministros da educação se preocupem em discutirem séria e profundamente a filosofia e a política educacionais implementadas pelas leis 5.692/71 e 5.540/68 pelos governos militares com assessoria de técnicos norte-americanos a serviço do Complexo Industrial-Militar dos Estados Unidos.  Os técnicos que elaboraram o Acordo MEC-USAID projetaram a educação brasileira como espaço de culto à pátria, de prática de esporte, de lazer e como vestíbulo de Departamentos de Recursos Humanos de empresas capitalistas nacionais e internacionais.
A preocupação de governadores, prefeitos e seus secretários de educação passou a ser o cumprimento dos trâmites burocráticos, estabelecidos pelas leis 5.692 e  5.540 e, quando muito, fechar as escolas para retocar paredes, ampliar os muros, pintar paredes e muros, mudar o piso, consertar o telhado e, por fim, inaugurar a reforma de mais uma escola. Às vezes, o banheiro e a cozinha permaneciam precários.
Não tem sido diferente a preocupação dos governos civis que sucederam os governos militares. Mantiveram-se fieis aos Acordos MEC-USAID assumidos pelos governos militares. Retocaram as leis 5.692 e 5.540 através de decretos, medidas provisórias e resoluções para aprofundar as propostas e objetivos das referidas leis. Financiaram a implantação e ampliação do ensino superior privado. Transferiram verbas do setor público para o setor privado. Sucatearam as instituições públicas de ensino e precarizaram o processo ensino-aprendizagem em todas as escolas e universidades públicas e privadas com a justificativa de que era mais importante aumentar a quantidade de diplomas do que melhorar o nível de aprendizagem dos educandos.
Todos os ajustes reformistas na educação, depois de 1984, foram realizados tanto por políticos de partidos conservadores quanto por políticos de partidos progressistas, tornando difícil, distinguirmos quem são, na realidade, conservadores ou progressistas nessa sociedade. Os estudiosos de gabinete, os jornalistas vinculados a grandes empresas jornalísticas e os políticos espertos rotulam os conservadores de direitistas e os progressistas de esquerdistas. Esquecem de dizer que, no Brasil pós-1984, os esquerdistas, em geral, são direitistas enrustidos.
Na prática, desde o fim da ditadura militar no Brasil (1984), os partidos políticos, apesar de portarem siglas diferentes, são, em sua maioria, partidos sociais democratas, pois pregam harmonia e conciliação entre capital e trabalho, entre exploradores e explorados. Por isso, os partidos políticos brasileiros, em sua maioria, competem entre si para realizarem os projetos políticos, econômicos, educacionais etc determinados pelos países do Primeiro Mundo para os países do Terceiro Mundo.
Para não perdermos a esperança, precisamos retornar às décadas 1940-1960 quando houve intensa mobilização, participação e discussões para reformar o setor educacional no Brasil. Para os conservadores, sua luta foi pela manutenção do sistema educacional criado no período colonial, que considerava a educação como privilégio de poucos, o objetivo educacional visava formar letrados para atender os interesses e o deleite das classes privilegiadas e favorecidas. O ensino-aprendizagem deveria permanecer através de memorização. Para os progressistas, a reforma da educação deveria democratizar o acesso ao conhecimento a todas as camadas da sociedade, o ensino deveria ser leigo e possibilitar o desenvolvimento científico e cultural dos educandos. Os educadores progressistas condenavam a memorização como processo de ensino-aprendizagem. Isso nos faz lembrar um outro velho conhecido, o qual afirmou que memorização de conteúdo não significa necessariamente aprendizagem do conteúdo. Os educadores progressistas contribuíram enormemente através de seus estudos e suas pesquisas para implementação de uma pedagogia nacional que criasse programas e currículos para a formação de educandos comprometidos com um projeto de país autônomo e livre.
Para a elaboração da Lei 4.024 – Diretrizes e Bases da Educação Nacional, promulgada em 1961, participaram  políticos, educadores, padres, estudantes, pais de alunos, trabalhadores, jornalistas, profissionais liberais de todo o país desde a década de 1940. Apesar da participação ativa de setores progressistas,  populares e de educadores que publicaram o Manifesto dos Educadores a favor do projeto original, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1961, aprovou inúmeras propostas de setores conservadores, mantendo o caráter elitista da educação para as classes privilegiadas e favorecidas, principalmente no interior e nas capitais mais atrasadas.
Em várias cidades do país, a mensagem universal de ensino e de acesso ao conhecimento foi adotada por algumas escolas públicas e privadas que passaram a preparar os educandos pobres ou ricos, através de ensino propedêutico para profissões variadas e, ao mesmo tempo, preparavam-nos  para ler e entender criticamente a história político-social de seu país, levando muitos jovens a se manifestarem e a lutarem a favor de mudanças na sociedade brasileira.  Foi contra esse projeto educacional que os técnicos brasileiros do Ministério da Educação juntamente com os técnicos norte-americanos elaboraram o Acordo MEC-USAID para desmontar um projeto político educacional construído por brasileiros comprometidos com um projeto de desenvolvimento autônomo e justo do país.   
A proposta educacional construída através da política e filosofia educacionais contidas no Acordo MEC-USAID tem mostrado sobejamente que os educandos não aprendem por livre e espontânea vontade e nem a expedição de mais diplomas e certificados melhora o nível educacional e intelectual dos educandos.
Aprendemos através da história das reformas no Brasil que não somente educadores precisam ser educados para serem educadores, mas também os reformadores precisam ser educados para fazerem reformas em qualquer setor na sociedade brasileira.

