quarta-feira, 16 de março de 2022

A MORTE DE UM ANIMAL

 Isaac Warden Lewis

 

Caminhava por uma rua movimentada.

Avistei um animal morto.

Havia sido atropelado.

Ninguém se preocupava.

Era um gato.

 

Caminhava por uma rua movimentada.

Avistei um animal morto.

Havia sido envenenado.

Ninguém se preocupava.

Era um cachorro.

 

Caminhava por uma rua movimentada.

Avistei um animal morto.

Ninguém sabia a causa da sua morte.

Ninguém se preocupava.

Não era um gato.

Não era um cachorro.

Era um homem.

 

.............

Do livro “Sentimento e consciência”

 

terça-feira, 15 de março de 2022

UMA VIDA PARA VIVI

 

Nada em Vivi agora lembrava outros tempos.

Recostada na grade do portão da casa de seus donos, resumida à pele ossos e feridas, ela dava, de instante a instante, longos suspiros como a lastimar sua sorte. Ninguém lhe dizia mais qualquer palavra agradável. Quando se lembravam de sua incômoda presença, era para lhe lançar um olhar de asco ou para enxotá-la a um lugar o mais distante possível.

À noite, recolhia-se para os fundos da casa. Ali mesmo jogavam sua comida. Ela cheirava, provava um bocado e abandonava o restante às formigas. Nos bons tempos, a comida era recebida com festa. Era uma comida melhor, também. Depois que ela se tornou abjeta, reservaram-lhe a pior alimentação: restos de comida estragada e pelancas fétidas.

A sua presença se tornou completamente desnecessária quando chegou o novo cachorro. Viu a alegria dos donos da casa ao recebê-lo, as crianças brincarem com ele na mais expansiva alegria, os cuidados que recebeu, a coleira nova, o banho.

Recolheu-se definitivamente para os fundos da casa porque a frente havia sido reservada para o novo cão. Não poderia saber, entretanto, que os donos tinham planos de se livrarem dela o mais rapidamente possível. Assim foi que, um dia, chegaram os homens do canil para levá-la.

Presenciou a violência da captura dos cães que se encontravam perambulando pela rua e quando chegou a sua vez de entrar no carro, uivou com tanto desespero que parecia estar sendo sacrificada.

Deixava para sempre a casa onde tinha vivido desde pequena. Nunca saíra daquela rua ou daquele bairro. Poucas vezes transpusera o portão da casa. Era cativa, mas se acostumara a isso. Sua vida estava ligada aos limites da casa e guardá-la era sua única tarefa.

Após a chegada ao canil, ela e os outros foram forçados a entrarem num grande engradado. Incapaz de compreender o que isso significava, ela aguardou resignadamente sua sorte.

Para os funcionários do canil, a expectativa em relação à chegada dos cães era sempre a mesma.

- Mais vadios para sacrificar? – perguntava um funcionário, apontando para um grupo de cães recém-chegados.

- Pois é. Fizemos uma limpeza na rua, mas tem uma que veio de encomenda. Ficou imprestável e os donos queriam se livrar dela.

Um homem que observava a chegada dos cães se aproximou e, curioso em relação à conversa, indagou:

- Vão sacrificar todos os cachorros?

Os funcionários se entreolharam. A pergunta os surpreendeu e como desconheciam o interlocutor, interessaram-se em saber quem era e o que estava fazendo ali.

É dono de algum desses cachorros?

- Não, não – esquivou-se o desconhecido. – Sou primo do Ivan, estou esperando por ele.

- O Ivan não vem trabalhar esse mês, está de férias – informou o funcionário.

- Ah ... – murmurou o desconhecido, desapontado pela viagem perdida.

O funcionário, notando que o homem não tinha aspecto de um morador da cidade, perguntou:

- Veio de muito longe para falar com ele?

- Sim, moro num sítio longe da cidade. Vou voltar ainda hoje, aproveitando uma carona.

- E está interessado em algum desses cachorros?

- Um cachorro faz falta.

- Se quiser levar algum...

O homem aproximou-se do grupo de cães, olhou-os com atenção e apontou para Vivi, dizendo:

- Posso levar essa do pelo marrom?

O funcionário riu e duvidou:

- Essa cadela velha? Por que não escolhe outro?

- Quero essa. Tem focinho de caçadora. Eu não me engano.

- Mas está tão feia e magra!

- Ela vai ter muito o que comer no mato.

- Se é assim, então, pode levar.

Vivi não fez objeção a que o homem amarrasse uma corda em seu pescoço e assim ele a levou do canil. Viajaram na carroceria de uma caminhonete por vários quilômetros. Por fim, a caminhonete parou em frente a uma estrada de barro. Desceram e, a partir daí, caminharam um longo percurso a pé. Entraram num caminho cercado por uma mata densa e foram dar numa clareira onde se avistava uma casa pequena, de paredes de madeira e cobertura de zinco.

Vivi estava tão cansada que se prostrou no tapete de folhas à entrada da clareira. A língua de fora, o coração batendo num ritmo acelerado. O som de sua respiração se destacava no silêncio do lugar. O homem compreendeu que ela não poderia dar mais um passo e não insistiu que o acompanhasse, desamarrou a corda de seu pescoço e seguiu sozinho até a casa.

Todo o dia transcorrera de forma inusitada para Vivi, a começar pela partida da casa, o transporte para o canil até sua chegada àquele lugar. Vira tantas coisas e percebia-se num mundo completamente diferente, olhava ao redor e não via os muros da casa, o portão. Seu faro detectava os odores novos dos frutos adocicados caídos no chão, das cascas das árvores, úmidas pela água da última chuva que caíra.

