terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

LEITURA DE UM POEMA-CALEIDOSCÓPIO, DE FERNANDO PESSOA

                                                                                       Lucilene Gomes Lima

 

                                       Saudade dada

Em horas inda louras, lindas

Clorindas e Belindas, brandas,

Brincam no tempo das berlindas,

As vindas vendo das varandas,

De onde ouvem vir a rir as vindas

Fitam o fio as frias bandas.

 

Mas em torno à tarde se entorna

A atordoar o ar que arde

Que a eterna tarde já não torna!

E em tom de atoarda todo o alarde

Do adornado ardor transtorna

No ar de torpor da tarda tarde.

 

E há nevoentos desencantos

Dos encantos dos pensamentos

Nos santos lentos dos recantos

Dos bentos cantos dos conventos...

Prantos de intensos, lentos, tantos

Que encantam os atentos ventos.

                   

Ao iniciarmos a leitura do poema “Saudade dada”, de Fernando Pessoa, é possível percebermos um  intenso ritmo melódico, aliás, esse ritmo já se faz presente antes de a poesia tomar corpo, no próprio título do poema, através da alternância entre a consoante sonora /d/ e a consoante surda /s/.  Ainda que se faça uma primeira leitura desatenta à mensagem que o poema encerra, a musicalidade não passa despercebida. Como exemplo, note-se o eco na repetição da sílaba /das/ no final de todos os versos da primeira estrofe.

Além da musicalidade, o poema também é construído por inúmeras associações no plano semântico.  As palavras horas, louras no primeiro verso levam à sequência: louro – dourado – sol – luz do sol o que nos possibilita interpretar metaforicamente as horas inda louras como horas ainda banhadas pela luz do sol. A aliteração da consoante /l/, sonoramente branda, nas sequências louras, lindas, Clorindas/berlindas dá à estrofe um tom de doçura, fluidez, leveza. O adjetivo lindas prolonga-se no interior dos substantivos Belindas, berlindas intensificando e renovando o ritmo melódico da estrofe. É interessante observar também que esses substantivos sugerem um tempo passado e, num contínuo exercício de musicalidade, expressam na repetição de suas sílabas finais (indas), juntamente com as finais de outras palavras (lindas, vindas), um sentimento nostálgico, quase à imitação de um suspiro, pelo prolongamento das sílabas.

Apesar do tom nostálgico suscitado por alguns nomes, o compasso/andamento da estrofe não é lento, os verbos brincam, vendo, ouvem, vir, rir, fitam indicam ação, sentido, movimento. A presença reiterada dos fonemas consonantais e vocálicos através de ecos e aliterações intensifica as sensações. A sucessão de vogais abertas e claras /e/ /o/ /a/ /i/ está em harmonia com a ideia transmitida na estrofe, de um momento do dia ainda banhado pela luz solar.

Na segunda estrofe, a presença da conjunção mas  no primeiro verso transmite uma clara indicação da ruptura a ocorrer no âmbito do sentido e também no ritmo melódico. O tom nostálgico se espraia. Nos primeiros versos apresentam-se as sinestesias (associações fonético-semânticas de sensações): “O ar que se entorna a atordoar”, “ar que arde”; “ar de torpor”; “adornado ardor”, “eterna tarde” (nessa última, note-se a possibilidade que se desdobra: terna tarde). Verifica-se também novamente o prolongamento de uma palavra (ar) em outras: atordoar, arde. Ao verbo arde, no segundo verso, agrega-se um serial de combinações em todos os demais versos da estrofe, sejam contidas em outras palavras, sejam em formas derivadas: tarde, atoarda, alarde, ardor, arda, mantendo a mesma unidade no sentido. Esse recurso é amplamente significativo, pois constrói a sugestão musical do poema através do eco das palavras e intensifica o sentido da ideia comunicada na estrofe, criando um farto paralelismo. Essa  brincadeira, pode-se dizer, com a escolha das palavras ainda se repete em “adornado”. Verbos como entorna, torna, transtorna e o particípio adornado, carregam outros, misturando os sentidos. Em “entorna”, tem-se torna, orna; em “torna”, orna; em “transtorna”, tem-se torna, orna e em “adornado”, tem-se orna e ornado.