     

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

E S T R E S S E


                                                                                            Lucilene Gomes Lima
Casa de três cômodos. Espaço pequeno para viver com a família.
Sua situação precisava mudar. Viver como gente, não como boi num curral apertado.
A vida que levava poderia ser satisfatória, se fosse apenas um boi. Mas era um homem... Tinha sonhos. Queria conquistar coisas.
Lutou. Insistiu. Conseguiu um emprego de melhor remuneração.
O novo salário melhorou o orçamento. E tanto se empenhou, fazendo uma ou outra economia, que guardou algum dinheiro. Pouco a pouco, a casa ganhou cômodos novos.
Entretanto, tendo realizado uma aspiração, ele se alimentava de novas aspirações. E essas aspirações revitalizavam sua disposição para o trabalho.
Um dia, acordou pensando em arranjar mais dinheiro. O que ganhava ainda não o satisfazia. Fazendo economias, comprara algumas coisas para a família, melhorara a casa. E era só. Mas era pouco. Jovem ainda, não poderia obter mais da vida? 
Um segundo emprego, noturno, veio num golpe de sorte. Vigia de uma fábrica qualquer num lugar qualquer. Que lhe importava? Ganharia mais dinheiro, isso fazia muita diferença. Novos bens adviriam da carga extra de trabalho.
Durante muito tempo, trabalhou diuturnamente sem fazer corpo mole. Além das horas de trabalho nos dias úteis, passou a fazer também horas extras que o primeiro emprego oferecia nos finais de semana e feriados. Se, por ventura, se manifestasse algum sinal de abatimento, não dava atenção, pensava fortemente nos planos por realizar e o cansaço se ocultava como se fosse poeira por baixo de um tapete.
Enquanto ele se ocupava apenas em trabalhar e fazer projetos para o futuro, o espelho revelava um homem envelhecido precocemente.
Com o acúmulo dos anos, o cansaço se tornou mais insistente. Detestava esses sinais de fraqueza, debilidade. As pernas e os braços, que haviam sido feitos para o trabalho, queriam desafiá-lo, impor-lhe barreiras. Não se deixava intimidar, redobrava a força de vontade para provar a supremacia da mente sobre o corpo.
Julgou encontrar em suplementos vitamínicos a energia que lhe faltava. Tomou-os, primeiramente, com moderação, depois passou a aumentar as doses. Por fim, já os consumia em quantidade superior à alimentação natural. O sono, entretanto, era ainda o maior inimigo que tinha de enfrentar durante as horas noturnas de trabalho. Descobriu que, tomando certas pílulas, o problema do sono seria resolvido.
Tudo estava aparentemente bem, até ocorrer aquele mal-estar durante o trabalho diurno. Adoeceu. Três dias acamado. Um trabalhador doente não era útil. O medo de se desempregar o fez acreditar numa rápida recuperação. Estava curado.  
Apesar dos suplementos, dos estimulantes, adoecia. Passou, então, a trabalhar mesmo quando estava doente como forma de acentuar para si mesmo sua têmpera. Não notava ou não queria notar que a indiferença aos avisos do corpo causava-lhe danos mais sérios. Não importava se o organismo mostrava sinais de fraqueza. A força de vontade para continuar lutando é que contava. Nada era mais forte em seu espírito do que sua determinação. Era um homem honesto, queria vencer pelo trabalho. Nunca roubara nada de ninguém, conseguira tudo com o suor do seu rosto.
