sábado, 25 de fevereiro de 2023

CULTURA MEDIEVAL DE POVOS SUBCOLONIZADOS DA EUROPA

                                                                                   Isaac Warden Lewis

 

Precisamos falar seriamente, uma vez que os donos dos meios de comunicação, os jornalistas assalariados e os/as  apresentadores/as de programas de imbecilização não estão interessados em refletirem profundamente sobre os problemas e as questões que afligem a maioria da população brasileira há mais de quinhentos anos quando da implantação da cultura medieval portuguesa através da colonização do território brasileiro, financiado por capitalistas de países industriais da Europa. Por isso, jornalistas, políticos, militares, policiais, professores, acadêmicos, empresários etc. gostam de brincar ou de imitar profissionais em suas fingidas áreas de atuação. Desse modo, vemos: 1) jornalistas entrevistando ministros, netos de ministros lacaios e serviçais da ditadura militar (1964-1985), pretendendo ensinar que as instituições sociais ou nacionais devem ser neutras e independentes; 2) políticos administrando as instituições políticas e sociais republicanas como se elas ainda pertencessem às capitanias hereditárias; 3) oficiais militares e policiais brincando de fazer guerra contra a população do país, tratando-a como inimiga da pátria, utilizando armas, fardas, quartéis e soldos financiados por essa população; 4) professores e acadêmicos (incluindo engenheiros e astronautas) brincando de curandeiros, fazendo de conta que estão fazendo ciência. Daí, as discussões, debates e entrevistas promovidos pelos meios de comunicação nesse país eternamente colonizado (ou deitado eternamente) são primorosas construções de palavras e ideias espalhadas pelo vento, muitas vezes com citação de algum filósofo idealista alemão, apreciado por estudiosos elitistas luso-brasileiros que rejeitam conhecimentos elaborados por estudiosos da Renascença, do Humanismo, do Iluminismo e, principalmente, dos teóricos e revolucionários de 1789 (França), 1917 (Rússia), 1949 (China), 1959 (Cuba). Nessas circunstâncias, vale a pena reler o FEBEAPÁ (Festival de Besteira que Assola o País), escrito por Sérgio Porto (Stanilaw Ponte Preta), em 1966, e que continua atualíssimo. Vale a pena também ressaltar que a cultura medieval portuguesa despreza o conhecimento científico, privilegia o ser humano masculino, considera inferior o ser humano feminino, imagina o europeu como ser superior , menospreza o não europeu, elege a cultura europeia, com todas as suas insuficiências e seus erros como cultura privilegiada e inteligente, escamoteia sua ignorância, barbárie, covardia e selvageria, atribuindo essas qualidades a povos não europeus.

Enquanto isso, vários “estudiosos” põem-se a analisar ou, mais precisamente, a escamotear o último genocídio praticado por luso-brasileiros contra os povos nativos do território Yanomami. Ressaltam as perdas para o meio ambiente, a economia do país e silenciam sobre as perdas culturais para a humanidade desde que os colonizadores portugueses elegeram a apropriação dos territórios dos nativos da América, África e Ásia como sua prioridade empresarial nos continentes, achados, por acaso, pelos navegantes portugueses. Para isso, o genocídio de povos não europeus era lícito e cristão para possibilitar a concentração de terras, com suas riquezas minerais e agrícolas, sob o controle de capitalistas colonialistas de países industrializados da Europa. Os portugueses subcolonizados acreditavam ter realizado sua grande missão civilizatória, explorando povos da América, África e Ásia e espoliando seus recursos naturais e sua força de trabalho. Ignoraram os conhecimentos construídos por esses povos há milhares de anos antes da chegada dos europeus medievalistas. Por isso, os colonizadores portugueses foram explorados e espoliados pelos capitalistas industriais da Europa e legaram aos luso-brasileiros sua vocação de destruição de povos, ambientes e culturas desconhecidas por eles. Há luso-brasileiros e outros imigrantes europeus subcolonizados que se orgulham de sua ignorância e sua subserviência a países industrializados da Europa.

 

 

 

 

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

LEITURA DE UM POEMA-CALEIDOSCÓPIO, DE FERNANDO PESSOA

                                                                                       Lucilene Gomes Lima

 

                                       Saudade dada

Em horas inda louras, lindas

Clorindas e Belindas, brandas,

Brincam no tempo das berlindas,

As vindas vendo das varandas,

De onde ouvem vir a rir as vindas

Fitam o fio as frias bandas.

 

Mas em torno à tarde se entorna

A atordoar o ar que arde

Que a eterna tarde já não torna!

E em tom de atoarda todo o alarde

Do adornado ardor transtorna

No ar de torpor da tarda tarde.

