Lucilene Gomes Lima
Viana Moog
escreveu em 1938 a biografia intitulada “EÇA de QUEIRÓS E O SÉCULO XIX”,
procurando focalizar o que de mais característico ocorreu na vida e na carreira
do autor português nesse século. Das páginas de seu texto depreendemos
especialmente que a vivência de Eça impregna sua literatura. Moog afirma na
introdução da biografia: “[...] Os seus livros estão cheios de recordações de
países, cidades e vilas onde andou peregrinando [...]” (1966, p. 11). Essas
recordações dizem muito do que representou o século XIX para a cultura humana e
para Eça particularmente.
A galeria de
personagens vem de Coimbra, com sua gente de todas as partes e de todas as
classes (fidalgos e burgueses, lisboetas e transmontanos, ricos e pobres), na
descrição de Moog. É a cidade portuguesa cuja classe intelectual e artística
insufla as ideias revolucionárias do século XIX em Portugal, provocando o
conservadorismo lisboeta na “Questão Coimbrã”; vem de Lisboa e suas pasmaceira
burocrática, retrógrado bacharelismo, franco casuísmo e oportunismo; do
Oriente, onde Eça inspira-se com a observação da vida prática, despojando-se do
academicismo coimbrão e lisboeta, observando, a cada viagem, em cada
transporte, tipos particulares, exemplares humanos; de Havana, onde exerceu
carreira consular e resistiu a transigir em relação aos direitos humanos dos
chineses, ali transformados em escravos nas plantações de tabaco, como o foram
os nordestinos na Amazônia na monocultura da borracha; dos Estados Unidos e sua
diretriz inescrupulosa da ganância; de New Castle, cidade inglesa constituída
em centro industrial pela produção de carvão e ferro em meados do século XIX, respirando
trabalho em todos os setores de sua economia; vem, por fim, de Paris onde
presencia a espetaculização da modernidade e o vazio de sua vida mundana.
O conto
“Civilização”, de Eça de Queiroz, transformado no romance “A cidade e as
serras”, é parte do conjunto de obras que o autor denominou “Cenas da vida
real”, que começou a escrever antes de sua morte, tendo sido publicado
postumamente. O texto é narrado por Zé Fernandes, personagem amigo do protagonista,
Jacinto, o qual “nasceu num palácio com quarenta contos de renda em pingues
terras de pão, azeite e gado” (1996, p. 50). Sem os preâmbulos e os
detalhamentos do romance, o conto introduz diretamente as cenas de Jacinto em
sua rotina diária de vida farta e privilégios modernos, para tanto, cercando-se
de aparelhos, aos olhos do século XXI já completamente ultrapassados: o
telégrafo Morse, a máquina de escrever, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone,
denominados pelo narrador “facilitadores do pensamento”, imprimindo no século
XIX o mesmo sopro de modernidade civilizatória que hoje nos possibilitam o
telefone celular, as redes sem fios, os eletrônicos, enfim. Naquele século,
assim como posteriormente, a crença do ser humano, ilustrada no conto, é de que
as máquinas facilitam a vida. Jacinto é cercado de utilidades por todos os
lados, em sua sala de estudo, de banho, no lavatório. Mas, ao mesmo tempo em que
tenta tirar proveito de todos os objetos avançados que tem a seu dispor,
Jacinto é frustrado por uma série de contratempos: o fonógrafo dana-se a
repetir a mesma reprodução de voz incessantemente: “Maravilhosa invenção! Quem
não admirará os progressos deste século” (1996, p. 54), o peixe do jantar
trazido em bandeja pelo ascensor emperra no meio do caminho, sendo necessários
pedreiros com alavancas para retirá-lo, a torneira com jato de água a cem graus
começa a fumegar e estrondar descontroladamente, fazendo todos fugirem. Tudo
pode parecer caricatural, apesar de Eça ter se baseado em fatos ocorridos com o
seu amigo Eduardo Prado. Comparado com a atualidade, não é muito diferente do
sistema GPS que nos leva para onde não queremos ir, da comunicação em rede que,
parecendo ampliar nossa liberdade, começa a se voltar contra nós, restringindo
nossa privacidade, pondo nossos dados à disposição de todas as fraudes, dos
caixas eletrônicos que nos irritam diariamente com a leitura do chip que não funciona, impedindo-nos de
realizar uma operação ou de ter acesso ao nosso dinheiro, mas facilitando para
os ladrões saqueá-los a hora que lhes for conveniente. Convivemos com os
sistemas e os aplicativos fora do ar, o apagão das redes. Até nosso orgulho
super moderno de termos máquinas tão avançadas que se autodirijam pode nos
surpreender. Que garantia teremos de que ao abrir a geladeira e a ela falar conosco,
dizendo-nos o que necessita, a qualquer momento também não possa esgotar nossa
paciência com sua objetividade de máquina ou desregular-se, fazendo o que não
foi programada para fazer. Como dizia o narrador de “Civilização” naquele
ultrapassado século XIX: “[...] Todos esses fios mergulhados em forças
universais, transmitiam forças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente,
se conservam domadas e disciplinadas!” (1996, p. 54).
Assim como
ironiza a imprevisibilidade funcional das máquinas, Eça ironiza o acúmulo, o
excesso de coisas de que nos cercamos, às vezes sem usufruirmos delas. Esse é
outro dilema do personagem Jacinto, ocupar-se de coisas de que ele não
precisava para viver ou até para viver bem: “[...] Nunca recordo sem assombro a
sua mesa, recoberta toda de sagases e sutis instrumentos para cortar papel,
numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir
datas, derreter lacre, cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros
de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de manejo laborioso e lento: alguns
com as molas rígidas, as pontas vivas, trilhavam e feriam: e nas largas folhas
de papel Whatman em que ele escrevia, e que custavam quinhentos réis, eu por
vezes surpreendi gotas de sangue de meu amigo. Mas a todos ele considerava
indispensáveis para compor as suas cartas (Jacinto não compunha obras) assim
como os trinta e cinco dicionários, e os manuais e as enciclopédias, e os
guias, e os diretórios, atulhando uma estante isolada, esguia em forma de
torre, que silenciosamente girava sobre o seu pedestal, e que eu denominava o
Farol [...]” (1996, p. 53).
