Lucilene Gomes Lima
Casa de três
cômodos. Espaço pequeno para viver com a família.
Sua situação
precisava mudar. Viver como gente, não como boi num curral apertado.
A vida que
levava poderia ser satisfatória, se fosse apenas um boi. Mas era um homem...
Tinha sonhos. Queria conquistar coisas.
Lutou. Insistiu.
Conseguiu um emprego de melhor remuneração.
O novo salário
melhorou o orçamento. E tanto se empenhou, fazendo uma ou outra economia, que
guardou algum dinheiro. Pouco a pouco, a casa ganhou cômodos novos.
Entretanto,
tendo realizado uma aspiração, ele se alimentava de novas aspirações. E essas
aspirações revitalizavam sua disposição para o trabalho.
Um dia, acordou
pensando em arranjar mais dinheiro. O que ganhava ainda não o satisfazia.
Fazendo economias, comprara algumas coisas para a família, melhorara a casa. E
era só. Mas era pouco. Jovem ainda, não poderia obter mais da vida?
Um segundo
emprego, noturno, veio num golpe de sorte. Vigia de uma fábrica qualquer num
lugar qualquer. Que lhe importava? Ganharia mais dinheiro, isso fazia muita
diferença. Novos bens adviriam da carga extra de trabalho.
Durante muito
tempo, trabalhou diuturnamente sem fazer corpo mole. Além das horas de trabalho
nos dias úteis, passou a fazer também horas extras que o primeiro emprego
oferecia nos finais de semana e feriados. Se, por ventura, se manifestasse
algum sinal de abatimento, não dava atenção, pensava fortemente nos planos por
realizar e o cansaço se ocultava como se fosse poeira por baixo de um tapete.
Enquanto ele se
ocupava apenas em trabalhar e fazer projetos para o futuro, o espelho revelava
um homem envelhecido precocemente.
Com o acúmulo
dos anos, o cansaço se tornou mais insistente. Detestava esses sinais de
fraqueza, debilidade. As pernas e os braços, que haviam sido feitos para o
trabalho, queriam desafiá-lo, impor-lhe barreiras. Não se deixava intimidar,
redobrava a força de vontade para provar a supremacia da mente sobre o corpo.
Julgou encontrar
em suplementos vitamínicos a energia que lhe faltava. Tomou-os, primeiramente,
com moderação, depois passou a aumentar as doses. Por fim, já os consumia em
quantidade superior à alimentação natural. O sono, entretanto, era ainda o
maior inimigo que tinha de enfrentar durante as horas noturnas de trabalho.
Descobriu que, tomando certas pílulas, o problema do sono seria resolvido.
Tudo estava
aparentemente bem, até ocorrer aquele mal-estar durante o trabalho diurno.
Adoeceu. Três dias acamado. Um trabalhador doente não era útil. O medo de se
desempregar o fez acreditar numa rápida recuperação. Estava curado.
Apesar dos
suplementos, dos estimulantes, adoecia. Passou, então, a trabalhar mesmo quando
estava doente como forma de acentuar para si mesmo sua têmpera. Não notava ou
não queria notar que a indiferença aos avisos do corpo causava-lhe danos mais
sérios. Não importava se o organismo mostrava sinais de fraqueza. A força de
vontade para continuar lutando é que contava. Nada era mais forte em seu
espírito do que sua determinação. Era um homem honesto, queria vencer pelo
trabalho. Nunca roubara nada de ninguém, conseguira tudo com o suor do seu
rosto.
A situação mais
estranha na sua vida de homem trabalhador e esforçado aconteceu de repente,
segundo o que ele pensava. Não via aquilo como algo que se foi acumulando
lentamente dentro dele, oriundo de seu próprio viver, mas como um mal surgido
misteriosamente, espécie de feitiço ou mal olhado motivado, talvez, pela inveja
que alguém tivesse de sua prosperidade.
Simplesmente,
num dia comum, rotineiro como qualquer outro, acordou e não teve vontade de se
levantar. Não chovia. Fazia um belo dia de sol, capaz de estimular os seres a
se deixarem banhar pelos seus raios brilhantes.
Também não
sentiu vontade de tomar o café da manhã. Bebeu apenas um gole e despejou o
restante pelo ralo da pia. Vendo o café assim se esvaindo, teve a sensação de
que lhe acontecia algo semelhante. Evadia-se de si mesmo, de seus interesses.
Sem estímulo,
vestiu-se e saiu para o primeiro turno de trabalho.
Trabalhou
desatentamente; cometeu erros. Foi repreendido. Não se importou.
Um sopro de
resistência surgiu no fim da tarde e ele pensou que pudesse recobrar o ânimo no
segundo emprego. Talvez estivesse apenas cansado de um tipo de serviço.
Veio a noite e
tudo se passou com a mesma indiferença. Sentia-se como se não tivesse trabalhado.
Os outros percebiam seu alheamento e sondavam a causa: estava fatigado? Ele
lhes respondia que não. Insistiam em saber se estava passando mal. E ele não
sabia responder. Comparava o passado e o presente e pareciam-lhe a mesma coisa.
Tudo igual a tudo. Apatia.
O lar foi o
último porto em que buscou recobrar a esperança. E por que também não o acolhia?
Era somente nele que causava essa sensação de um lugar excessivamente grande e
inospitaleiro?
Deitou na cama e
manteve o corpo estendido. Pensou no quanto estava impotente sobre o que lhe
ocorria. Fosse o caso de doer-lhe alguma parte do corpo, poderia gemer e até
gritar. Mas não lhe doía nada. Não havia sofrimento.
Ninguém estava
em casa naquele momento. Ninguém de quem pudesse ouvir ou a quem dissesse uma
palavra. Apenas um armário a sua frente oferecia o diálogo mudo de suas formas.
Sua sombra, que se prolongava na parede, criava a impressão de ser esse objeto
maior do que realmente era. Desviando o olhar do armário, ele o fixou na
parede. Esta lhe causava também uma sensação de enormidade.
Teriam as coisas
tido sempre essa força desumana de objetos maciços, frios e mortos? E quanto ao
suor que derramara para obtê-las, não lhes dera com ele a significação de sua
vida? Não podiam causar-lhe, por isso, alguma satisfação? Ou o que lhe
retribuíam era sua existência inanimada e indiferente a tudo? Não teria ele
próprio se transformado em uma coisa e por isso se sentia tão oco por dentro?
Com essas indagações, fechou os olhos e quis firmemente acreditar que poderia
trilhar o caminho de volta a si mesmo.
_________________________
Do livro “O
julgamento e outras histórias”.
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