 

E há nevoentos desencantos

Dos encantos dos pensamentos

Nos santos lentos dos recantos

Dos bentos cantos dos conventos...

Prantos de intensos, lentos, tantos

Que encantam os atentos ventos.

                   

Ao iniciarmos a leitura do poema “Saudade dada”, de Fernando Pessoa, é possível percebermos um  intenso ritmo melódico, aliás, esse ritmo já se faz presente antes de a poesia tomar corpo, no próprio título do poema, através da alternância entre a consoante sonora /d/ e a consoante surda /s/.  Ainda que se faça uma primeira leitura desatenta à mensagem que o poema encerra, a musicalidade não passa despercebida. Como exemplo, note-se o eco na repetição da sílaba /das/ no final de todos os versos da primeira estrofe.

Além da musicalidade, o poema também é construído por inúmeras associações no plano semântico.  As palavras horas, louras no primeiro verso levam à sequência: louro – dourado – sol – luz do sol o que nos possibilita interpretar metaforicamente as horas inda louras como horas ainda banhadas pela luz do sol. A aliteração da consoante /l/, sonoramente branda, nas sequências louras, lindas, Clorindas/berlindas dá à estrofe um tom de doçura, fluidez, leveza. O adjetivo lindas prolonga-se no interior dos substantivos Belindas, berlindas intensificando e renovando o ritmo melódico da estrofe. É interessante observar também que esses substantivos sugerem um tempo passado e, num contínuo exercício de musicalidade, expressam na repetição de suas sílabas finais (indas), juntamente com as finais de outras palavras (lindas, vindas), um sentimento nostálgico, quase à imitação de um suspiro, pelo prolongamento das sílabas.

Apesar do tom nostálgico suscitado por alguns nomes, o compasso/andamento da estrofe não é lento, os verbos brincam, vendo, ouvem, vir, rir, fitam indicam ação, sentido, movimento. A presença reiterada dos fonemas consonantais e vocálicos através de ecos e aliterações intensifica as sensações. A sucessão de vogais abertas e claras /e/ /o/ /a/ /i/ está em harmonia com a ideia transmitida na estrofe, de um momento do dia ainda banhado pela luz solar.

Na segunda estrofe, a presença da conjunção mas  no primeiro verso transmite uma clara indicação da ruptura a ocorrer no âmbito do sentido e também no ritmo melódico. O tom nostálgico se espraia. Nos primeiros versos apresentam-se as sinestesias (associações fonético-semânticas de sensações): “O ar que se entorna a atordoar”, “ar que arde”; “ar de torpor”; “adornado ardor”, “eterna tarde” (nessa última, note-se a possibilidade que se desdobra: terna tarde). Verifica-se também novamente o prolongamento de uma palavra (ar) em outras: atordoar, arde. Ao verbo arde, no segundo verso, agrega-se um serial de combinações em todos os demais versos da estrofe, sejam contidas em outras palavras, sejam em formas derivadas: tarde, atoarda, alarde, ardor, arda, mantendo a mesma unidade no sentido. Esse recurso é amplamente significativo, pois constrói a sugestão musical do poema através do eco das palavras e intensifica o sentido da ideia comunicada na estrofe, criando um farto paralelismo. Essa  brincadeira, pode-se dizer, com a escolha das palavras ainda se repete em “adornado”. Verbos como entorna, torna, transtorna e o particípio adornado, carregam outros, misturando os sentidos. Em “entorna”, tem-se torna, orna; em “torna”, orna; em “transtorna”, tem-se torna, orna e em “adornado”, tem-se orna e ornado.

O conjunto dos verbos empregados na segunda estrofe indica uma sintonia com uma sensação de languidez, de amolecimento, mormaço: entorna, atordoar, transtorna, arde. O mesmo se verifica com as imagens: eterna tarde, tarda tarde. Pode-se pressupor ainda uma sugestão sutil no verso “Que a eterna tarde já não torna”, em que primeiramente a negativa “não torna” remete à definição daquilo que não volta (a tarde faz parte do percurso do tempo e o tempo passado não retorna), mas ganha uma interpretação nova se ligado ao sentido de se restabelecer de um desfalecimento – a tarde desfalece. Nesse caso, ocorre uma figuração de um período de tempo através da atribuição de uma qualidade que não lhe é própria. O último verso da estrofe: “No ar de torpor da tarda tarde” leva a uma associação que pode nos definir o momento descrito pelo poeta. Para tal, é necessário ler o verso em um novo arranjo, isolando a última sílaba do substantivo torpor, encadeando-a às  palavras finais do verso: “torpor da tarda tarde”.

A terceira estrofe traz novamente o jogo das palavras dentro das palavras desencantos, encantos, recantos, cantos, encantam, cantam, ocasionando o eco das sílabas no interior e no final das palavras dos versos.