Depois que se sentiu mais aliviada do cansaço da viagem, ela matou a sede numa poça d’água. Em pouco tempo, escureceu e o lugar transformou-se em uma algazarra de sons.

Ela nunca havia estado numa tal escuridão, via apenas pequenos pontos de luz que acendiam e apagavam. Essa dança dos vaga-lumes a deixou temerosa. Foi- se esconder embaixo da casa. Pelas frestas das tábuas do assoalho, apareceram outros pontos de luz. Ela percebeu que ali estaria mais segura e se manteve quieta, esperando.

Estava faminta e à exata hora em que costumavam lhe trazer o alimento já guardava ansiosamente. Passaram-se horas e nada veio, mas ela continuou esperando. E esperou a noite toda.

Somente quando amanheceu, o homem saiu de casa. Ela acompanhou atentamente todos os movimentos dele. Tentando atrair sua atenção, passou a segui-lo.

Chegando até um riacho, ele arregaçou as pernas da calça, molhou os pés na água, depois apanhou um pouco de água numa cuia e lavou o rosto.

Vivi não ousou se aproximar, estava com sede, mas a visão de tanta água lhe causava temor.

O homem continuou ignorando-a. Sentou-se à beira do riacho e começou a pescar. Fisgou alguns peixes, fez um fogo e começou a assá-los.

O cheiro do peixe assado impacientou-a. Seus olhos, fixos no homem, tinham uma expressão suplicante.

O homem, que parecera indiferente até aquele momento, compadeceu-se em vê-la tão aflita por um alimento e atirou um pedaço de peixe para junto dela. Ela engoliu tudo de uma só vez. O alimento compartilhado foi o primeiro elo de comunicação entre os dois. Grata, ela veio se deitar quase aos pés do homem. Ele deu três leves batidas em sua cabeça e começou a falar com a cadela como se ela fosse capaz de entender suas palavras.

- Você estava esperando que eu lhe desse comida? Então não é uma caçadora como eu pensava?

Vivi fez um movimento de cabeça, projetando o focinho para cima e ele interpretou o gesto como uma resposta.

- Você é mesmo uma caçadora? É isso que quer me dizer? Pois vamos ver, vamos ver. Mas, agora, quer que eu divida minha comida com você?

Quando ela viu o pedaço de peixe balançando entre os dedos do homem, deu a resposta mais convincente possível, agitando o rabo e salivando abundantemente.

No caminho de volta a casa, Vivi acompanhou o homem lado a lado. Seu andar e seu ar de altivez demonstravam que sentia satisfação de estar na companhia do novo dono. Às vezes, ela se adiantava a frente dele, atraída por algum movimento entre as folhagens, mas retrocedia quando se deparava com a mata cerrada e voltava a acompanhá-lo pela picada.    

O homem voltou muitas vezes a pescar no riacho em sua companhia. Ela perdeu o medo de se aproximar da água. Saciava a sede tranquilamente e a confiança que adquirira de andar dentro da água lhe deu também a presteza de capturar vez por outra um peixe.

No sítio, Vivi passou a ter uma vida independente. Descondicionou-se de esperar a alimentação sempre à mesma hora e aprendeu a ir além dos limites da casa.

Passava todo o dia num trabalho incansável de farejar os esconderijos de pequenos lagartos e quase sempre seu esforço era recompensado com a captura de algum deles. Nessa atividade, descobrira os segredos da sobrevivência: mantinha-se longe das cobras e dos sapos venenosos.

Certo dia, chegou com um tatu que havia caçado e abatido. Largou-o no terreiro em frente da casa e ficou olhando para o homem com a língua de fora, ofegante. Ele deu uma batidinha em sua cabeça, chamou-a de grande caçadora e logo em seguida começou a cortar a caça, e não  esqueceu de recompensá-la com uma farta porção. Desse dia em diante, ela passou a trazer sempre os produtos de suas maiores calçadas e a fazer o mesmo gesto de depositá-los aos pés do homem e ele sempre a recompensava com justiça. Sua sobrevivência não dependia dessa alimentação que ele lhe dava, mas ela cumpria o ritual de partilha como se isso representasse o seu ato de gratidão para com ele.

Passaram-se meses em que os dias nasciam abrasados pelos raios do sol. Dias de atividades e cansaços. Depois, chegou a temporada das chuvas. As folhas das árvores se renovaram e ganharam um matiz verde-claro. Flores desabrocharam em todo o seu esplendor de cores e formas. Nas árvores frutíferas, despontaram frutos azedos e adocicados que cresceram e caíram no chão, formando pastas escorregadias. O capim cresceu viçoso, alastrando-se por toda parte.

A cadela Vivi adaptou-se às extremas temperaturas do verão e ao aguaceiro do inverno. Seu pelo se renovou, crescendo mais espesso e brilhante. O corpo ganhou carne e alguma reserva de gordura. Os olhos adquiriram vivacidade e perscrutavam tudo ao seu redor.    


*Do livro O julgamento e outras histórias


sábado, 19 de fevereiro de 2022

DIALÉTICA OPERÁRIA EM TRÊS ATOS

Isaac Warden Lewis

 

ATO I

 

Enquanto nós trabalhávamos arduamente,

vós elaboráveis as leis sobre o nosso trabalho.

Enquanto nós enfrentávamos o trabalho sob o sol e a chuva,

Vós administráveis o trabalho num escritório.

