Lucilene Gomes Lima
Saudade
dada
Em
horas inda louras, lindas
Clorindas
e Belindas, brandas,
Brincam
no tempo das berlindas,
As
vindas vendo das varandas,
De
onde ouvem vir a rir as vindas
Fitam
o fio as frias bandas.
Mas
em torno à tarde se entorna
A
atordoar o ar que arde
Que
a eterna tarde já não torna!
E
em tom de atoarda todo o alarde
Do
adornado ardor transtorna
No
ar de torpor da tarda tarde.
E
há nevoentos desencantos
Dos
encantos dos pensamentos
Nos
santos lentos dos recantos
Dos
bentos cantos dos conventos...
Prantos
de intensos, lentos, tantos
Que
encantam os atentos ventos.
Ao iniciarmos a
leitura do poema “Saudade dada”, de Fernando Pessoa, é possível percebermos um intenso ritmo melódico, aliás, esse ritmo já
se faz presente antes de a poesia tomar corpo, no próprio título do poema,
através da alternância entre a consoante sonora /d/ e a consoante surda /s/. Ainda que se faça uma primeira leitura
desatenta à mensagem que o poema encerra, a musicalidade não passa
despercebida. Como exemplo, note-se o eco na repetição da sílaba /das/ no final
de todos os versos da primeira estrofe.
Além da
musicalidade, o poema também é construído por inúmeras associações no plano
semântico. As palavras horas, louras no primeiro verso levam à sequência: louro – dourado – sol –
luz do sol o que nos possibilita interpretar metaforicamente as horas inda
louras como horas ainda banhadas pela luz do sol. A aliteração da consoante
/l/, sonoramente branda, nas sequências louras,
lindas, Clorindas/berlindas dá à estrofe um tom de doçura,
fluidez, leveza. O adjetivo lindas
prolonga-se no interior dos substantivos Belindas,
berlindas intensificando e renovando
o ritmo melódico da estrofe. É interessante observar também que esses
substantivos sugerem um tempo passado e, num contínuo exercício de musicalidade,
expressam na repetição de suas sílabas finais (indas), juntamente com as finais
de outras palavras (lindas, vindas), um sentimento nostálgico, quase à imitação
de um suspiro, pelo prolongamento das sílabas.
Apesar do tom
nostálgico suscitado por alguns nomes, o compasso/andamento da estrofe não é
lento, os verbos brincam, vendo, ouvem, vir, rir, fitam
indicam ação, sentido, movimento. A presença reiterada dos fonemas consonantais
e vocálicos através de ecos e aliterações intensifica as sensações. A sucessão
de vogais abertas e claras /e/ /o/ /a/ /i/ está em harmonia com a ideia
transmitida na estrofe, de um momento do dia ainda banhado pela luz solar.
Na segunda
estrofe, a presença da conjunção mas no primeiro verso transmite uma clara indicação
da ruptura a ocorrer no âmbito do sentido e também no ritmo melódico. O tom
nostálgico se espraia. Nos primeiros versos apresentam-se as sinestesias
(associações fonético-semânticas de sensações): “O ar que se entorna a atordoar”,
“ar que arde”; “ar de torpor”; “adornado ardor”, “eterna tarde” (nessa última,
note-se a possibilidade que se desdobra: terna tarde). Verifica-se também
novamente o prolongamento de uma palavra (ar) em outras: atordoar, arde. Ao
verbo arde, no segundo verso,
agrega-se um serial de combinações em todos os demais versos da estrofe, sejam
contidas em outras palavras, sejam em formas derivadas: tarde, atoarda, alarde, ardor, arda, mantendo a
mesma unidade no sentido. Esse recurso é amplamente significativo, pois constrói
a sugestão musical do poema através do eco das palavras e intensifica o sentido
da ideia comunicada na estrofe, criando um farto paralelismo. Essa brincadeira, pode-se dizer, com a escolha das
palavras ainda se repete em “adornado”. Verbos como entorna, torna, transtorna e o particípio adornado, carregam outros, misturando os
sentidos. Em “entorna”, tem-se torna,
orna; em “torna”, orna; em “transtorna”, tem-se torna, orna e em “adornado”, tem-se orna
e ornado.
