domingo, 18 de dezembro de 2016

ESPÍRITO DE NATAL


 

                    Lucilene Gomes Lima
Era antevéspera de natal. Em toda parte, havia alguma coisa a lembrar o mês
 natalino: árvores artificiais ou verdadeiras cobertas de lampadazinhas multicores,
enfeites em forma de sino, bota ou rosto bonachão de Papai Noel.
Duas mulheres, integradas nesse clima, faziam compras.

- O que você acha, levamos essas bolas?

- Para a árvore?

- Claro, Sandra, para que mais poderia ser?
- Ô, Mãe! Eu estava distraída.

- Ora, leve aquelas brilhantes que eu acho mais bonitas.

- É,  as brilhantes são mais bonitas, mas quebram facilmente. Sabe quantas sobraram do Natal passado? Nenhuma. Vocês não têm cuidado com nada, não sabem que dinheiro custa ganhar.
- Por que está reclamando? Papai não lhe deu o dinheiro do décimo terceiro para fazer as compras?
- Quem disse que ele me deu o décimo?
- Ele mesmo.
- Mentiroso! Deu nada. Ele nem me mostrou o contracheque, ficou fazendo mistério. Olha, Sandra! Aquela árvore branca! Que linda! Eu queria tanto uma como aquela. Já faz cinco anos que a gente monta a mesma árvore. Nem existe mais aquele modelo. Essa é tão bonita, Sandra, olha...
É bonita, sim. Mas eu acho mais bonitas ainda aquelas naturais. Por que a gente não põe uma em frente lá de casa? Tem lugar que vende, mãe, já vem grande.
- Agora, só se for no ano que vem. Ia ficar lindo mesmo.
As duas gastaram aproximadamente uma hora e meia escolhendo os enfeites da árvore. Depois, entraram num supermercado para comprar os ingredientes da ceia. Tinham saído de casa pouco depois do meio dia e retornaram ao anoitecer. Vinham sobrecarregadas de sacolas. Não havia ninguém à porta para ajudá-las. Entraram, exaustas, chamando por alguém que estivesse em casa. 
- Pai!
- Afonso, Nelsinho, Júlia! Aonde foi todo mundo? Ai, Sandra, segure aqui se não essas coisas vão quebrar!
- Não posso. Nem o pai nem os meninos estão em casa?
Nesse momento, Afonso aparece, todo suado e ofegante.
- Vocês compraram tudo o que tinha nas lojas? Pensei que não voltariam mais hoje – diz ele, ajudando-as com os pacotes.
- Por que é que não veio logo ajudar a gente? Estou com meus braços moídos.
- Estava ocupado, tentando consertar o telhado.
- Está vendo, Sandra? Amanhã é véspera de Natal e o teu pai inventa de consertar o telhado. É sempre assim. Tudo cai nas minhas costas.
- Haja paciência! Se eu  não conserto, reclama; se conserto também reclama. Muitas telhas estão soltas lá em cima.
- Ora, deixe para consertar isso amanhã de amanhã!
- Amanhã de manhã? Nem pensar, minha filha! Não vou deixar de tomar meu chopinho na véspera de Natal com meus amigos para consertar telhado.
- Conserte amanhã à tarde, então, pai.
- Não, Sandra. Amanhã à tarde ele vai me ajudar a pendurar os enfeites lá fora. Todo mundo está com as frentes das casas decoradas e só nós é que vamos passar o Natal com essa casa toda desengonçada. Já basta que nem pintamos a casa esse ano. E quando eu pergunto pelo dinheiro o que ele responde? – “Você só fala em dinheiro, Iraci, não me aborreça, Iraci”
A noite da antevéspera prosseguiu marcada pela ansiedade com que aguardavam o dia seguinte. O tempo se manteve quente. Lá pela madrugada, contudo, enquanto todos dormiam, subitamente começou a ventar forte e o telhado que Afonso deixara por consertar ficou em pior estado.
Manhã do dia 24 de dezembro, véspera de Natal. Iraci cuida dos preparativos para a ceia. Enquanto corta, lava, tempera, cozinha alimentos, queixa-se ininterruptamente. De algum modo, essa atitude confere sentido a sua vida. Engana-se quem a ouve e julga que está descontente. Lamenta-se como se cantasse, como se fosse imprescindível expressar-se dessa forma.