Enquanto nós produzíamos a riqueza,

vós participáveis do lucro dessa riqueza.

Enquanto nós sobrevivíamos com o nosso salário,

vós vivíeis exclusivamente da mais-valia.

Enquanto os nossos filhos sofriam de subnutrição,

os vossos participavam de concursos de crianças mais nutridas.

Enquanto nós não nos manifestávamos sobre a nossa condição de vida,

vós dizíeis que o nosso país era liberal e democrático,.

onde todos tinham oportunidades.

 

ATO II

 

Nós paramos para pensar sobre isso.

Vós dissestes que já tínheis pensado sobre isso

                       e que tudo tinha de ser como era.

Nós passamos a questionar tudo isso.

Vós respondestes que a nossa atitude era ilegal.

Nós perguntamos: por que era ilegal o pensamento da maioria?

Vós afirmastes que nós estávamos subvertendo a ordem.

Nós vos recordamos dos vossos princípios liberais e democráticos.

Vós nos acusastes de sermos agitadores e comunistas.

Nós começamos a reivindicar melhores condições de vida

                                                                     para os nossos.

Vós perseguistes, prendestes e até matastes os nossos líderes.

 

 

ATO III

 

Aprendemos desse diálogo e dessa confrontação que:

embora fôsseis minoria, possuíeis e utilizáveis a força.

Então, reunimo-nos e organizamo-nos para constituir a nossa força.

Quando medimos a nossa força com a vossa força, vencemos

e, então, fugistes da ira de nosso povo.

A partir daí, reestruturamos a sociedade.

Estabelecemos a nossa ordem.

Elaboramos as nossas leis.

Pensamos, questionamos e discutimos a nossa luta.

Vivemos do nosso trabalho.

Tornamos legais nossas ideias e nossos pensamentos.

porque são as ideias e os pensamentos da maioria.

Cuidamos dos nossos filhos.

Entretanto não sabemos se somos comunistas ou democratas.

Sabemos, apenas, que somos seres humanos,

dignificados  pela nossa luta e por nós mesmos.

 

...................

Do livro “Sentimento e consciência”.

domingo, 13 de fevereiro de 2022

BRASIL E SUA POLÍTICA COLONIZADA: CORRUPÇÃO, VIOLÊNCIA, BANDITISMO

                                                                                                          Isaac Warden Lewis

Márcio Souza, em seu livro “História da Amazônia: do período pré-colombiano aos desafios do século XXI”, registra a compreensão de um tuxaua da região do Sinu, na atual Colômbia, sobre a versão europeia do “descobrimento e da conquista da América”:

“Concordamos que há um só Deus, mas quanto o que diz o Papa, de ser o Senhor do Universo e que havia feita mercê destas terras ao Rei de Castela, este Papa somente poderia ser um bêbado quando o fez, pois dava o que não era seu. E este rei que pedia e tomava esta mercê, devia ser louco, pois pedia o que era dos outros. Pois venham toma-la, que colocaremos as vossas cabeças nos mastros [...]” (2019, p. 112).

Com poucas palavras, o tuxaua  da região do Sinu resume a patifaria realizada pelos europeus , ao invadirem as terras da América, África e da Ásia. Inicialmente, desvela a mentira elaborada pelos europeus de que eram homens inteligentes, superiores e que os homens dos continentes invadidos eram tolos, imbecis, ignorantes, inferiores. Revela também que os invasores europeus da América eram vigaristas que inventavam histórias para ludibriar os povos que viviam nas terras invadidas, portanto, eram vigaristas os religiosos que apoiavam os invasores, estes eram, vigaristas ´profissionais que invadiam terras alheias para se apropriarem delas, de seus recursos naturais e da força de trabalho dos nativos através da escravização, utilizando, para isso, armas de fogo, desconhecidas dos habitantes das terras invadidas.

Para garantir seus interesses, elaboravam leis civis e religiosas, estabelecendo seu direito a tudo que encontrassem nas terras invadidas. Para completar, seus cronistas e escribas, como Luís de Camões e José de Alencar, por exemplo, abstraíam os crimes, as violências e as hipocrisias cometidas pelos invasores europeus e louvavam suas ações como heroicas e épicas. Nessas histórias, os nativos eram sempre bandidos, selvagens, bárbaros e os invasores, homens virtuosos, como o padre José de Anchieta que condenava os índios que se recusavam a acreditar nas mentiras dos colonizadores  e os bandeirantes que faziam expedições para matar, capturar e escravizar índios. Até há pouco tempo, eram poucos os escritores ou historiadores que estabeleciam seriamente a verdade sobre as invasões dos europeus em territórios da América, África e da Ásia.

Hoje temos acesso a livros que relatam a vitória dos Zulus, em uma batalha contra as tropas invasoras inglesas na África do Sul. Márcio Souza, em seu livro, mencionado acima, relata várias derrotas de tropas invasoras portuguesas ao invadirem aldeias, malocas com o objetivo de cometer genocídios e capturar índios para explorá-los como escravos no Amazonas e no Pará. As glórias cantadas e louvadas pelos colonizadores portugueses são sempre de guerras empreendidas covardemente com armas desconhecidas dos nativos, entretanto, em várias batalhas,  os nativos seminus e com lanças derrotaram os europeus brava e inteligentemente.

