quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

A EXPRESSÃO DO EU FEMININO NA CANTIGA TROVADORESCA PORTUGUESA E NA CANÇÃO POPULAR BRASILEIRA

                                                                                        Lucilene Gomes Lima      


A expressão dos sentimentos de um eu feminino marca a cantiga de amigo, forma de composição poética do período literário conhecido como Trovadorismo, florescido em Portugal entre os séculos XII, XIII e XVI. Nas cantigas de amigo, fala a mulher, ao contrário da cantiga de amor em que fala o homem. Segundo Saraiva e Lopes, em História da literatura portuguesa (2008), uma das diferenças entre a cantiga de amor e a de amigo é que a primeira expressa o amor idealizado, enquanto a segunda expressa situações vulgares e corriqueiras das relações amorosas. O ambiente que inspira as cantigas de amor é o palaciano. As cantigas de amigo, por sua vez, retratam idílios nas margens dos rios, à beira das fontes ou o espaço doméstico onde a moça realiza tarefas cotidianas. Não há disfarce ou fingimento de intenção na cantiga de amigo, exceto pelo eufemismo de o amante ser assim tratado. Em geral, no primeiro verso da cantiga, o amigo ou namorado é referido.

Na poesia trovadoresca, tanto as cantigas de amor quanto as de amigo eram compostas por homens. O trovador, nas cantigas de amor, colocava-se como vassalo da dama para quem cantava, adotava uma atitude submissa.

As cantigas de amor e de amigo legaram algumas características à música popular brasileira. Um exemplo é a modinha, forma de composição combinando música e poesia, executada em salões durante o império, estendendo-se até as primeiras décadas do século XX. Nessas canções, não faltavam uma súplica amorosa e um tom bucólico. Esse gênero musical de salão foi sucedido por um gênero de rua, a serenata, de tema igualmente sentimental. Guardadas as devidas diferenças de contexto histórico e de espaço, nas serenatas, como nas cantigas trovadorescas de amigo, os compositores também representam uma atitude de suserano perante as mulheres às quais dedicam suas canções. As serenatas eram entoadas embaixo de janelas, pondo as damas em posição de superioridade e o cantador de suplicante. A expressão de um eu feminino na canção é outra característica em comum entre a cantiga de amigo trovadoresca e a canção popular brasileira. A partir dos anos 1920, a música popular brasileira apresenta uma série de motivos em tons melodramáticos e assuntos cotidianos no Teatro de revistas, combinando representação teatral, dança e canção. A plateia, composta de trabalhadores do comércio, militares de baixa patente, funcionários públicos, era predominantemente masculina, mas foi essa plateia que viu surgir Araci Cortes, primeira estrela da canção brasileira. Araci interpreta uma letra composta por Henrique Vogeler e Luís Peixoto, denominada “Linda flor”, que se torna um sucesso na época, pondo na voz de uma mulher a temática do sofrer amoroso e do abandono. “Chorei toda noite, pensei, /nos beijos de amor que te dei./Ioiô, meu benzinho do meu coração, / me leva pra casa, me deixa mais não”. Em 1935, o compositor brasileiro Noel Rosa escreve o samba “X do problema”, expressando-se pela voz de uma mulher. Nesse samba, está presente o tom de monólogo e diálogo que também caracteriza as cantigas trovadorescas de amigo. A letra do samba é inovadora por fundir à temática amorosa a identidade cultural e a condição social, sob um protagonismo feminino.

Nos anos 1930 e 1940, o rádio torna-se o sucessor do teatro de revistas, passando a ser o principal veículo divulgador da canção de estrato popular. Nesse contexto, a popularidade está mais ligada à possibilidade de difusão em massa do que à tradição e às formas de expressão espontâneas. A grande difusão dos programas de rádio possibilitou o surgimento dos programas de auditório e a formação de um público feminino, constituído principalmente por camadas pobres da população. Essa plateia feminina identifica-se com intérpretes femininas, conferindo-lhes prestígio. Muitas cantoras brasileiras notabilizaram-se na época áurea do rádio, entre elas Marlene, Emilinha Borba, Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Linda e Dircinha Batista, Isaurinha Garcia. Devido a elas, a música popular brasileira inaugurou uma tradição de ser mais rica em intérpretes femininas do que em intérpretes masculinos.