A situação mais estranha na sua vida de homem trabalhador e esforçado aconteceu de repente, segundo o que ele pensava. Não via aquilo como algo que se foi acumulando lentamente dentro dele, oriundo de seu próprio viver, mas como um mal surgido misteriosamente, espécie de feitiço ou mal olhado motivado, talvez, pela inveja que alguém tivesse de sua prosperidade.
Simplesmente, num dia comum, rotineiro como qualquer outro, acordou e não teve vontade de se levantar. Não chovia. Fazia um belo dia de sol, capaz de estimular os seres a se deixarem banhar pelos seus raios brilhantes.
Também não sentiu vontade de tomar o café da manhã. Bebeu apenas um gole e despejou o restante pelo ralo da pia. Vendo o café assim se esvaindo, teve a sensação de que lhe acontecia algo semelhante. Evadia-se de si mesmo, de seus interesses.
Sem estímulo, vestiu-se e saiu para o primeiro turno de trabalho.
Trabalhou desatentamente; cometeu erros. Foi repreendido. Não se importou.
Um sopro de resistência surgiu no fim da tarde e ele pensou que pudesse recobrar o ânimo no segundo emprego. Talvez estivesse apenas cansado de um tipo de serviço.
Veio a noite e tudo se passou com a mesma indiferença. Sentia-se como se não tivesse trabalhado. Os outros percebiam seu alheamento e sondavam a causa: estava fatigado? Ele lhes respondia que não. Insistiam em saber se estava passando mal. E ele não sabia responder. Comparava o passado e o presente e pareciam-lhe a mesma coisa. Tudo igual a tudo. Apatia.
O lar foi o último porto em que buscou recobrar a esperança. E por que também não o acolhia? Era somente nele que causava essa sensação de um lugar excessivamente grande e inospitaleiro?
Deitou na cama e manteve o corpo estendido. Pensou no quanto estava impotente sobre o que lhe ocorria. Fosse o caso de doer-lhe alguma parte do corpo, poderia gemer e até gritar. Mas não lhe doía nada. Não havia sofrimento.
Ninguém estava em casa naquele momento. Ninguém de quem pudesse ouvir ou a quem dissesse uma palavra. Apenas um armário a sua frente oferecia o diálogo mudo de suas formas. Sua sombra, que se prolongava na parede, criava a impressão de ser esse objeto maior do que realmente era. Desviando o olhar do armário, ele o fixou na parede. Esta lhe causava também uma sensação de enormidade.
Teriam as coisas tido sempre essa força desumana de objetos maciços, frios e mortos? E quanto ao suor que derramara para obtê-las, não lhes dera com ele a significação de sua vida? Não podiam causar-lhe, por isso, alguma satisfação? Ou o que lhe retribuíam era sua existência inanimada e indiferente a tudo? Não teria ele próprio se transformado em uma coisa e por isso se sentia tão oco por dentro? Com essas indagações, fechou os olhos e quis firmemente acreditar que poderia trilhar o caminho de volta a si mesmo.
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Do livro “O julgamento e outras histórias”.   