O conjunto dos verbos empregados na segunda estrofe indica uma sintonia com uma sensação de languidez, de amolecimento, mormaço: entorna, atordoar, transtorna, arde. O mesmo se verifica com as imagens: eterna tarde, tarda tarde. Pode-se pressupor ainda uma sugestão sutil no verso “Que a eterna tarde já não torna”, em que primeiramente a negativa “não torna” remete à definição daquilo que não volta (a tarde faz parte do percurso do tempo e o tempo passado não retorna), mas ganha uma interpretação nova se ligado ao sentido de se restabelecer de um desfalecimento – a tarde desfalece. Nesse caso, ocorre uma figuração de um período de tempo através da atribuição de uma qualidade que não lhe é própria. O último verso da estrofe: “No ar de torpor da tarda tarde” leva a uma associação que pode nos definir o momento descrito pelo poeta. Para tal, é necessário ler o verso em um novo arranjo, isolando a última sílaba do substantivo torpor, encadeando-a às  palavras finais do verso: “torpor da tarda tarde”.

A terceira estrofe traz novamente o jogo das palavras dentro das palavras desencantos, encantos, recantos, cantos, encantam, cantam, ocasionando o eco das sílabas no interior e no final das palavras dos versos.

Encontra-se, ainda, o efeito paronomástico (semelhança na forma e oposição no sentido) na palavra “cantos” que pode ter o sentido de lugar em associação com “recantos”, como também o sentido musical. A repetição da consoante oclusiva surda /t/ associa-se com as ideias de fechamento (convento); pouca luz (cantos, recantos); obscuridade (nevoentos). No verso “Nos santos lentos dos recantos”, a aparente desordem sintática é proposital para possibilitar o cavalgamento dos versos: “recantos/Dos bentos cantos dos conventos”, sendo que a palavra “cantos” perde a sua associação com “recantos”, em indicação de local, e passa a ser um substantivo qualificado pelo adjetivo “bentos”. Os versos finais da estrofe trazem um paradoxo nos “prantos/Que encantam” e uma personificação em “atentos ventos”, enriquecendo simultaneamente o plano sensorial e conceitual do poema.

Retornando ao poema a partir do seu título, pode-se considerar que apesar da palavra Saudade, o poema se constrói com todos os versos no presente e o título Saudade dada reforça o sentido de uma saudade presente. Menos que um sentimento saudosista do passado, o que parece ser transmitido pelo poema é o tom nostálgico que o entardecer suscita, daí a Saudade dada, uma saudade que não é obrigatoriamente de um tempo, mas uma sensação que o entardecer transmite. O ritmo nostálgico é intensamente reforçado pelas aliterações que sugerem uma música suave, transmitindo-nos uma sensação de embalo pelas palavras, a exemplo do verso: “As vindas vendo das varandas”. É de se notar ainda que o próprio ritmo de cada estrofe dá a gradação das horas do evoluir da tarde. Dessa forma, a poesia vai sendo construída por estágios: primeira estrofe – as horas inda louras; segunda estrofe – a tarde se encaminhando para a noite, a languidez do ar que se entorna a atordoar, o torpor; terceira estrofe – a chegada da noite estabelecendo a obscuridade, o fechamento (recantos, conventos). É oportuno lembrar que a escolha de palavras como “convento’, “bentos”, “cantos” numa relação paradigmática (associativa, correlacional) pode representar a hora que marca a chegada da noite (seis horas), momento em que se começa a entoar cantos nos retiros religiosos, mas sempre é possível buscar outras interpretações, pois a riqueza de um texto poético como esse parece não ter fim. As releituras não exaurem sua mensagem, ao contrário, fazem surgir mais e mais possibilidades interpretativas, o que nos permite compará-lo a um caleidoscópio, o aparelho que, por certa disposição de espelho, cria inúmeras figuras.

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