De modo geral, a história oficial sobre a invasão dos portugueses em território brasileiro mantém os fatos verdadeiros encobertos por mentiras e mais mentiras que servem para elevar a auto-estima de alguns luso-brasileiros e mamelucos que se julgam no direito de explorar a terra e seus habitantes como se tivessem recebido uma herança milenar dos reis portugueses, ignorando e abstraindo que os nativos da América viviam nessa terra há milhares de anos e sabiam como cultivá-la e preservá-la,

Vigaristas atraem vigaristas na razão direta de seus interesses (geralmente mesquinhos) e repelem-se na razão inversa desses interesses. Vigaristas chegaram à América com apoio de capitalistas europeus, também vigaristas, que buscavam expandir seus negócios para além das fronteiras europeias. Os reis vigaristas portugueses apoiaram as iniciativas de invasão de “novas” terras com o objetivo de expropriá-las, autorizando os genocídios de povos que  recusassem a tutela do estado colonial português. Os papas, bispos e os padres vigaristas das ordens religiosas católicas acompanharam e apoiaram as invasões de “novas terras”, os genocídios e a escravização dos sobreviventes, convencendo-os a aceitarem a tutela do estado português para serem recompensados pela amor de Cristo, da mãe de Cristo e de deus depois da morte. Além disso, as caravelas trouxeram séquitos de medíocres, ignorantes, imbecis, idiotas que fugiam de pensamentos filosóficos, científicos e educacionais que contestavam a visão de mundo medieval que mantinha a humanidade europeia pobre, ignorante e estúpida. Os invasores portugueses pretendiam preservar a visão medieval do mundo entre as populações do “Novo Mundo” através da violência, vigarice, corrupção, mentira e do banditismo “legal”.

É essa cultura que continuou predominando hegemonicamente após a independência do país de Portugal. É claro e evidente que os heróis que fizeram a independência no Brasil não leram nem entenderam as filosofias do Iluminismo e da Revolução Francesa (1789). A maioria dos luso-brasileiros e mamelucos organizaram o país como uma feitoria para atender as necessidades mercantis, industriais e agrícolas dos capitalistas das metrópoles  ocidentais. É por isso que a vida social e política em vários países colonizados são muito semelhantes. O sistema burocrático, jurídico, militar, policial e político existe como função administrativa da feitoria brasileira que é igual no Haiti, Porto Rico, Panamá, Congo, República Dominicana, Venezuela etc.  Somente as classes favorecidas brasileiras, alienadas e iludidas, imaginam que o país se desenvolverá, aliando-se a uma potência imperialista capitalista, tal como se iludiram  os haitianos, os porto-riquenhos, os panamenhos e as classes favorecidas da Venezuela e de outros países colonizados. Por isso, as classes desfavorecidas  precisam ter consciência de não se alienar ou se iludir com os objetos de desejo das classes favorecidas. Como bem nos ensinam Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895): “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes”.

O filme “Os sete samurais”, idealizado e dirigido pelo cineasta japonês Akira Kurosawa (1910-1998), produzido em 1954, conta a história de um lugarejo, onde viviam e trabalhavam lavradores. Na época da colheita, bandidos milicianos invadiam o lugarejo, assaltando e matando vários moradores, e apossando-se de sua produção. Os camponeses resolveram contratar um samurai experiente que convenceu mais seis samurais para defenderem o lugarejo. Os samurais organizam a luta com apoio e participação dos lavradores e conseguem matar todos os bandidos invasores de suas terras. Esse filme tem um final feliz: Os camponeses e as camponesas podem, depois da luta, voltar para as suas atividades: Cultivar a terra que lhes dará seu sustento.  Na refrega, quatro samurais morreram. O líder dos samurais comenta com outros dois sobreviventes: “Nós perdemos mais uma vez, os lavradores venceram”. Essa história retrata, de um certo modo, a história dos povos indígenas brasileiros e de outros países colonizados e de suas culturas: A terra é de todos e não de uma minoria de vigaristas nacionais e internacionais, por isso, os povos nativos da América, da África e da Ásia continuarão sua luta para sobreviver dignamente.

E para entendermos o mundo colonial  pós “independência”, outros livros merecem ser lidos, como: 1. Amazônia indígena, também de Márcio Souza (2015); 2. Povos indígenas: terra, cultura e lutas, de Benedito Prezia, Beatriz Maestri e Luciana Galante (2019); 3.  História da resistência indígena: 500 anos de luta, de Benedito Prezia (2019);  4. Violência contra os povos indígenas (Relatório), CIMI – Conselho Indigenista Missionário: Dados de 2017.

 

 

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

PRÁXIS OPERÁRIA

 

                                                                                                  Isaac Warden Lewis

 

De manhã, quando o sol começou a raiar,

o operário já estava pronto para trabalhar.

Ao meio-dia, quando os raios do sol

encontravam-se sobre a sua cabeça,

ele já tinha produzido o suficiente para si,

para a sua família,

para o seu patrão

e para a família do seu patrão.

 

À tarde, o operário continuou a trabalhar,

produzindo a mais-valia empresarial,

contribuindo para a sua pauperização

e para a concentração da renda do seu patrão.

 

Ao anoitecer, quando as luzes de neon

começaram a iluminar a cidade das grandes empresas,

o operário percebeu que tinha contribuído  para o

desenvolvimento...

o desenvolvimento da riqueza da classe empresarial

e o desenvolvimento da pobreza da classe operária.