Encontra-se, ainda, o efeito paronomástico (semelhança na forma e oposição no sentido) na palavra “cantos” que pode ter o sentido de lugar em associação com “recantos”, como também o sentido musical. A repetição da consoante oclusiva surda /t/ associa-se com as ideias de fechamento (convento); pouca luz (cantos, recantos); obscuridade (nevoentos). No verso “Nos santos lentos dos recantos”, a aparente desordem sintática é proposital para possibilitar o cavalgamento dos versos: “recantos/Dos bentos cantos dos conventos”, sendo que a palavra “cantos” perde a sua associação com “recantos”, em indicação de local, e passa a ser um substantivo qualificado pelo adjetivo “bentos”. Os versos finais da estrofe trazem um paradoxo nos “prantos/Que encantam” e uma personificação em “atentos ventos”, enriquecendo simultaneamente o plano sensorial e conceitual do poema.

Retornando ao poema a partir do seu título, pode-se considerar que apesar da palavra Saudade, o poema se constrói com todos os versos no presente e o título Saudade dada reforça o sentido de uma saudade presente. Menos que um sentimento saudosista do passado, o que parece ser transmitido pelo poema é o tom nostálgico que o entardecer suscita, daí a Saudade dada, uma saudade que não é obrigatoriamente de um tempo, mas uma sensação que o entardecer transmite. O ritmo nostálgico é intensamente reforçado pelas aliterações que sugerem uma música suave, transmitindo-nos uma sensação de embalo pelas palavras, a exemplo do verso: “As vindas vendo das varandas”. É de se notar ainda que o próprio ritmo de cada estrofe dá a gradação das horas do evoluir da tarde. Dessa forma, a poesia vai sendo construída por estágios: primeira estrofe – as horas inda louras; segunda estrofe – a tarde se encaminhando para a noite, a languidez do ar que se entorna a atordoar, o torpor; terceira estrofe – a chegada da noite estabelecendo a obscuridade, o fechamento (recantos, conventos). É oportuno lembrar que a escolha de palavras como “convento’, “bentos”, “cantos” numa relação paradigmática (associativa, correlacional) pode representar a hora que marca a chegada da noite (seis horas), momento em que se começa a entoar cantos nos retiros religiosos, mas sempre é possível buscar outras interpretações, pois a riqueza de um texto poético como esse parece não ter fim. As releituras não exaurem sua mensagem, ao contrário, fazem surgir mais e mais possibilidades interpretativas, o que nos permite compará-lo a um caleidoscópio, o aparelho que, por certa disposição de espelho, cria inúmeras figuras.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

EÇA DE QUEIROZ E O SÉCULO XIX, XX e XXI

                                                                                     Lucilene Gomes Lima


Viana Moog escreveu em 1938 a biografia intitulada “EÇA de QUEIRÓS E O SÉCULO XIX”, procurando focalizar o que de mais característico ocorreu na vida e na carreira do autor português nesse século. Das páginas de seu texto depreendemos especialmente que a vivência de Eça impregna sua literatura. Moog afirma na introdução da biografia: “[...] Os seus livros estão cheios de recordações de países, cidades e vilas onde andou peregrinando [...]” (1966, p. 11). Essas recordações dizem muito do que representou o século XIX para a cultura humana e para Eça particularmente.

A galeria de personagens vem de Coimbra, com sua gente de todas as partes e de todas as classes (fidalgos e burgueses, lisboetas e transmontanos, ricos e pobres), na descrição de Moog. É a cidade portuguesa cuja classe intelectual e artística insufla as ideias revolucionárias do século XIX em Portugal, provocando o conservadorismo lisboeta na “Questão Coimbrã”; vem de Lisboa e suas pasmaceira burocrática, retrógrado bacharelismo, franco casuísmo e oportunismo; do Oriente, onde Eça inspira-se com a observação da vida prática, despojando-se do academicismo coimbrão e lisboeta, observando, a cada viagem, em cada transporte, tipos particulares, exemplares humanos; de Havana, onde exerceu carreira consular e resistiu a transigir em relação aos direitos humanos dos chineses, ali transformados em escravos nas plantações de tabaco, como o foram os nordestinos na Amazônia na monocultura da borracha; dos Estados Unidos e sua diretriz inescrupulosa da ganância; de New Castle, cidade inglesa constituída em centro industrial pela produção de carvão e ferro em meados do século XIX, respirando trabalho em todos os setores de sua economia; vem, por fim, de Paris onde presencia a espetaculização da modernidade e o vazio de sua vida mundana.

