Lucilene Gomes Lima
O uso particular que se faz de uma palavra,
muitas vezes, esclarece a sua significação do ponto de vista de quem a enuncia.
Nos tempos atuais, segundo uma política de Estado, bárbaro é um delito cometido
por um refugiado, mas não é bárbara a geopolítica econômica que arrasa um país
e leva seus cidadãos a se refugiarem.
A etimologia registra
que a palavra bárbaro vem do grego bárbaros e significa não grego,
estrangeiro. Os gregos representavam
através da onomatopeia bar bar bar
(aproximadamente tagarelice) toda língua que não era a língua grega, ou seja,
uma língua que consideravam um amontoado de sons que nada expressavam. Desse
modo, a palavra passou a designar os povos que não eram gregos, entre eles, os
egípcios, os persas, os medos, os fenícios e os romanos. Semanticamente, a
palavra caracteriza um uso particular que se tornou geral por extensão,
significando ser sem civilização, selvagem, rude, inculto, cruel, desumano.
No império romano, o
termo barbaru passou a designar os
estrangeiros que não compartilhavam das tradições gregas e romanas, na
realidade, povos distintos – godos, vândalos, saxões, hunos, francos, álanos,
suevos reunidos sob essa denominação devido às invasões sucessivas que minaram
e ruíram o império romano do ocidente. O historiador Edward Gibbon destaca, em Declínio e queda do império romano, no
entanto, que não só esses povos absorveram a língua e a cultura romana como a
cultura romana os absorveu: “[...] Já nos tempos de Adriano, os naturais
queixavam-se com razão de que a capital atraíra os vícios do universo e os
costumes das nações mais opostas. A intemperança dos gauleses, a esperteza e a
volubilidade dos gregos, a fera obstinação dos egípcios e dos judeus, a índole
servil dos asiáticos, e a dissoluta efeminada prostituição dos sírios
entremesclavam-se na variegada multidão que, sob a falsa denominação de
romanos, se atrevia a desdenhar as nações vassalas e seus soberanos que
demoravam além dos limites da cidade eterna” (1989, p. 428).
Michael Löwy, no texto
“Barbárie e modernidade no século 20”, chama a atenção de que Norbert Elias, ao
caracterizar o processo civilizador a partir do momento em que os indivíduos
não exercem mais violência uns contra os outros, de forma irracional, mas em
que o Estado atua como poder centralizador para controlar e conter a violência
entre os indivíduos, desconsiderou que o próprio Estado passou a ser um agente
de violência contra os indivíduos. Para Löwy, a história moderna, pós conquista
das Américas, repete a barbárie da história antiga de forma muito mais extensa,
massiva e sistemática. Seu texto fala justamente de um momento histórico em que
barbárie e tecnologia avançada coexistem, a considerar o contexto da Primeira
Guerra mundial: “[...] Jamais no passado tecnologias tão modernas – os tanques,
o gás, a aviação militar – tinham sido colocadas a serviço de uma política
imperialista de massacre e de agressão em uma escala tão imensa”. Löwy observa
que a história do século XX obriga a refletir sobre o conceito de “barbárie
civilizada” (http://www.antropomoderno.com.textos/brarbarie.shtm).
Baseando-nos nas
palavras do historiador inglês Edward Gibbon de que “[...] quase todas as
páginas da história estão manchadas de sangue civil [...]” (1989, p. 93), é
possível afirmar que a confluência entre barbárie e civilização já ocorria nas
civilizações antigas. Quando a civilização grega e a romana denominavam outras
culturas de bárbaras, desconsideravam que elas mesmas haviam praticado atos
bárbaros contra os povos que dominaram e que, no momento das invasões, esses
povos as tinham também como bárbaras invasoras. A língua grega era o elemento
indicador de civilização para os gregos e o critério para sua superioridade em
relação a outros povos cujas línguas ignoravam, embora, na língua grega, as
letras alpha e beta tenham sido adaptadas do alfabeto desenvolvido pelos fenícios
que, por sua vez, haviam-no desenvolvido
a partir do egípcio.