 

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Do livro “Sentimento e consciência”.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

EDUCAÇÃO POLÍTICA RETRÓGRADA EM PAÍS COLONIZADO

                                                                                            Isaac Warden Lewis


Certa vez, uma leitora criticou o livro “A reflexão dos animais espoliados”, o qual continha a história “Fazenda de porcos”, sugerindo que o autor se limitou a imitar o conteúdo da história “A revolução dos bichos, escrito por George Orwell (1903-1950). A crítica da referida leitora constitui um exemplo de crítica superficial de leitoras e leitores que realizam leitura por alto ou de orelhas de livros sem se aprofundarem realmente no conteúdo do texto que estão lendo. Na história “A revolução dos bichos”, o autor critica, através de personagens porcos, os descaminhos, o revisionismo, a falsificação das ideias e das lutas que geraram a revolução russa de 1917. Já, o autor da história “Fazenda de porcos” relata, através de personagens porcos, as condições e as relações sociais vividas por povos, em países colonizados, cuja maioria espoliada não adquiriu consciência revolucionária e que aceitam viver subumanamente, porém um personagem, Quinho, critica e condena a espoliação imposta pelos seres humanos a todos os porcos. A leitora superficial não foi capaz de perceber que o contexto político social vivido pelos porcos em “A revolução dos bichos” é diferente do contexto colonizado vivido pelos porcos da “Fazenda de porcos”. Os leitores superficiais têm dificuldades em distinguir o que é verdadeiro ou falso em um texto. Além disso, não compreendem plenamente a mensagem expressa no texto.

Lamentavelmente, em pleno século XXI, ainda há inúmeras pessoas que se intitulam negacionistas da Ciência e, por isso, dizem-se contrários à vacinação contra o Coronavírus. Na realidade, não existem negacionistas da ciência. Esse conceito é impróprio para qualificar essas pessoas (seja presidente, general, ministro, religioso, professor, doutor, médico, faxineiro, balconista, lixeiro, porteiro ou empresário etc). Seria mais apropriado chamar essas pessoas de imbecis, idiotas, ignorantes, estúpidas ou analfabetas funcionais porque seguem outras iguais a elas, que não conhecem a história da ciência ou se leram alguma coisa sobre isso nada entenderam . Tanto é assim que algumas dessas pessoas dizem ter estudado teologia (a ciência de um ser inexistente)..

Francis Bacon (1561-1626), René Descartes (1596-1650), John Locke (1632-1704) e Karl Marx (1818-1883) empreenderam esforços para construir processos e métodos de construção de conhecimentos verdadeiros, conhecimentos científicos. Entretanto, desde a Antiguidade, milhares e milhares de pessoas, incluindo religiosos e cientistas, acreditavam em geração espontânea. Algumas pessoas acreditavam, por isso, que toda vida, quando destinada para o bem da humanidade, podia ser produção de um ser divino ou produzida por um ser diabólico quando se destinava para o mal do ser humano. Os defensores da geração espontânea diziam que matéria em putrefação produzia larvas, pulgas, piolhos e insetos em geral. A partir do século XVIII, inúmeros cientistas começaram a refutar a ideia de geração espontânea, declarando que as larvas, os vermes e insetos  nasciam de ovos. Vários cientistas, como Louis Pasteur (1822-1895), Joseph Lister (1827-1912), John Tyndall (1820-1893) realizaram experiências, descobrindo que muitas doenças em seres humanos, em outros animais e em plantas eram produzidas por bactérias e vírus. Essas experiências possibilitaram a produção de remédios, vacinas e práticas de higiene para combater essas doenças e a recomendação universal de adoção de higiene geral, uso de anestesia e de assepsia nas operações cirúrgicas.

As classes favorecidas e as classes desfavorecidas criadas no Brasil Colônia e ainda presentes após a Proclamação da Independência (1822), a Proclamação da Abolição da Escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889) sempre tiveram dificuldades de entender  as teorias filosóficas, científicas, políticas e sociais produzidas na Europa, pois os egressos do Ensino Superior (principalmente das escolas privadas e confessionais) frequentavam a escola para adquirir diplomas ou certificados , assimilando somente os conteúdos que servissem para seguir carreiras privilegiadas. Os militares que ocupam indevidamente o Palácio do Planalto, incluindo o presidente expulso do Exército por terrorismo, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga e o ministro da Educação, Milton Ribeiro são exemplos produzidos pelo Sistema Educacional que não se coaduna com os postulados das várias proclamações enunciadas no Século XIX.  Não devemos estranhar, por isso, que, em um país colonizado , esses egressos, analfabetos funcionais (juízes, desembargadores, secretários de segurança, oficiais de Polícias Militares, com raras exceções) manifestam-se contra vacinação como se estivessem expressando pensamento profundo sobre o que não entendem.

Felizmente, toda sociedade evolui dialeticamente, desse modo, apesar de os também negacionistas da visão dialética do universo, do mundo, da sociedade, do pensamento empreenderem crimes, omissões, mentiras, violências contra os que estão empenhados  e comprometidos com a verdade, a ciência e a luta por direitos universais de todos os homens e de todas as mulheres e crianças brasileiras, condenando as injustiças e desigualdades sociais, o Brasil, pós proclamações vazias de sentido, encontrará dignamente seu caminho junto à comunidade humana crítica e solidária.