Como no século
XIX, no século XXI ainda temos muitas coisas para fazermos uma coisa só, ainda
convivemos com coisas que se desdobram, multifuncionais, multifocais, 3D, 4D,
3G, 4G... Nossa crença de que engenhos mais modernos facilitarão tudo torna-nos
cada vez mais dependentes deles. No século XX, os cavalos conviveram com os
automóveis nas ruas das metrópoles emergentes. O cinema surpreendeu quem ainda
não era capaz de distinguir a imagem reproduzida por equipamento e a imagem do
real, o bonde igualmente surpreendeu quem não concebia um veículo àquela
velocidade. No fundo, a civilização continua a conviver com o velho e o novo,
escondendo, às vezes no fundo dos oceanos, o que descarta em toneladas. Já
começamos a perceber que nosso desenvolvimento e progresso, dependente que foi
da queima de carvão, extinguindo muita vida vegetal, poluindo a atmosfera com
combustível fóssil, pode ser também nossa regressão. Que proteção real temos
contra furacões, maremotos, terremotos, mudanças climáticas abruptas? Que
proteção (quase infalível) contra os milenares fenômenos naturais?
O conto de Eça
chama-se “Civilização”, não “Civilização e rusticidade”, mas a narrativa é
dividida entre a civilização urbana e a vida rústica. Não seria o conto uma
reflexão sobre o que é realmente civilização? No texto estendido, que
posteriormente se denominou “A cidade as serras”, o personagem Jacinto estava
certo, na primeira parte da narrativa, que se passa na cidade, que vivia uma
vida superior: “[...] eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque
descubro realidades do Universo que ele não suspeita e de que está privado.
Aplica esta prova a todos os órgãos e compreendes o meu princípio. Enquanto à
inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável acumulação das
nações [...] Claro é portanto que nos devemos cercar de Civilização nas máximas
proporções para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver [...]” (1996,
p. 11). A certeza de Jacinto, de repente, começou a se abalar no meio da
narrativa. Ele já não vivia, empalidecia, prostrava-se em estado vegetativo e
procurava alento em alguma novidade: “Que maçada! Que maçada! Claramente a vida
era para Jacinto um cansaço – ou por laboriosa e difícil ou por desinteressante
e oca. Por isso, o meu pobre amigo procurava constantemente juntar a sua vida
novos interesses, novas facilidades. Dois inventores, homens de muito zelo e
pesquisa, estavam encarregados, um em Inglaterra, outro na América, de lhe
noticiar e de lhe fornecer todas as invenções, as mais miúdas [...]” (1996, p.
63). Na segunda parte da narrativa, vivendo na serra, Jacinto se surpreende com
as coisas que não notava, como o céu estrelado, e desabafa para o amigo Zé Fernandes
que só o ser humano pode desiludir-se com a vida: “É no máximo de civilização
que ele experimenta o máximo de tédio. A sapiência, portanto está em recuar até
esse honesto mínimo de civilização que consiste em ter um teto de colmo, uma
leira de terra e o grão para nela semear [...]” (1996, p. 87). É o que muita
gente nesse início de século XXI não tem.
Talvez o
desapontamento com os rumos da civilização que havia se tornado tão particular
no espírito de Eça no final do século XIX faça parte hoje de um conflito muito
mais abrangente. Se a obra de Eça de Queiroz foi uma tradução muito aproximada
do século XIX, ela não deixa de anunciar o que também iria se passar no século
XX e nesse princípio de século XXI, à medida que muitas coisas ali engendradas se
acentuaram. Constatemos algumas afinidades através das palavras de Moog: “No
conjunto de sua obra viveria somente o século XIX, nos seus aspectos
predominantes, nos seus defeitos como nas suas virtudes, e até nos seus
transitórios desfalecimentos. Do século XIX vir-lhe-ia o cientificismo, o naturalismo,
a irreligiosidade, o gôsto pelos problemas psicológicos e sociais. Dêle o
narcisismo, o orgulho da razão, o materialismo, a suficiência, a fatuidade, o
cinismo, o satanismo, a leviandade, a ligeireza, a procura desesperada de
originalidade, a falta de originalidade, a arrogância, a paixão pelo bizarro, o
dandismo, e no seu caso o grande desencanto do fim” (1996, p. 69). O que Eça já
apontava no seu conto escrito sobre a atmosfera do décimo-nono século, o século
XX vivenciou no movimento Contracultura, o século XXI experimenta na sua
saturação do discurso ecológico.
Existem
interpretações dos textos de Eça de Queiroz publicados postumamente que
conjecturam sua retomada de um Portugal arcaico, histórico. De qualquer forma,
a fuga do personagem Jacinto e de seu criador é a nossa fuga contemporânea
quando buscamos alternativas de respiração fora das cidades, de seu ar poluído,
opressor, sua superlotação e violência, quando buscamos uma alternativa à
alimentação fabricada em série, à locomoção impedida, as atitudes compulsivas.
Quem acompanha a trajetória de vida de Eça narrada por Moog compreende que ele
tenha se desvanecido da crença numa civilização e tenha projetado na vida sem
pretensões da serra o último reduto de esperança.
*Publicado no blog em 0.5.05.2019
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