A canção “Risque”, composta por Ary Barroso, clássica no gênero “dor de cotovelo”, foi sucesso na voz de Linda Batista na década de 1950. A letra não define se quem fala é um eu masculino ou feminino, mas marca para o público uma presença feminina interpretando a canção. Na letra, é referido o fracasso da paixão, é proposto que o relacionamento seja esquecido, que se busque novo amor, que a saudade seja afogada na mesa de um bar, além de a relação amorosa ser revelada como fantasia, quimera. São abordagens ousadas na voz de uma intérprete feminina. Muitas cantoras brasileiras tiveram desprendimento para interpretar músicas como “Lama”, gravada pela primeira vez por Linda Rodrigues e, posteriormente, interpretada por Elza Soares, Ângela Maria, Núbia Lafayette, Waleska, Maria Betânia; “Eu bebo, sim”, imortalizada na voz de Elizeth Cardoso; “Marvada pinga”, marca interpretativa de Inezita Barroso e das irmãs Galvão. Aracy de Almeida, considerada a primeira cantora da dor feminina, interpretou a boemia em composições de Noel Rosa e de outros compositores e foi parceira ainda muito jovem de Noel em suas noitadas nos subúrbios cariocas.  Assim como em “Risque”, a letra de “Vingança”, de autoria de Lupicínio Rodrigues, interpretada por diversas cantoras brasileiras, aborda com desprendimento o conflito amoroso. A letra põe uma personagem feminina numa cena de boemia e decadência. Em “Quem há de dizer”, do mesmo compositor, repete-se a referência à boemia feminina. “Ela disse-me assim”, outra letra de Lupicínio, relata uma traição feminina. A abordagem da infidelidade feminina nessa letra não expressa a imagem da mulher como culpada ou vítima, mas como coparticipante e consciente. As letras de Lupicínio apresentam o tom narrativo e dialogal das cantigas de amigo.

O sofrimento amoroso sempre esteve presente na canção popular brasileira e as letras compostas por homens sobre o fracasso da relação não demonstram apenas um eu feminino passivo, perdido e inconformado com a separação. “Fim de comédia”, de Ataufo Alves, celebrizada na voz de Dalva de Oliveira, apresenta um eu feminino diferente de outras letras em que predomina um espírito malévolo da mulher, sempre tratada pelo eu masculino como malvada, pérfida, ingrata e inconstante. A letra ilustra a própria separação conflituosa da cantora com o cantor e compositor Herivelto Martins. A letra de “A mentira acaba”, de Arno Provenzano e Rui de Almeida, cuja intérprete mais famosa é Elizeth Cardoso, expressa mensagem semelhante. Outra letra, “Vou deitar e rolar”, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, na interpretação enfática de Elis Regina, é um brado de superação do rompimento amoroso, pois o eu protagonista da canção convida a gargalhar e seguir em frente.

 A disputa de um mesmo amor é outro assunto que não é incomum na canção popular brasileira. A cantora Isaurinha Garcia interpreta-o em “Duas mulheres e um homem”, de Cyro de Souza e Jorge de Castro. Isaurinha também interpreta “Verdade cruel”, de Luiz Chacon, letra que aborda uma separação e um eu feminino inconformado, mas com um sabor de vingança pelo fato de que o companheiro viverá com a outra, pensando nela.

Muitas letras compostas por compositores dão voz a um eu feminino consciente de suas ilusões em relação ao companheiro. Em “Minha estranha loucura”, a cantora Alcione interpreta nos versos compostos por Michael Sullivan, Paulo Massadas  e Mihail Plopschi, a mulher que se sente incompreendida, que se doa sem receber igual doação, que se anula e se culpa. Outras composições como “Sufoco”, de Antonio José e Chico da Silva e “Você me vira a cabeça” (Me tira do sério)”, de Chico Roque e Paulo Sérgio Valle, também interpretadas por Alcione, expressam queixas e situações semelhantes.

