Lucilene Gomes Lima
A música “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola, é
uma síntese criativa sobre o tempo e a vida na era em que vivemos. O conteúdo
dos versos não é mais que um diálogo banal de qualquer dia, de todos os dias: Olá, como vai? /Eu vou indo e você, tudo
bem? /Tudo bem eu vou indo correndo /Pegar meu lugar no futuro, e você? /Tudo
bem, eu vou indo em busca /De um sono tranquilo, quem sabe... /Quanto tempo...
pois é... /Quanto tempo /Me perdoe a pressa /É a alma dos nossos negócios /Oh!
Não tem de quê /Eu também só ando a cem /Quando é que você telefona? /Precisamos
nos ver por aí /Pra semana, prometo talvez nos vejamos /Quem sabe? /Quanto
tempo... pois é... (pois é... quanto tempo...) /Tanta coisa eu tinha a dizer /Mas
eu sumi na poeira das ruas/ Eu também tenho algo a dizer /Mas me foge a
lembrança /Por favor, telefone, eu preciso, /Beber alguma coisa, rapidamente /Pra
semana /O sinal... /Eu espero você /vai abrir... /Por favor, não esqueça, /Adeus...
Esses versos caracterizam a vida cotidiana em
aspectos fundamentais, sobretudo, como se processa o seu compasso. Quando os
personagens se falam sem tempo de realmente conversar ou dialogar expressam o
ritmo acelerado que comanda o viver. A leitura da ambiguidade transmitida nos
versos Me perdoe a pressa /É a alma dos nossos negócios revela que os
falantes estão com pressa não somente porque alguma atividade os força a isso,
mas porque a própria pressa se faz a razão principal de seu viver.
Se o passado parece ter sido posto de lado na vida
contemporânea, não é no presente que se vive, é o futuro que comanda a vida.
Para o personagem que “vai indo” de modo algum estão apenas transcorrendo os
dias de sua vida. Os gerúndios que se desdobram “vou indo correndo” expressam a
ideia do movimento contínuo que se caracteriza no verso seguinte: “Pegar meu
lugar no futuro, e você?” Na resposta proferida pelo outro interlocutor,
apresenta-se o estado de constante vigília e agonia, também característico da
vida contemporânea: “Tudo bem, eu vou indo em busca/De um sono tranquilo, quem
sabe...”
A vida dinâmica, que não se prende ao passado nem se
detém no presente, carece de motivação para uma conversa: “Quanto tempo... pois
é... quanto tempo...”. É veloz: “Eu também só ando a cem” e sem nexo de
causalidade, como os versos do diálogo desconcertado: “Quando é que você
telefona? /Precisamos nos ver por aí /Pra semana, prometo, talvez nos vejamos /Quem
sabe?”. De tão abarrotada, a vida também se perde no vácuo da memória na fala
dos interlocutores: “Tanta coisa eu tinha a dizer”/ Mas eu sumi na poeira das
ruas/ Eu também tenho algo a dizer/ Mas me foge a lembrança” e as falas voltam
a se embaralhar: “Por favor, telefone, eu preciso /Beber alguma coisa,
rapidamente /Pra semana /O sinal /Eu espero você /vai abrir.../Por favor, não
esqueça, /Adeus...”.
Quem pode deixar de sentir alguma afinidade com o
conteúdo desses versos? Mesmo quem se sinta emparedado pela vida contemporânea
e não compactue com seus valores, não pode deixar de experimentar seu
turbilhão. Vive-se sob estresse e estresse e velocidade combinam. Quer-se tudo
mais rapidamente, a conexão de rede mais rápida, o relacionamento amoroso mais
rápido, o sexo mais rápido, sem preliminares, a comida mais rápida,
atropelando, inclusive, o metabolismo animal e vegetal, o entorpecente mais
rápido, que faça efeito instantâneo, o dinheiro mais rápido que compre tudo a
toda hora, o desaparecimento do corpo mais rápido após a morte, através da
cremação, a educação mais rápida, para ir direto ao ponto, ao que interessa, ao
invés do conhecimento profundo, o conhecimento aplicado ao mercado. Rapidez
engloba quantidade. Mais rápido, mais. Querer tudo, fazer tudo, acumular tudo.
Fazer vários cursos, fazer um curso em menos tempo, experimentar tudo, sem ter
tempo de saber o porquê de se experimentar. A ânsia, a angústia de experimentar
tudo está em tudo. O marketing
proclama “tudo tem importância”, as mídias determinam “Tudo agora”. A
velocidade está em tudo. Tudo o que levava tempo para se desenvolver e que
demorava a se acabar, vivo ou artificial, tem seu começo e seu fim acelerados.
“Tudo o que é sólido desmancha no ar”, conforme se lê em O capital: “[...] Todos os limites da moral e da natureza, de idade
e sexo, de dia e noite, foram rompidos. O capital celebrou suas orgias” (Marx, apud
Berman, 1986). E o que é a letra de outra música, também composta por Paulinho
da Viola, “Pecado capital” se não outra síntese dessa vida comandada pelo
capital: “Dinheiro na mão é vendaval /É
vendaval! /Na vida de um sonhador /De um sonhador! /Quanta gente aí se engana /E
cai da cama/ Com toda a ilusão que sonhou /E a grandeza se desfaz /Quando a
solidão é mais /Alguém já falou... /Mas é preciso viver /E viver não é
brincadeira não /Quando o jeito é se virar
/Cada um trata de si /Irmão desconhece irmão /E aí! /Dinheiro na mão é
vendaval /Dinheiro na mão é solução /E solidão! [...]”
Mas, voltemos ao título da letra “Sinal fechado” –
por que ela assim se intitula, se fala de um tempo consumido, da celeridade
voraz dos tempos contemporâneos? Em primeiro lugar, porque o sinal está fechado
para a vida lenta, gradativa e, realmente, progressiva; em segundo, porque
somente num breve momento, como o de um sinal fechado, é possível conversar, é
possível sair de uma rede que não socializa e, sim, individualiza, e realizar
uma comunicação ainda que fragmentada. Como o tempo contemporâneo e suas
antinomias, a letra e a realização musical são representadas por
descompassos. A letra fala de uma
correria crônica num tempo em que o que mais se perde é tempo e é cantada na
voz pausada, tranquila de seu compositor num ritmo lento, elegíaco, entre as
pausas das estrofes.
Mestre Paulinho (mais um mestre na periferia do
capitalismo) adaptou com sabedoria o plano de expressão de sua letra ao plano
de conteúdo. Enquanto o conteúdo dos versos é aparentemente simples, a forma
como esses versos se organizam demonstra um acurado senso de reflexão.
*Publicado originalmente no blog em 02.11.2018
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