A “barbárie
civilizada” dos tempos modernos ocorre como política de Estado nos casos
exemplificados por Löwy (o genocídio nazista contra os judeus e ciganos, a
bomba atômica lançada contra Hiroshima e Nagasaki, O Goulag estalinista, a
guerra norte-americana no Vietnã), apesar de os estados modernos não se
considerarem bárbaros. Por outro lado, os modernos Estados de direito
consideram como bárbaras muitas leis aplicadas por antigas civilizações como,
por exemplo, o Código de Hamurabi que determinava que fosse cortada a orelha do
escravo insubmisso e que aquele que o acoitasse em fuga fosse punido com pena
capital, e bárbaros os princípios da educação espartana, modelo de rigor,
considerado pelo historiador Xenofonte e pelo filósofo Platão a última
perfeição, não obstante ela premiasse o delinquente. Os jovens espartanos eram
autorizados a roubar para matar a fome e se fossem apanhados eram sovados, não
por causa do delito propriamente, mas por terem se deixado apanhar. Em Esparta,
os bebês eram examinados ao nascer e se fossem considerados débeis, eram
levados às colinas onde eram abandonados para morrer à mingua. Séculos mais
tarde, a civilização ocidental moderna considera bárbaros os habitantes
autóctones do Novo Mundo por praticarem o infanticídio pelos mesmos motivos
praticados pelos espartanos. Os jovens espartanos também passavam por ritos tão
duros, cruéis, quanto os jovens indígenas do Novo Mundo em seus ritos de passagem.
Certamente, as
antigas civilizações e as modernas divergem quanto às condições de se assumirem
como civilizadas. Em Declínio e queda do império romano,
Gibbon refere o assassinato, a execução como comuns no império, atos que não
eram nem encobertos nem negados. As palavras do historiador romano Amiano
Marcelino, citadas por Gibbon, ilustram a noção de civilidade e justiça de
nobres romanos: “[...] Quando pedem água quente e um escravo demora a obedecer,
este é imediatamente castigado com trezentas chibatadas; no entanto, se o mesmo
escravo cometer um assassínio deliberado, o amo se limitará a observar
benignamente que se trata de um sujeito imprestável, e que, se ele repetir o
delito não escapará da punição [...]” (1989, p. 425).
O antigo código babilônico
de leis de Hamurabi é classificado em alguns livros de história como exemplo de
leis justas e humanas, embora sua justiça não fosse a mesma para todos os
indivíduos. O código expressa a hierarquia de poder, estabelecendo claramente a
diferença entre os sujeitos que nomina. O julgamento “Olho por olho, dente por
dente” só era aplicado aos ditos homens
superiores: “Se um homem superior arrancar o olho de outro homem superior,
deverá ter seu olho arrancado” (Apud Harari, 2017, p. 114). Os homens comuns
não pagavam com a parte de seu corpo a parte do corpo de outro homem comum que
houvessem destruído, mas com moeda, sobre a qual recaíam impostos para o
governo. Se fosse destruída parte do corpo de um escravo, só o escravo ficava
prejudicado e inutilizado, pois seu senhor recebia pelo delito a metade do
valor do escravo em prata. Se um homem superior batesse em uma mulher superior
e a fizesse abortar, ele deveria pagar dez siclos de prata pelo feto. O delito
contra a mulher propriamente ficava sem punição, mesmo sendo ela uma mulher
superior. Caso a mulher superior morresse, a filha do delinquente deveria ser
morta, não o filho. As filhas de quem
delinquisse, mesmo sem culpa, deveriam pagar na “justa medida”. Por esse
julgamento, percebe-se o quanto os judeus incorporaram leis sumérias e
babilônicas, uma vez que, na lei judaica (halachá),
a mulher que não tinha filhos era destituída de direitos e desprezada. No código de lei babilônico, se o delinquente
batesse em uma mulher comum e a fizesse abortar, deveria pagar cinco siclos de
prata; se ela morresse, trinta siclos. Nesse julgamento, novamente esclarece-se
que a perda ou a morte para os membros comuns da sociedade babilônica deveria
ser reparada em valor pecuniário menor do que o valor de um membro superior, e
que a vida de um membro comum não valia a vida de outro membro comum. Tanto a
vida quanto a morte estavam sujeitas a hierarquias nesse código. A mulher era
duplamente punida, pelo gênero e pela hierarquia social. A vida da mulher
superior valia mais que a vida da mulher comum e a vida da mulher comum valia
menos do que a vida do filho da mulher superior e menos do que a vida do filho
de quem a agravasse ou a matasse. A vida do filho da mulher comum valia menos
que a vida do filho da mulher superior e a vida da mulher comum não valia a
vida da filha do seu agressor e assassino e, sim, um valor monetário de trinta
siclos de prata. A vida do filho de uma escrava valia um valor de dois siclos
de prata e a vida da escrava, vinte siclos de prata pagos ao seu senhor.
Na antiguidade, todos
os impérios praticaram atos bárbaros, assim como na era moderna os estados
imperialistas: Grã-Bretanha, França, Alemanha, Estados Unidos, mas o texto de
Michael Löwy nos chama a atenção para uma evidência fundamental: em massacres
como os de Hiroshima e Nagasaki, o objetivo técnico burocrático do experimento
se sobrepõe a motivos de natureza religiosa ou baseada numa tradição.