A EXPRESSÃO DO EU FEMININO NA CANTIGA TROVADORESCA PORTUGUESA E NA CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA

                                                                                        Lucilene Gomes Lima      


A expressão dos sentimentos de um eu feminino marca a cantiga de amigo, forma de composição poética do período literário conhecido como Trovadorismo, florescido em Portugal entre os séculos XII, XIII e XVI. Nas cantigas de amigo, fala a mulher, ao contrário da cantiga de amor em que fala o homem. Segundo Saraiva e Lopes, em História da literatura portuguesa (2008), uma das diferenças entre a cantiga de amor e a de amigo é que a primeira expressa o amor idealizado, enquanto a segunda expressa situações vulgares e corriqueiras das relações amorosas. O ambiente que inspira as cantigas de amor é o palaciano. As cantigas de amigo, por sua vez, retratam idílios nas margens dos rios, à beira das fontes ou o espaço doméstico onde a moça realiza tarefas cotidianas. Não há disfarce ou fingimento de intenção na cantiga de amigo, exceto pelo eufemismo de o amante ser assim tratado. Em geral, no primeiro verso da cantiga, o amigo ou namorado é referido.

Na poesia trovadoresca, tanto as cantigas de amor quanto as de amigo eram compostas por homens. O trovador, nas cantigas de amor, colocava-se como vassalo da dama para quem cantava, adotava uma atitude submissa.

As cantigas de amor e de amigo legaram algumas características à música popular brasileira. Um exemplo é a modinha, forma de composição combinando música e poesia, executada em salões durante o império, estendendo-se até as primeiras décadas do século XX. Nessas canções, não faltavam uma súplica amorosa e um tom bucólico. Esse gênero musical de salão foi sucedido por um gênero de rua, a serenata, de tema igualmente sentimental. Guardadas as devidas diferenças de contexto histórico e de espaço, nas serenatas, como nas cantigas trovadorescas de amigo, os compositores também representam uma atitude de suserano perante as mulheres às quais dedicam suas canções. As serenatas eram entoadas embaixo de janelas, pondo as damas em posição de superioridade e o cantador de suplicante. A expressão de um eu feminino na canção é outra característica em comum entre a cantiga de amigo trovadoresca e a canção popular brasileira. A partir dos anos 1920, a música popular brasileira apresenta uma série de motivos em tons melodramáticos e assuntos cotidianos no Teatro de revistas, combinando representação teatral, dança e canção. A plateia, composta de trabalhadores do comércio, militares de baixa patente, funcionários públicos, era predominantemente masculina, mas foi essa plateia que viu surgir Araci Cortes, primeira estrela da canção brasileira. Araci interpreta uma letra composta por Henrique Vogeler e Luís Peixoto, denominada “Linda flor”, que se torna um sucesso na época, pondo na voz de uma mulher a temática do sofrer amoroso e do abandono. “Chorei toda noite, pensei, /nos beijos de amor que te dei./Ioiô, meu benzinho do meu coração, / me leva pra casa, me deixa mais não”. Em 1935, o compositor brasileiro Noel Rosa escreve o samba “X do problema”, expressando-se pela voz de uma mulher. Nesse samba, está presente o tom de monólogo e diálogo que também caracteriza as cantigas trovadorescas de amigo. A letra do samba é inovadora por fundir à temática amorosa a identidade cultural e a condição social, sob um protagonismo feminino.

Nos anos 1930 e 1940, o rádio torna-se o sucessor do teatro de revistas, passando a ser o principal veículo divulgador da canção de estrato popular. Nesse contexto, a popularidade está mais ligada à possibilidade de difusão em massa do que à tradição e às formas de expressão espontâneas. A grande difusão dos programas de rádio possibilitou o surgimento dos programas de auditório e a formação de um público feminino, constituído principalmente por camadas pobres da população. Essa plateia feminina identifica-se com intérpretes femininas, conferindo-lhes prestígio. Muitas cantoras brasileiras notabilizaram-se na época áurea do rádio, entre elas Marlene, Emilinha Borba, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Linda e Dircinha Batista, Isaurinha Garcia. Devido a elas, a música popular brasileira inaugurou uma tradição de ser mais rica em intérpretes femininas do que em intérpretes masculinos.

A canção “Risque”, composta por Ary Barroso, clássica no gênero “dor de cotovelo”, foi sucesso na voz de Linda Batista na década de 1950. A letra não define se quem fala é um eu masculino ou feminino, mas marca para o público uma presença feminina interpretando a canção. Na letra, é referido o fracasso da paixão, é proposto que o relacionamento seja esquecido, que se busque novo amor, que a saudade seja afogada na mesa de um bar, além de a relação amorosa ser revelada como fantasia, quimera. São abordagens ousadas na voz de uma intérprete feminina. Muitas cantoras brasileiras tiveram desprendimento para interpretar músicas como “Lama”, gravada pela primeira vez por Linda Rodrigues e, posteriormente, interpretada por Elza Soares, Ângela Maria, Núbia Lafayette, Waleska, Maria Betânia; “Eu bebo, sim”, imortalizada na voz de Elizeth Cardoso; “Marvada pinga”, marca interpretativa de Inezita Barroso e das irmãs Galvão. Aracy de Almeida, considerada a primeira cantora da dor feminina, interpretou a boemia em composições de Noel Rosa e de outros compositores e foi parceira ainda muito jovem de Noel em suas noitadas nos subúrbios cariocas.  Assim como em “Risque”, a letra de “Vingança”, de autoria de Lupicínio Rodrigues, interpretada por diversas cantoras brasileiras, aborda com desprendimento o conflito amoroso. A letra põe uma personagem feminina numa cena de boemia e decadência. Em “Quem há de dizer”, do mesmo compositor, repete-se a referência à boemia feminina. “Ela disse-me assim”, outra letra de Lupicínio, relata uma traição feminina. A abordagem da infidelidade feminina nessa letra não expressa a imagem da mulher como culpada ou vítima, mas como coparticipante e consciente. As letras de Lupicínio apresentam o tom narrativo e dialogal das cantigas de amigo.