O conjunto dos
verbos empregados na segunda estrofe indica uma sintonia com uma sensação de
languidez, de amolecimento, mormaço: entorna,
atordoar, transtorna, arde. O mesmo
se verifica com as imagens: eterna tarde,
tarda tarde. Pode-se pressupor ainda
uma sugestão sutil no verso “Que a eterna tarde já não torna”, em que
primeiramente a negativa “não torna” remete à definição daquilo que não volta
(a tarde faz parte do percurso do tempo e o tempo passado não retorna), mas
ganha uma interpretação nova se ligado ao sentido de se restabelecer de um
desfalecimento – a tarde desfalece. Nesse caso, ocorre uma figuração de um
período de tempo através da atribuição de uma qualidade que não lhe é própria.
O último verso da estrofe: “No ar de torpor da tarda tarde” leva a uma
associação que pode nos definir o momento descrito pelo poeta. Para tal, é
necessário ler o verso em um novo arranjo, isolando a última sílaba do
substantivo torpor, encadeando-a às palavras finais do verso: “torpor da tarda tarde”.
A terceira estrofe
traz novamente o jogo das palavras dentro das palavras desencantos, encantos, recantos, cantos, encantam, cantam, ocasionando o eco das sílabas no
interior e no final das palavras dos versos.
Encontra-se,
ainda, o efeito paronomástico (semelhança na forma e oposição no sentido) na
palavra “cantos” que pode ter o sentido de lugar em associação com “recantos”,
como também o sentido musical. A repetição da consoante oclusiva surda /t/
associa-se com as ideias de fechamento (convento); pouca luz (cantos, recantos);
obscuridade (nevoentos). No verso “Nos santos lentos dos recantos”, a aparente
desordem sintática é proposital para possibilitar o cavalgamento dos versos:
“recantos/Dos bentos cantos dos conventos”, sendo que a palavra “cantos” perde
a sua associação com “recantos”, em indicação de local, e passa a ser um
substantivo qualificado pelo adjetivo “bentos”. Os versos finais da estrofe
trazem um paradoxo nos “prantos/Que encantam” e uma personificação em “atentos
ventos”, enriquecendo simultaneamente o plano sensorial e conceitual do poema.
Retornando ao
poema a partir do seu título, pode-se considerar que apesar da palavra Saudade, o poema se constrói com todos
os versos no presente e o título Saudade
dada reforça o sentido de uma saudade presente. Menos que um sentimento
saudosista do passado, o que parece ser transmitido pelo poema é o tom
nostálgico que o entardecer suscita, daí a Saudade dada, uma saudade que não é
obrigatoriamente de um tempo, mas uma sensação que o entardecer transmite. O
ritmo nostálgico é intensamente reforçado pelas aliterações que sugerem uma
música suave, transmitindo-nos uma sensação de embalo pelas palavras, a exemplo
do verso: “As vindas vendo das varandas”. É de se notar ainda que o próprio
ritmo de cada estrofe dá a gradação das horas do evoluir da tarde. Dessa forma,
a poesia vai sendo construída por estágios: primeira estrofe – as horas inda
louras; segunda estrofe – a tarde se encaminhando para a noite, a languidez do
ar que se entorna a atordoar, o torpor; terceira estrofe – a chegada da noite
estabelecendo a obscuridade, o fechamento (recantos, conventos). É oportuno
lembrar que a escolha de palavras como “convento’, “bentos”, “cantos” numa
relação paradigmática (associativa, correlacional) pode representar a hora que
marca a chegada da noite (seis horas), momento em que se começa a entoar cantos
nos retiros religiosos, mas sempre é possível buscar outras interpretações, pois
a riqueza de um texto poético como esse parece não ter fim. As releituras não
exaurem sua mensagem, ao contrário, fazem surgir mais e mais possibilidades
interpretativas, o que nos permite compará-lo a um caleidoscópio, o aparelho
que, por certa disposição de espelho, cria inúmeras figuras.
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