Muitos casos
contemporâneos de violência de indivíduos contra indivíduos, por outro lado,
têm relação com a violência institucionalizada, técnico-burocrática, tutelada
pelo “Estado de direito democrático”. As políticas de Estado também fazem o
indivíduo. Um Estado que pune os que não podem pagar pelos trâmites da justiça
e não pune, ou não pune da mesma maneira, os que podem é um Estado violento,
bárbaro.
A barbárie moderna
desnuda a contradição de um sistema. Na antiguidade, não se proclamou
igualdade, liberdade, fraternidade entre os membros de uma sociedade, como se proclamou
na Revolução francesa burguesa de 1789, ou os princípios universais e eternos
de justiça na Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776 e, ao
mesmo tempo, matou-se, perseguiu-se, segregou-se. Os senhores do passado
proclamavam a inferioridade, a insignificância daqueles que eram vítimas de sua
barbárie, não escondiam sua arrogância sob a máscara da democracia. A
democracia, registra a história, tem seu berço na Grécia, no entanto, os gregos
não proclamavam a igualdade entre todos aqueles que habitavam o seu império. Os
gregos não criaram uma declaração universal de direitos, a cidadania grega era
reconhecida aos cidadãos gregos e não aos estrangeiros (no governo de Sólon foi
concedida a cidadania apenas aos estrangeiros artífices). Essa cidadania também
excluía tacitamente as mulheres e os escravos, sem meias palavras. No tempo da
política romana do pão e circo, o populismo não se confundia com o direito dos
pobres e escravos.
Há um grande otimismo
e euforia com as possibilidades da sociedade futura, comunicação, transporte, educação,
medicina avançados, apesar disso, muitos seres humanos que já têm acesso a
alguns desses avanços continuam comprometidos com a barbárie.
A semântica dos
tempos democráticos e hipermodernos expressa uma cultura da violência. Diz-se
“balada” para festa, divertimento; “bomba” para suplementos que prometem
acelerar o metabolismo; “detonar” para algo que desagrada; “irado” para algo
que agrada. Acostumamo-nos a ver e ouvir sobre violência no café da manhã, no
almoço e no jantar. Que fazer? Os fatos acontecem, é a realidade. Em seu
romance Isaias Caminha, Lima Barreto
representa um jornal que forja notícias. Diz o narrador sobre um personagem
desse jornal: “Se havia um atentado anarquista ou um terremoto na Europa e o
telegrama era por demais conciso, Adelermo tinha o encargo de desenvolvê-lo, de
explicá-lo, de reconstruir a cena para o gosto público [...]” (1990, p. 163).
Nos nossos dias, com sistemas de captação e transmissão tão avançados, não se
pode dizer que há escassez de informações, o “preenchimento” se dá de outra
forma. Como se se tratasse de telenovela, acompanham-se as tragédias da realidade
através de episódios formatados em série, com direito à exclusividade,
novidade, momentos de clímax repetidos à exaustão, remissíveis a outros tantos
casos. Como justificativa, diz-se que a violência existe e que precisamos tomar
conhecimento dela e, ao mesmo tempo, abre-se a possibilidade para que ela se
torne uma informação que entretenha. Diz-se que as execuções sumárias,
especialmente as relacionadas ao tráfico de drogas, são acertos de contas,
punição, exemplificação, demonstração de poder. No dia seguinte a um crime
ocorrido, já existem recalcitrantes e a punição e demonstração de poder
transformam-se em poder insano.
Temos evoluído
tecnologicamente e, no entanto, muitas evidências provam que temos involuído
humanamente. Perdemos a conta dos crimes repletos de versões desencontradas e
de irracionalidade nos motivos, seja quando se trata de indivíduos uns contra
os outros, seja de terrorismo de estado. Como apontou Löwy, a tortura não
deixou de ser um instrumento nos tempos atuais. Os crimes em que o ser humano
exercita o componente reptiliano de seu cérebro, em horror, não são diferentes
dos crimes de acerto de contas praticados por pessoas envolvidas com venda e
uso de entorpecentes nem da mortandade nos presídios praticada pelos detentos
entre si, quando de uma rebelião nem da mortandade praticada por autoridades
constituídas do estado, como ocorreu no massacre do Carandiru. Como não há
bondade humana inata, só a capacidade reflexiva desenvolvida pelos seres
humanos através dos séculos possibilita agir com bom senso.
