Lucilene Gomes Lima
Muitos daqueles que não estão participando de uma greve veem-na
como um prejuízo certo para suas vidas. Por exemplo, greve dos profissionais de
transportes coletivos que impede de ir ao trabalho, greve de professores que
impede os alunos de estudarem e se formarem, de profissionais médicos que
impede o acesso aos serviços de saúde.
Repetem-se os pensamentos e julgamentos banais sobre a
greve apregoados pelos meios de informação, entretenimento e consumo – a greve
não muda nada, os grevistas são preguiçosos, podemos viver sem a greve, buscar
meios de reivindicação mais criativos, mais “produtivos”, mais úteis. No
editorial do telejornal do grupo Bandeirantes, levado ao ar em 16 de outubro de
2013, destacou-se, sobre a greve dos professores no Rio de Janeiro, no mesmo
ano, que ela prejudicou milhares de alunos, que “deixou os alunos sem educação
alguma, liquidou o ano letivo de milhares de jovens”, que os alunos “passarão
em branco por 2013, sofrendo prejuízos por toda a vida”. A “boa intenção” que
justifica a greve – melhorar a educação – é boa, mas não é legítima porque “a
causa se perde na longa duração”. O questionamento no editorial é: “A perda (de
tempo) é um preço justo?” Em editorial anterior do mesmo grupo, de 07 de
outubro de 2011, sobre a greve dos Correios (nesse caso, a greve se denomina
como do órgão, não dos profissionais) a pauta é construída em torno do
descrédito e da falta de autoridade do poder público para reprimi-la. A atuação
das autoridades não é criticada pelo estado de coisas que permitiu serem
produzidas para os trabalhadores (sucateamento, aumento da carga de trabalho,
achatamento salarial, desvio de recursos), mas por não reprimir os grevistas.
Pontuam-se a falta de ação das autoridades diante de uma greve e a “covardia do
governo porque não toma providências”. A greve, sentencia o referido grupo no
editorial, “significou 23 dias seguidos de desrespeito à população brasileira”.
O comentário de Alexandre Garcia (no grupo Globo) sobre a greve dos Correios é
mais dúbio, diz que “o público sai perdendo sempre na greve”, cantilena usual
dos editoriais, mas, também, acrescenta a informação de que os carteiros vão
ter de trabalhar no sábado e domingo para por a correspondência em dia. O
discurso dos meios de informação, entretenimento e consumo ecoa o discurso dos
empregadores, dos patrões, é unilateral.
Os trabalhadores desses meios são trabalhadores
assalariados, como outros, apesar de serem porta-vozes dos patrões. Quando
narram a opinião do grupo em que trabalham, alguns pensam como o grupo, outros
endossam seu posicionamento por temerem expressar sua opinião e perderem o
emprego. Ao se desligarem desses grupos por alguma obrigação empregatícia que o
empregador não cumpriu, por um reajuste salarial não obtido, reivindicam na
justiça seus direitos e enquanto os direitos não são reconhecidos judicialmente
e o contrato de trabalho que assinaram continua em vigência, recusam-se a
trabalhar. Não acontece situação análoga quando um empregador de outro setor
promete um reajuste para uma categoria de trabalhadores e não cumpre, quando
oferece um reajuste abaixo das perdas salariais, quando retira paulatinamente
direitos e precariza as condições de trabalho de categorias de trabalhadores e
esses trabalhadores reivindicam seus direitos?
Trabalhadores se acostumam a apanhar o ônibus todos os
dias e a não se perguntarem como esse ônibus trafega, em que condições o
motorista dirige e por isso se surpreendem quando a categoria de motoristas de repente faz greve. As condições de
trabalho dos motoristas e cobradores afetam diariamente os passageiros também,
pois a precarização das condições de trabalho de trabalhadores de um
determinado setor público ou privado, como os bancos e as empresas de
transporte coletivo, por exemplo, atinge os usuários, num efeito cascata. Um
conto exemplar de Antônio Alcântara Machado. “Apólogo brasileiro sem véu de
alegoria” sequencia em seu enredo essa letargia cotidiana, o desaperceber da
precariedade em que se vive, através da história de uma viagem de trem de
Maguari para Belém, levando trabalhadores de um matadouro. Os vagões do trem
estão todos sem luz, mas os passageiros parecem não se importar, encaram
normalmente a viagem. Por força do hábito de sempre assim viajarem, conversam,
cantam, assobiam. Somente um passageiro, um velho flautista cego, estranha a
falta de luz, quando o seu guia lhe informa que o trem trafega no escuro. Ele
estranha e se inquieta, indigna-se, incitando os outros passageiros a
protestar. Só então é que os passageiros percebem o tratamento aviltante que
lhes é dado, apesar de pagarem a passagem, e o coro de reivindicações engrossa,
cobrando o direito que é usurpado. A revolta dos passageiros magarefes faz com
que eles iniciem uma ação de protesto, cortando os assentos dos vagões como se
estivessem extirpando a carne no matadouro. Depois que o trem chega à estação em
Belém, a polícia é informada do acontecimento e abre-se um inquérito para
investigar o ato dos revoltosos, mas a maioria nega participação no evento e a
dar informações. Somente um passageiro relata que o episódio da revolta se deu
por causa da falta de luz nos vagões e que quem começou o protesto foi um velho
cego. O delegado não acredita em suas
palavras, toma-as como mentira e desrespeito e o prende.