ESCOLA SEM PARTIDO: POR QUÊ, PARA QUEM?

                                                                                                Isaac Warden Lewis

Começaremos com algumas premissas. Religião não existe sem sociedade. Partido não existe sem sociedade. Uma sociedade de classes não existe sem pessoas, trabalhadoras ou exploradoras do trabalho dos outros, desfavorecidas ou privilegiadas, conscientes  ou  alienadas. Pessoas que pensam e pessoas que não gostam de pensar. Geralmente aprendemos a pensar na escola ou com pessoas que gostam de pensar. A função da escola, no mundo moderno, pós-renascentista, pós-iluminista, pós-revolução francesa, é desenvolver a capacidade crítica e científica do aluno, ou seja, é ensinar o educando a pensar. Por isso, a maioria das sociedades modernas estabeleceu a laicização do ensino.
Nós sabemos que os fundamentalistas religiosos (cristãos ou muçulmanos) posicionam-se contra a laicização do ensino (nas escolas e nas universidades), da política, do governo, do judiciário, da república, enfim, de todos os organismos de um estado moderno, com a complacência de políticos que se dizem democratas ou socialistas. Um exemplo disso ocorreu há dois ou três anos, no estado do Amazonas, quando as secretarias de educação coagiram professores e professoras de todas as áreas de conhecimento a fazerem curso de ensino religioso para conseguirem mais outra carga horária para melhorar seus parcos salários.  
Os defensores da escola sem partido não se questionam se é possível a existência de uma escola sem partido numa sociedade de classes, onde há conflitos entre várias classes quanto aos seus interesses. Esses defensores, também coerentemente, não se perguntam a quem interessa uma escola supostamente sem partido. Esses defensores não saíram a defender, aqui no estado do Amazonas, uma escola sem ensino religioso e nem se perguntaram a quem interessava ensino religioso nas escolas. Também não se perguntam por que pastores e missionários, ao invés de pregarem amor ao próximo para os pobres no Terceiro Mundo, não pregam amor ao próximo aos capitalistas e aos ideólogos dos Complexos Industriais Militares dos países do Primeiro Mundo? Os defensores da escola sem partido e com ensino religioso não questionam as atividades de alienação mental praticadas por missionários e pastores no Terceiro Mundo.
As secretarias de educação e o Ministério da Educação deveriam discutir uma séria formação científica dos estudantes nas escolas e dos acadêmicos de todas as áreas nas universidades com o objetivo de prepará-los para entenderem não só os saberes de suas áreas profissionais como também a história das sociedades em geral, da sociedade em que vivem e das instituições que existem nessas sociedades, incluindo as religiosas e os partidos políticos. Isso implica, obviamente, a análise crítica dessas instituições. Por isso, mais importante do que inserir ensino religioso nas escolas ou instituir a escola sem partido é ensinar os educandos a entenderem a história das religiões e das instituições políticas desde a pré-história até a época contemporânea para possibilitar seu desenvolvimento intelectual completo e crítico.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

A FAVELA E A DIALÉTICA


                                                                              Isaac Warden Lewis
A favela é, na sociedade brasileira,
      [um sistema de apartheid disfarçado:
      [gueto, bantustão, campo de concentração.
      [de negros, brancos, índios e mestiços espoliados.

Os brancos alienados, racistas,
       [sempre gostaram de morar e viver bem
       [na sociedade da democracia racial,
       [fundada em ideologias colonialistas.

O negro é inferior.
O negro é bandido.
O negro não presta.
O negro deve morrer.

Os brancos alienados pensaram que
          [poderiam praticar violência contra os negros sutilmente
          [sem que os negros resistissem malandramente;
          [poderiam encerrar os negros nas favelas
          [sem favelizar as residências dos brancos.

Os brancos alienados imaginaram que
            [poderiam negar direitos aos negros,
            [sem negar direitos aos próprios brancos;
            [poderiam discriminar os negros
            [sem discriminar os próprios brancos.

O branco é inferior.
O branco é bandido.
O branco não presta.
O branco deve morrer.

Os brancos alienados utilizaram o Estado
             [para perseguir, violentar e assassinar negros.
A ideologia do apartheid jamais concebeu que:
              [os negros poderiam aprender, algum dia,
              [a perseguir, violentar e assassinar brancos, negros e índios.
A ideologia do apartheid ensina o ódio ao outro.


Os negros alienados aprenderam a ser racistas,
Assumem inconscientemente as ideologias colonialistas.
Valorizam a cultura europeia em detrimento da africana e indígena.
Discriminam brancos, índios, mestiços e os próprios negros.

Negros, brancos, índios e mestiços são inferiores.
Negros, brancos, índios e mestiços são bandidos.
Negros, brancos, índios e mestiços não prestam.
Negros, brancos, índios e mestiços devem morrer.

Os brancos colonialistas estimulam a guerra entre  povos.
A guerra entre  povos  rende-lhes dividendos, lucros.
Negros, brancos, índios e mestiços fardados invadem a favela
       [para matar negros, brancos, índios e mestiços paisanos.
A ideologia do apartheid considera isso absolutamente normal.  

É a guerra total, é a solução final, haitiana.
Os órgãos do Estado justificam tais estratégias.
Os jornais louvam tais providências.
Os brancos alienados aplaudem tais massacres.
Os negros alienados aprovam tais matanças.

Já os negros e brancos revolucionários ou bandidos
          [resistem e opõem-se a tais atrocidades e sofismas.
Os negros e  brancos de consciência violam as fronteiras do apartheid.
Lutam por uma sociedade realmente justa e democrática,
           [pois somente haverá paz quando negros e brancos se
                                                              [respeitarem mutuamente.

Muitos negros e brancos já violaram a fronteira do apartheid.
Apreciam ópera e música clássica brasileira ou europeia.
Cantam e dançam samba, lundu, chorinho e bumba-meu-boi.
Pregam a teologia da libertação e a reforma agrária.
Participam dos rituais do candomblé.
Fazem do apartheid um carnaval.
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Do livro "Um pássaro que canta"