quarta-feira, 5 de abril de 2023

A PRESSA É A ALMA DOS NOSSOS NEGÓCIOS

                                                                                                      Lucilene Gomes Lima


A música “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola, é uma síntese criativa sobre o tempo e a vida na era em que vivemos. O conteúdo dos versos não é mais que um diálogo banal de qualquer dia, de todos os dias: Olá, como vai? /Eu vou indo e você, tudo bem? /Tudo bem eu vou indo correndo /Pegar meu lugar no futuro, e você? /Tudo bem, eu vou indo em busca /De um sono tranquilo, quem sabe... /Quanto tempo... pois é... /Quanto tempo /Me perdoe a pressa /É a alma dos nossos negócios /Oh! Não tem de quê /Eu também só ando a cem /Quando é que você telefona? /Precisamos nos ver por aí /Pra semana, prometo talvez nos vejamos /Quem sabe? /Quanto tempo... pois é... (pois é... quanto tempo...) /Tanta coisa eu tinha a dizer /Mas eu sumi na poeira das ruas/ Eu também tenho algo a dizer /Mas me foge a lembrança /Por favor, telefone, eu preciso, /Beber alguma coisa, rapidamente /Pra semana /O sinal... /Eu espero você /vai abrir... /Por favor, não esqueça, /Adeus...

Esses versos caracterizam a vida cotidiana em aspectos fundamentais, sobretudo, como se processa o seu compasso. Quando os personagens se falam sem tempo de realmente conversar ou dialogar expressam o ritmo acelerado que comanda o viver. A leitura da ambiguidade transmitida nos versos Me perdoe a pressa /É a alma dos nossos negócios revela que os falantes estão com pressa não somente porque alguma atividade os força a isso, mas porque a própria pressa se faz a razão principal de seu viver.

Se o passado parece ter sido posto de lado na vida contemporânea, não é no presente que se vive, é o futuro que comanda a vida. Para o personagem que “vai indo” de modo algum estão apenas transcorrendo os dias de sua vida. Os gerúndios que se desdobram “vou indo correndo” expressam a ideia do movimento contínuo que se caracteriza no verso seguinte: “Pegar meu lugar no futuro, e você?” Na resposta proferida pelo outro interlocutor, apresenta-se o estado de constante vigília e agonia, também característico da vida contemporânea: “Tudo bem, eu vou indo em busca/De um sono tranquilo, quem sabe...”

A vida dinâmica, que não se prende ao passado nem se detém no presente, carece de motivação para uma conversa: “Quanto tempo... pois é... quanto tempo...”. É veloz: “Eu também só ando a cem” e sem nexo de causalidade, como os versos do diálogo desconcertado: “Quando é que você telefona? /Precisamos nos ver por aí /Pra semana, prometo, talvez nos vejamos /Quem sabe?”. De tão abarrotada, a vida também se perde no vácuo da memória na fala dos interlocutores: “Tanta coisa eu tinha a dizer”/ Mas eu sumi na poeira das ruas/ Eu também tenho algo a dizer/ Mas me foge a lembrança” e as falas voltam a se embaralhar: “Por favor, telefone, eu preciso /Beber alguma coisa, rapidamente /Pra semana /O sinal /Eu espero você /vai abrir.../Por favor, não esqueça, /Adeus...”.

Quem pode deixar de sentir alguma afinidade com o conteúdo desses versos? Mesmo quem se sinta emparedado pela vida contemporânea e não compactue com seus valores, não pode deixar de experimentar seu turbilhão. Vive-se sob estresse e estresse e velocidade combinam. Quer-se tudo mais rapidamente, a conexão de rede mais rápida, o relacionamento amoroso mais rápido, o sexo mais rápido, sem preliminares, a comida mais rápida, atropelando, inclusive, o metabolismo animal e vegetal, o entorpecente mais rápido, que faça efeito instantâneo, o dinheiro mais rápido que compre tudo a toda hora, o desaparecimento do corpo mais rápido após a morte, através da cremação, a educação mais rápida, para ir direto ao ponto, ao que interessa, ao invés do conhecimento profundo, o conhecimento aplicado ao mercado. Rapidez engloba quantidade. Mais rápido, mais. Querer tudo, fazer tudo, acumular tudo. Fazer vários cursos, fazer um curso em menos tempo, experimentar tudo, sem ter tempo de saber o porquê de se experimentar. A ânsia, a angústia de experimentar tudo está em tudo. O marketing proclama “tudo tem importância”, as mídias determinam “Tudo agora”. A velocidade está em tudo. Tudo o que levava tempo para se desenvolver e que demorava a se acabar, vivo ou artificial, tem seu começo e seu fim acelerados. “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, conforme se lê em O capital: “[...] Todos os limites da moral e da natureza, de idade e sexo, de dia e noite, foram rompidos. O capital celebrou suas orgias” (Marx, apud Berman, 1986). E o que é a letra de outra música, também composta por Paulinho da Viola, “Pecado capital” se não outra síntese dessa vida comandada pelo capital: “Dinheiro na mão é vendaval /É vendaval! /Na vida de um sonhador /De um sonhador! /Quanta gente aí se engana /E cai da cama/ Com toda a ilusão que sonhou /E a grandeza se desfaz /Quando a solidão é mais /Alguém já falou... /Mas é preciso viver /E viver não é brincadeira não /Quando o jeito é se virar  /Cada um trata de si /Irmão desconhece irmão /E aí! /Dinheiro na mão é vendaval /Dinheiro na mão é solução /E solidão! [...]”

Mas, voltemos ao título da letra “Sinal fechado” – por que ela assim se intitula, se fala de um tempo consumido, da celeridade voraz dos tempos contemporâneos? Em primeiro lugar, porque o sinal está fechado para a vida lenta, gradativa e, realmente, progressiva; em segundo, porque somente num breve momento, como o de um sinal fechado, é possível conversar, é possível sair de uma rede que não socializa e, sim, individualiza, e realizar uma comunicação ainda que fragmentada. Como o tempo contemporâneo e suas antinomias, a letra e a realização musical são representadas por descompassos.  A letra fala de uma correria crônica num tempo em que o que mais se perde é tempo e é cantada na voz pausada, tranquila de seu compositor num ritmo lento, elegíaco, entre as pausas das estrofes.

Mestre Paulinho (mais um mestre na periferia do capitalismo) adaptou com sabedoria o plano de expressão de sua letra ao plano de conteúdo. Enquanto o conteúdo dos versos é aparentemente simples, a forma como esses versos se organizam demonstra um acurado senso de reflexão.


*Publicado originalmente no blog em 02.11.2018

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