Do outro lado da greve do trabalhador, há o consumidor, que não é uma ilha como
ilusoriamente nos querem fazer acreditar os meios de informação, entretenimento
e consumo, mas também um trabalhador. O pensamento de que reivindicar não
resulta em nada pode ser aplicado a esse
consumidor/usuário quando ele for comprar um produto com um preço na etiqueta e
o produto estiver com um preço superior no caixa, quando um produto estiver com
a data de validade adulterada em relação a sua conservação e condição de ser
consumido, quando houver majoração de serviços ou mudança de qualidade e
quantidade sem o consumidor contratante desse serviço ser consultado, quando um
serviço for prometido e não prestado, quando se comprar um produto com defeito
ou quando um conserto de um produto for mal realizado ou nem realizado?
Assim como os empregados reivindicam direitos aos
empregadores, empregadores fazem valer seus direitos
em relação aos seus empregados. O empregador diz o que é melhor para ele
(empregador) quando precariza o trabalho do empregado, contratando-o temporariamente,
reduzindo seus direitos e garantias trabalhistas; quando reduz o salário do
empregado; quando aumenta a jornada de trabalho etc. Desse modo, o empregado é
aviltado em seus direitos com prejuízos para toda a vida.
O detentor dos meios de produção que pode expressar seus
interesses através dos salários que paga aos seus empregados, da jornada de
trabalho que acorda com eles, da demissão com ou sem justa causa no setor
privado, da exoneração no setor público, dos benefícios que oferece/cumpre,
segundo as leis trabalhistas, tem vários direitos.
O empregado tem o direito de se recusar a trabalhar, dizer não a uma condição
injusta e, fazendo isso, ele corre o risco de ser demitido. O empregador não
corre riscos por reduzir salários, demitir, o sistema o protege, ele pode fazer
tudo isso apoiado por associações, federações da indústria, do comércio e por
instituições do Estado. Capital e trabalho não estão, portanto, em igualdade de
condições. Diz Alexandre Garcia que “o público sai perdendo sempre numa greve”,
que a greve dos Correios prejudica a população. Se a greve do funcionalismo
público, como ressalta Garcia, é também contra o patrão e, por isso, lembra o
jornalista, torna-se despropositada por ser o patrão o próprio público, o
público, como patrão, ainda que seja pelo sistema de representação democrática,
no qual não é ele que gerencia diretamente os recursos, tem o direito de
requerer os lucros do seu investimento em impostos, taxas.
A maioria da população sofre com a espera para ser
atendida nos postos de saúde e nos hospitais, com o tratamento ou não
tratamento que lhe é dado. Sofre como correntista/consumidora com os juros
escorchantes, com as facilidades enganosas dos cartões de crédito, dos
empréstimos financeiros e não somente quando a greve dos transportes lhe deixa
sem meios de ir ao trabalho ou ao lazer, nem somente quando a greve dos
bancários dificulta as operações financeiras e de solvência de seus débitos,
nem só quando os médicos, técnicos, profissionais da área de saúde cruzam os
braços numa greve.
A crítica negativa à greve dos outros é a expressão para
a falta de solidariedade humana. O empregado não grevista de hoje poderá ser o
empregado grevista de amanhã, conforme aquela reflexão maiakoviskiana que prevê
as consequências de não nos importarmos ou não nos incluirmos entre os outros.
A principal mensagem dessa reflexão é que se não nos importarmos com o problema
dos outros por ele não nos atingir, endossando, no caso da greve, o pensamento
banal de que nada muda, então, quando quisermos, e precisarmos, já não poderemos
mais fazer a greve porque a deslegitimamos.
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