O sofrimento amoroso sempre esteve presente na canção popular brasileira e as letras compostas por homens sobre o fracasso da relação não demonstram apenas um eu feminino passivo, perdido e inconformado com a separação. “Fim de comédia”, de Ataufo Alves, celebrizada na voz de Dalva de Oliveira, apresenta um eu feminino diferente de outras letras em que predomina um espírito malévolo da mulher, sempre tratada pelo eu masculino como malvada, pérfida, ingrata e inconstante. A letra ilustra a própria separação conflituosa da cantora com o cantor e compositor Herivelto Martins. A letra de “A mentira acaba”, de Arno Provenzano e Rui de Almeida, cuja intérprete mais famosa é Elizeth Cardoso, expressa mensagem semelhante. Outra letra, “Vou deitar e rolar”, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, na interpretação enfática de Elis Regina, é um brado de superação do rompimento amoroso, pois o eu protagonista da canção convida a gargalhar e seguir em frente.

 A disputa de um mesmo amor é outro assunto que não é incomum na canção popular brasileira. A cantora Isaurinha Garcia interpreta-o em “Duas mulheres e um homem”, de Cyro de Souza e Jorge de Castro. Isaurinha também interpreta “Verdade cruel”, de Luiz Chacon, letra que aborda uma separação e um eu feminino inconformado, mas com um sabor de vingança pelo fato de que o companheiro viverá com a outra, pensando nela.

Muitas letras compostas por compositores dão voz a um eu feminino consciente de suas ilusões em relação ao companheiro. Em “Minha estranha loucura”, a cantora Alcione interpreta nos versos compostos por Michael Sullivan, Paulo Massadas  e Mihail Plopschi, a mulher que se sente incompreendida, que se doa sem receber igual doação, que se anula e se culpa. Outras composições como “Sufoco”, de Antonio José e Chico da Silva e “Você me vira a cabeça” (Me tira do sério)”, de Chico Roque e Paulo Sérgio Valle, também interpretadas por Alcione, expressam queixas e situações semelhantes.

Algumas letras dessa veia sentimental da música popular brasileira transparecem, no eu feminino magoado, as diferenças entre as regras sociais para homens e mulheres, denunciando-as como injustas. Como exemplos, “Errei, sim”, de Ataúfo Alves, “Ronda”, de Paulo Vanzolini e “Com açúcar, com afeto”, de Chico Buarque. Nas canções em que o eu feminino se revela como a outra, há uma denúncia dos valores desiguais para a amante e a esposa, como expressam os versos da canção “Eu sou a outra”, de Ricardo Galeno, gravada originalmente na década de 1950 pela cantora Carmen Costa e, posteriormente, também interpretada por Ângela Maria, Elza Soares, Tânia Alves. A letra marcou a carreira de Carmen Costa porque ela mesma viveu uma relação adúltera que se tornou pública. Em algumas letras, apesar de o ser feminino expor suas mágoas, também demonstra uma propensão a contemporizar, perdoando o companheiro. É o que ocorre em “Amélia de Você”, composta pelas irmãs Elena e Eliane De Grammont, em que o repúdio à submissão (“Cansei de ser Amélia santa e boa, que esquece, que perdoa seus defeitos”), alterna-se com uma capitulação (“Tentei mudar você/Não consegui porque nasci para ser Amélia de você”). Essa dubiedade de pensamento e de atitude também está contida nas cantigas de amigo, cujo sentimento dos contrastes do amor, que vem da influência da poesia provençal sobre a poesia trovadoresca portuguesa, representa-se no querer e não querer, no recuo e na entrega ao impulso do desejo.

Em muitas letras em que a fala parte do ponto de vista da mulher, os compositores transmitem o ser feminino em momentos de ousadia, orgulho e princípios, como podemos constatar em “A loba”, composição de Luiz Carlos Jr. Peralva e Paulo Roberto dos Santos Rezende, que cria um paralelismo entre conformação e revolta (“Sou doce, dengosa, polida/Fiel como um cão/Sou capaz de te dar minha vida/[...]Sou mulher capaz de tudo/Pra te ver feliz/Mas também sou de cortar o mal pela raiz”). A letra de “A mulher ideal”, de Carlos Colla e Michael Sullivan, também expressa a mulher num espírito insubmisso (“Eu sou aquilo que sou, e se quiser me mudar/Você vai se arrepender, pois foi assim que gostou/Foi desse jeito que amou, além do bem e do mal”). Na letra “Resposta”, composta por Maysa, a autonomia é tratada como um momento de epifania, revelação (“Ninguém pode calar dentro de mim/Essa chama que não vai passar/É mais forte que eu/E não quero dela me afastar/Eu não posso explicar como foi/E como ela veio/E só digo o que penso/Só faço o que gosto/E aquilo que creio”). Outros exemplos estão na letra de alerta “Os tempos mudaram”, da cantora e compositora Roberta Miranda (Olha só, meu companheiro/Hoje a moda é outra, os tempos mudaram/A mulher é independente/Bebe, bate e joga o homem pra fora/Homem que se atreve como antigamente/A trair, virar as costas/Hoje tudo é diferente, é a mulher que bate/Na sua cara, a porta”) e na letra de mágoa revoltada “Traidor”, da compositora e cantora Paula Fernandes (“Quem diria você, que insistia em dizer que era conservador/Que iria me dar mil razões pra te amar por não ser traidor/Mas agora deu adeus, pôs um fim nos sonhos meus/E aquela criatura que te amou não te quer mais/Em outros braços me envolvi, nossa história já esqueci/Quando a gente não cuida de um amor ele se vai”).