Algumas letras dessa veia sentimental da música popular brasileira transparecem, no eu feminino magoado, as diferenças entre as regras sociais para homens e mulheres, denunciando-as como injustas. Como exemplos, “Errei, sim”, de Ataúfo Alves, “Ronda”, de Paulo Vanzolini e “Com açúcar, com afeto”, de Chico Buarque. Nas canções em que o eu feminino se revela como a outra, há uma denúncia dos valores desiguais para a amante e a esposa, como expressam os versos da canção “Eu sou a outra”, de Ricardo Galeno, gravada originalmente na década de 1950 pela cantora Carmen Costa e, posteriormente, também interpretada por Ângela Maria, Elza Soares, Tânia Alves. A letra marcou a carreira de Carmen Costa porque ela mesma viveu uma relação adúltera que se tornou pública. Em algumas letras, apesar de o ser feminino expor suas mágoas, também demonstra uma propensão a contemporizar, perdoando o companheiro. É o que ocorre em “Amélia de Você”, composta pelas irmãs Elena e Eliane De Grammont, em que o repúdio à submissão (“Cansei de ser Amélia santa e boa, que esquece, que perdoa seus defeitos”), alterna-se com uma capitulação (“Tentei mudar você/Não consegui porque nasci para ser Amélia de você”). Essa dubiedade de pensamento e de atitude também está contida nas cantigas de amigo, cujo sentimento dos contrastes do amor, que vem da influência da poesia provençal sobre a poesia trovadoresca portuguesa, representa-se no querer e não querer, no recuo e na entrega ao impulso do desejo.

Em muitas letras em que a fala parte do ponto de vista da mulher, os compositores transmitem o ser feminino em momentos de ousadia, orgulho e princípios, como podemos constatar em “A loba”, composição de Luiz Carlos Jr. Peralva e Paulo Roberto dos Santos Rezende, que cria um paralelismo entre conformação e revolta (“Sou doce, dengosa, polida/Fiel como um cão/Sou capaz de te dar minha vida/[...]Sou mulher capaz de tudo/Pra te ver feliz/Mas também sou de cortar o mal pela raiz”). A letra de “A mulher ideal”, de Carlos Colla e Michael Sullivan, também expressa a mulher num espírito insubmisso (“Eu sou aquilo que sou, e se quiser me mudar/Você vai se arrepender, pois foi assim que gostou/Foi desse jeito que amou, além do bem e do mal”). Na letra “Resposta”, composta por Maysa, a autonomia é tratada como um momento de epifania, revelação (“Ninguém pode calar dentro de mim/Essa chama que não vai passar/É mais forte que eu/E não quero dela me afastar/Eu não posso explicar como foi/E como ela veio/E só digo o que penso/Só faço o que gosto/E aquilo que creio”). Outros exemplos estão na letra de alerta “Os tempos mudaram”, da cantora e compositora Roberta Miranda (Olha só, meu companheiro/Hoje a moda é outra, os tempos mudaram/A mulher é independente/Bebe, bate e joga o homem pra fora/Homem que se atreve como antigamente/A trair, virar as costas/Hoje tudo é diferente, é a mulher que bate/Na sua cara, a porta”) e na letra de mágoa revoltada “Traidor”, da compositora e cantora Paula Fernandes (“Quem diria você, que insistia em dizer que era conservador/Que iria me dar mil razões pra te amar por não ser traidor/Mas agora deu adeus, pôs um fim nos sonhos meus/E aquela criatura que te amou não te quer mais/Em outros braços me envolvi, nossa história já esqueci/Quando a gente não cuida de um amor ele se vai”).