- Na hora de comer, todo mundo aparece. Olha, essas batatas! Não aparece ninguém que descasque. A pia já está cheia de louça. Eu sou uma só. Quero ver que hora vou me desocupar para ajeitar meu cabelo e fazer minhas unhas. Júlia, bata esses ovos. Onde é que está a Sandra?
- Não sei, mãe.
- Agora ela desaparece. Quando queria que eu comprasse aquele vestido caro só vivia atrás de mim. Os filhos são uns ingratos mesmo.
- Assim está bom, mãe? – pergunta a menina, mostrando uma vasilha com claras de ovos batidas.
- Ah, deixa. Deixe isso aí. Esse bolo é muito complicado de fazer.
A menina continua mexendo as claras como se não a tivesse escutado.
- Pára! Eu disse para deixar, Júlia! Está estragando os ingredientes.
- Por que não faz outro bolo?
- Você não entende de nada. Não está vendo que é um bolo especial de Natal? Vá, pode ir brincar. Só está me atrapalhando. Quero saber que hora o Afonso vai me ajudar a colocar aqueles enfeites. Ai, me cortei! Júlia! Mas para onde foi essa menina?
No decorrer do dia, formaram-se nuvens escuras no céu. A chuva ameaçou cair por mais de uma vez, mas até o anoitecer, ainda não havia chovido. Afonso chegou e ajudou Iraci a enfeitar a fachada da casa. À noite, acenderam o jogo de luzes, dando o toque que faltava.
Às onze e meia, estava tudo preparado para a ceia. A família ficou de prontidão, aguardando que o relógio marcasse meia-noite para iniciar oficialmente a comemoração. Por essa altura, relâmpagos começaram a iluminar o céu, seguidos de estrepitosos trovões. Uma chuva forte e contínua desabou. As telhas que estavam soltas voaram devido a força do vento. Com isso, várias partes da casa ficaram expostas à chuva. Iraci desesperou-se, não podia crer numa tal desgraça na noite de Natal.
- Afonso, corre aqui – ela gritava com as duas mãos na cabeça – está alagando tudo. Conserta esse telhado pelo amor de Deus!
- Agora? Debaixo dessa chuva e com esses relâmpagos? Isso só pode ser consertado quando a chuva passar – ele respondeu, enquanto arrastava um móvel para um lugar onde a água ainda não penetrara.
- E por que você deixou isso acontecer? Que adianta a gente ter um homem em casa?
- Pois vá consertar você mesma! – ele retrucou aborrecidamente, cruzando os braços.
A chuva cessou às onze e quarenta e cinco. Afonso, Iraci e os filhos ficaram refugiados num cantinho enxuto da casa. Olhavam-se, calados. Júlia e Nelsinho foram os primeiros a romperem o silêncio.
- Mãe, estou com fome.
- Eu, também, mãe. Quando vamos comer?
Iraci levantou a cabeça que estava reclinada sobre a mão e olhou tristemente para o relógio pendurado na parede da sala, respingado de chuva.
- Ainda não é meia-noite. Só quando der meia-noite – disse, e desabou numa crise de choro.
- Ninguém teve disposição para começar a limpeza da casa que ficara em estado lastimável. A mesa posta com tanto capricho para a ceia encharcara-se. À meia-noite em ponto, Júlia e Nelsinho puderam finalmente comer. O peru de Natal estava imerso numa bandeja cheia d’água. As crianças provaram um pouco da porção da ceia que Iraci lhes serviu num prato e a devolveram quase da mesma forma. Ela se voltou com intenção de recriminá-las, mas seus rostos, expressando insatisfação, seus sapatos novos encharcados fizeram-na calar-se.
Os foguetes explodindo sucessivamente no céu, o som contínuo das buzinas dos carros e a alegria geral das pessoas saindo à porta das casas para se parabenizarem fizeram com que Iraci, Afonso, Sandra, Júlia e Nelsinho também se sentissem participantes da festa. Saíram todos para a rua, deram e receberam abraços, confraternizaram-se. E ali, em frente da casa, nada parecia ter dado errado. Os enfeites continuavam lá, as luzes apagavam e acendiam. Era Natal.
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Do livro “O julgamento e outras histórias”

 

             

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