A morte trágica da cantora Marília Mendonça, aos 26 anos, no início do mês de novembro de 2021, trouxe à pauta jornalística a questão do protagonismo feminino na música popular brasileira. Segundo muitos comentários, a música sertaneja era dominada por cantores e também por uma temática masculina antes de Marília. Sua condição, contudo, enquanto mulher que compõe e interpreta, não é inédita em relação à de outras mulheres compositoras e cantoras brasileiras.  Nas últimas décadas do século XIX, Chiquinha Gonzaga, considerada como uma das fundadoras da música popular brasileira, despertou logo cedo para seus dotes artísticos, mas foi obrigada pelo pai a casar-se aos dezesseis anos, tendo o marido se oposto a que ela se dedicasse a tocar e a compor. Tempos depois, ela o abandona e passa a viver com outro homem, o que lhe rende uma ação judicial de divórcio por abandono do lar e adultério. O pai, por seu lado, deserda-a e considera-a morta para a família. O desdobrar desses acontecimentos a fazem perder a guarda de dois dos três filhos, mas ela não desiste da carreira musical. Após o fracasso da segunda união matrimonial, passa a sobreviver dos modestos recursos obtidos das aulas de piano e das apresentações em bailes. Na década de 1950, destaca-se a compositora e intérprete Dolores Duran, com os dotes artísticos manifestados desde os três anos de idade. Aos cinco anos, participa de festas populares. Aos dez, participa do programa de calouros de Ary Barroso, obtendo a nota máxima do júri. Com a morte do pai, começa a se profissionalizar aos doze anos para ajudar financeiramente a família. A carreira de Dolores é breve, morre aos 29 anos em virtude de um problema cardíaco e deixa um repertório de composições marcantes, entre elas, “A noite do meu bem”. A compositora Maysa, outro talento feminino precoce, cantava desde a adolescência em festas familiares, compondo algumas músicas. Aos doze anos, compõe o samba-canção “Adeus”. Casa-se aos dezoito anos com o empresário André Matarazzo, mas a união não é bem sucedida principalmente porque ele se opõe a sua carreira de cantora.  Grava, em 1956, o primeiro disco e em 1957 separa-se. A cantora não supera a separação nem a perda da guarda do filho único. Vicia-se em álcool e sofre crises depressivas. Morre aos quarenta e um anos em acidente automobilístico na ponte Rio Niterói. A década de 1970 contemplou a música popular brasileira com um número expressivo de compositoras. Em suas letras, destacam-se o caráter de depoimento e o tema amoroso confessional. Eliane De Grammont, compositora entre o final da década de 1970 e início da década de 1980, só se tornou conhecida por causa do acontecimento trágico do seu assassinato, aos 26 anos, por seu ex-marido, o cantor Lindomar Castilho, apesar de ter buscado o reconhecimento e a profissionalização, cantando em casas noturnas após se separar do cantor, que a proibia de exercer a carreira artística. O fato teve maior repercussão pela popularidade de Lindomar Castilho à época. Eliane deixou o anonimato, seu rosto foi visto pelo público e sua voz foi ouvida, ao menos enquanto durou a abordagem do caso nos veículos televisivos e jornalísticos. A vida de Helena Meireles, compositora e violeira autodidata, marcada com os mesmos reveses do casamento compulsório ainda muito jovem, é outro exemplo, flagrante, da invisibilidade profissional de uma mulher que decide se dedicar à carreira artística. Mesmo apresentando talento precocemente, compondo e cantando desde tenra idade, era desconhecida no Brasil e viveu no ostracismo até sua obra ser elogiada pela revista estadunidense “Guitar player”, sendo a partir daí descoberta pelos meios de informação e entretenimento brasileiros, aos 67 anos. Para a compositora e cantora Roberta Miranda, o sucesso também chegou tardiamente, sofreu idênticos problemas de não aceitação familiar em relação ao seu sonho de ser cantora, saindo de casa ainda bem jovem. Aos dezesseis anos, buscou sustentar-se, cantando em bares, casas noturnas e bailes de bairro, perseguindo o reconhecimento no meio artístico. Para as compositoras e intérpretes negras, a condição de mulher dificultou ainda mais a ascensão artística. Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra, ainda que tardiamente, Dona Ivone Lara e Leci Brandão, romperam barreiras que outras mulheres não conseguiram romper. Dona Ivone, que teve por muito tempo as composições assinadas pelo primo, e Leci Brandão tornaram-se exceções quando entraram em meios restritos aos homens negros, como a ala de compositores das escolas de samba.

As letras que Marília Mendonça compôs e/ou interpretou filiam-se à temática sentimental amorosa da canção popular brasileira. Ela aproveitou lugares comuns dessas canções: a traição,  o desejo da esposa ou companheira de repartir a infelicidade amorosa com a outra, a incapacidade de resistir ao homem amado, a tentativa de esquecimento do amor infeliz, a vingança por ser rejeitada, a dubiedade de atitudes, a entrega à boemia. Além do repertório que não traz novidade na escolha dos temas, de certa forma anacrônicos para uma época em que os compromissos e as relações amorosas se afrouxam, a volubilidade e a inconstância se acentuam em relação à fidelidade e ao compromisso, o enfoque melodramático ultrarromântico das canções contrasta com a forma como são tratadas, na época contemporânea, autonomia e independência femininas.