A morte trágica da cantora Marília Mendonça, aos 26 anos, no início do mês de novembro de 2021, trouxe à pauta jornalística a questão do protagonismo feminino na música popular brasileira. Segundo muitos comentários, a música sertaneja era dominada por cantores e também por uma temática masculina antes de Marília. Sua condição, contudo, enquanto mulher que compõe e interpreta, não é inédita em relação à de outras mulheres compositoras e cantoras brasileiras.  Nas últimas décadas do século XIX, Chiquinha Gonzaga, considerada como uma das fundadoras da música popular brasileira, despertou logo cedo para seus dotes artísticos, mas foi obrigada pelo pai a casar-se aos dezesseis anos, tendo o marido se oposto a que ela se dedicasse a tocar e a compor. Tempos depois, ela o abandona e passa a viver com outro homem, o que lhe rende uma ação judicial de divórcio por abandono do lar e adultério. O pai, por seu lado, deserda-a e considera-a morta para a família. O desdobrar desses acontecimentos a fazem perder a guarda de dois dos três filhos, mas ela não desiste da carreira musical. Após o fracasso da segunda união matrimonial, passa a sobreviver dos modestos recursos obtidos das aulas de piano e das apresentações em bailes. Na década de 1950, destaca-se a compositora e intérprete Dolores Duran, com os dotes artísticos manifestados desde os três anos de idade. Aos cinco anos, participa de festas populares. Aos dez, participa do programa de calouros de Ary Barroso, obtendo a nota máxima do júri. Com a morte do pai, começa a se profissionalizar aos doze anos para ajudar financeiramente a família. A carreira de Dolores é breve, morre aos 29 anos em virtude de um problema cardíaco e deixa um repertório de composições marcantes, entre elas, “A noite do meu bem”. A compositora Maysa, outro talento feminino precoce, cantava desde a adolescência em festas familiares, compondo algumas músicas. Aos doze anos, compõe o samba-canção “Adeus”. Casa-se aos dezoito anos com o empresário André Matarazzo, mas a união não é bem sucedida principalmente porque ele se opõe a sua carreira de cantora.  Grava, em 1956, o primeiro disco e em 1957 separa-se. A cantora não supera a separação nem a perda da guarda do filho único. Vicia-se em álcool e sofre crises depressivas. Morre aos quarenta e um anos em acidente automobilístico na ponte Rio Niterói. A década de 1970 contemplou a música popular brasileira com um número expressivo de compositoras. Em suas letras, destacam-se o caráter de depoimento e o tema amoroso confessional. Eliane De Grammont, compositora entre o final da década de 1970 e início da década de 1980, só se tornou conhecida por causa do acontecimento trágico do seu assassinato, aos 26 anos, por seu ex-marido, o cantor Lindomar Castilho, apesar de ter buscado o reconhecimento e a profissionalização, cantando em casas noturnas após se separar do cantor, que a proibia de exercer a carreira artística. O fato teve maior repercussão pela popularidade de Lindomar Castilho à época. Eliane deixou o anonimato, seu rosto foi visto pelo público e sua voz foi ouvida, ao menos enquanto durou a abordagem do caso nos veículos televisivos e jornalísticos. A vida de Helena Meireles, compositora e violeira autodidata, marcada com os mesmos reveses do casamento compulsório ainda muito jovem, é outro exemplo, flagrante, da invisibilidade profissional de uma mulher que decide se dedicar à carreira artística. Mesmo apresentando talento precocemente, compondo e cantando desde tenra idade, era desconhecida no Brasil e viveu no ostracismo até sua obra ser elogiada pela revista estadunidense “Guitar player”, sendo a partir daí descoberta pelos meios de informação e entretenimento brasileiros, aos 67 anos. Para a compositora e cantora Roberta Miranda, o sucesso também chegou tardiamente, sofreu idênticos problemas de não aceitação familiar em relação ao seu sonho de ser cantora, saindo de casa ainda bem jovem. Aos dezesseis anos, buscou sustentar-se, cantando em bares, casas noturnas e bailes de bairro, perseguindo o reconhecimento no meio artístico. Para as compositoras e intérpretes negras, a condição de mulher dificultou ainda mais a ascensão artística. Clementina de Jesus, Jovelina Pérola Negra, ainda que tardiamente, Dona Ivone Lara e Leci Brandão, romperam barreiras que outras mulheres não conseguiram romper. Dona Ivone, que teve por muito tempo as composições assinadas pelo primo, e Leci Brandão tornaram-se exceções quando entraram em meios restritos aos homens negros, como a ala de compositores das escolas de samba.

As letras que Marília Mendonça compôs e/ou interpretou filiam-se à temática sentimental amorosa da canção popular brasileira. Ela aproveitou lugares comuns dessas canções: a traição,  o desejo da esposa ou companheira de repartir a infelicidade amorosa com a outra, a incapacidade de resistir ao homem amado, a tentativa de esquecimento do amor infeliz, a vingança por ser rejeitada, a dubiedade de atitudes, a entrega à boemia. Além do repertório que não traz novidade na escolha dos temas, de certa forma anacrônicos para uma época em que os compromissos e as relações amorosas se afrouxam, a volubilidade e a inconstância se acentuam em relação à fidelidade e ao compromisso, o enfoque melodramático ultrarromântico das canções contrasta com a forma como são tratadas, na época contemporânea, autonomia e independência femininas.                                

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