Nos tempos
hiperviolentos, o prazer não é só matar, é também se mostrar matando, exibir a
violência em rede, como demonstram filmes do cineasta Pedro Almodóvar e como
demonstra a realidade em que presos filmam sua própria carnificina em rebeliões
nos presídios ou, no caso das execuções tipo “acertos de contas” em que duas
mulheres são esfaqueadas e tudo é visto ao vivo. As câmeras estão por trás de
todos os casos, são as imagens que tanto trazem esclarecimentos quanto lançam
mais dúvidas. Nada tão fundamentalmente diferente, nesses crimes, das loucuras
praticadas por nobres senhores nos tempos do império romano, exceto por um
detalhe que destoa daqueles tempos – o vedetismo das câmeras. São elas que põem
em dúvida versões possivelmente falsas para os crimes. Muitos assassinos
estiveram à mercê desse instrumento que parecem não compreender bem o alcance.
Não pararam para pensar que as imagens os denunciariam. Os assassinos parecem
não ter problema de consciência em relação a seus crimes, como teve o
personagem Raskólhnicov, do romance Crime
e castigo, de Fiódor Dostoievski.
Matam e, despreocupadamente, vão ao shopping
tomar um sorvete ou combinar uma versão para o crime ou matam num cargo
governamental e o governo diz não ser responsável por essa ação. A tecnologia
talvez torne mais fácil cometer os crimes, mas também torna mais fácil
investigá-los.
Quando o escritor
Isaac Asimov idealizou uma sociedade robotizada, os seus robôs eram exemplos de
comportamento ético. Mesmo sendo máquinas não agiam sem escrúpulos e na mais
completa indiferença à vida e ao sentimento dos outros. Para isso, ele planejou
que os robôs seriam programados para obedecer a três leis que, na verdade,
correspondiam às leis sobre as ferramentas. A primeira lei dizia que um robô
não poderia fazer mal a um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser
humano sofresse algum mal. A segunda, que um robô deveria obedecer às ordens
dos seres humanos, a não ser que entrassem em conflito com a primeira lei. E a
terceira, por fim, que um robô deveria proteger a própria existência, a menos
que essa proteção conflitasse com a primeira ou a segunda lei.
Asimov especula um
impasse para a convivência entre seres humanos e robôs. Se as três leis da
robótica implicam que um robô não deve fazer mal a um ser humano, deve
protegê-lo e obedecê-lo, além de que o robô deve proteger a própria existência,
o robô não terá liberdade de agir quando o mal a um ser humano vier de outro
ser humano ou de um robô. Essa é uma questão não somente de funcionamento de
máquinas, mas, sobretudo, uma questão ética. Asimov propõe para solução desse
impasse as “leis da humânica” que consistem em o ser humano não fazer mal a
outro ser humano, dar ordens a um robô que preservem a existência desse robô, a
menos que essas ordens não ponham em risco os seres humanos, e não fazer mal a
um robô ou permitir que ele sofra algum mal, a menos que seja para salvar um
ser humano. Em resumo: com as leis da robótica e da humânica, os conflitos
seriam resolvidos. Isso também permite deduzir que a diferença entre robôs, os
quais para Asimov não passam de ferramentas, e seres humanos está na consciência
e na ética. A consciência é o que atrapalha Raskólhnkov em seu plano do crime
perfeito. Seria possível programar um robô com consciência e, em caso positivo,
qual a utilidade disso, se um robô deve ser uma ferramenta que otimiza os
resultados e não um ser humano sujeito a impasses e imprevisões?
Instrumentos de comunicação mais avançados, sistemas de educação virtual, carros que se autodirigem, carros que voam, robôs que fazem e comandam robôs não tornam, necessariamente, seres humanos melhores. Morria-se cedo em tempos passados pela não existência de antibióticos para curar uma infecção, mas hoje também se morre cedo pelo uso excessivo de antibióticos. No artigo “A máquina e o robô”, publicado em 1978, Isaac Asimov lembra que toda descoberta e invenção humanas trazem a possibilidade do bem e do mal: “[...] qualquer avanço tecnológico, por mais fundamental que seja, tem esse aspecto duplo de bem e mal e, em consequência, é encarado com um misto de amor e de ódio” (s.d, p. 384) É conveniente outra observação no mesmo artigo de Asimov: “[...] Você pode usar uma faca para matar os inimigos, mas quando ela está fora do seu controle, pode ser usada pelos inimigos para matá-lo [...]” (s.d., p. 384). Essa observação pode servir para avaliar a ação daqueles que manipulam tecnologias, sejam em políticas de Estado de higienização étnica, sejam em ações de razão puramente instrumental, como pode servir para os casos individuais de apatia moral. Se os instrumentos avançam e muitos seres humanos regridem, como temos visto, que se pode esperar da vida humana na Terra? Apenas seres humanos melhores formam seres humanos melhores.
*Publicado originalmente em 2019
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