O conto “Civilização”, de Eça de Queiroz, transformado no romance “A cidade e as serras”, é parte do conjunto de obras que o autor denominou “Cenas da vida real”, que começou a escrever antes de sua morte, tendo sido publicado postumamente. O texto é narrado por Zé Fernandes, personagem amigo do protagonista, Jacinto, o qual “nasceu num palácio com quarenta contos de renda em pingues terras de pão, azeite e gado” (1996, p. 50). Sem os preâmbulos e os detalhamentos do romance, o conto introduz diretamente as cenas de Jacinto em sua rotina diária de vida farta e privilégios modernos, para tanto, cercando-se de aparelhos, aos olhos do século XXI já completamente ultrapassados: o telégrafo Morse, a máquina de escrever, o fonógrafo, o telefone, o teatrofone, denominados pelo narrador “facilitadores do pensamento”, imprimindo no século XIX o mesmo sopro de modernidade civilizatória que hoje nos possibilitam o telefone celular, as redes sem fios, os eletrônicos, enfim. Naquele século, assim como posteriormente, a crença do ser humano, ilustrada no conto, é de que as máquinas facilitam a vida. Jacinto é cercado de utilidades por todos os lados, em sua sala de estudo, de banho, no lavatório. Mas, ao mesmo tempo em que tenta tirar proveito de todos os objetos avançados que tem a seu dispor, Jacinto é frustrado por uma série de contratempos: o fonógrafo dana-se a repetir a mesma reprodução de voz incessantemente: “Maravilhosa invenção! Quem não admirará os progressos deste século” (1996, p. 54), o peixe do jantar trazido em bandeja pelo ascensor emperra no meio do caminho, sendo necessários pedreiros com alavancas para retirá-lo, a torneira com jato de água a cem graus começa a fumegar e estrondar descontroladamente, fazendo todos fugirem. Tudo pode parecer caricatural, apesar de Eça ter se baseado em fatos ocorridos com o seu amigo Eduardo Prado. Comparado com a atualidade, não é muito diferente do sistema GPS que nos leva para onde não queremos ir, da comunicação em rede que, parecendo ampliar nossa liberdade, começa a se voltar contra nós, restringindo nossa privacidade, pondo nossos dados à disposição de todas as fraudes, dos caixas eletrônicos que nos irritam diariamente com a leitura do chip que não funciona, impedindo-nos de realizar uma operação ou de ter acesso ao nosso dinheiro, mas facilitando para os ladrões saqueá-los a hora que lhes for conveniente. Convivemos com os sistemas e os aplicativos fora do ar, o apagão das redes. Até nosso orgulho super moderno de termos máquinas tão avançadas que se autodirijam pode nos surpreender. Que garantia teremos de que ao abrir a geladeira e a ela falar conosco, dizendo-nos o que necessita, a qualquer momento também não possa esgotar nossa paciência com sua objetividade de máquina ou desregular-se, fazendo o que não foi programada para fazer. Como dizia o narrador de “Civilização” naquele ultrapassado século XIX: “[...] Todos esses fios mergulhados em forças universais, transmitiam forças universais. E elas nem sempre, desgraçadamente, se conservam domadas e disciplinadas!” (1996, p. 54).

Assim como ironiza a imprevisibilidade funcional das máquinas, Eça ironiza o acúmulo, o excesso de coisas de que nos cercamos, às vezes sem usufruirmos delas. Esse é outro dilema do personagem Jacinto, ocupar-se de coisas de que ele não precisava para viver ou até para viver bem: “[...] Nunca recordo sem assombro a sua mesa, recoberta toda de sagases e sutis instrumentos para cortar papel, numerar páginas, colar estampilhas, aguçar lápis, raspar emendas, imprimir datas, derreter lacre, cintar documentos, carimbar contas! Uns de níquel, outros de aço, rebrilhantes e frios, todos eram de manejo laborioso e lento: alguns com as molas rígidas, as pontas vivas, trilhavam e feriam: e nas largas folhas de papel Whatman em que ele escrevia, e que custavam quinhentos réis, eu por vezes surpreendi gotas de sangue de meu amigo. Mas a todos ele considerava indispensáveis para compor as suas cartas (Jacinto não compunha obras) assim como os trinta e cinco dicionários, e os manuais e as enciclopédias, e os guias, e os diretórios, atulhando uma estante isolada, esguia em forma de torre, que silenciosamente girava sobre o seu pedestal, e que eu denominava o Farol [...]” (1996, p. 53).  

Como no século XIX, no século XXI ainda temos muitas coisas para fazermos uma coisa só, ainda convivemos com coisas que se desdobram, multifuncionais, multifocais, 3D, 4D, 3G, 4G... Nossa crença de que engenhos mais modernos facilitarão tudo torna-nos cada vez mais dependentes deles. No século XX, os cavalos conviveram com os automóveis nas ruas das metrópoles emergentes. O cinema surpreendeu quem ainda não era capaz de distinguir a imagem reproduzida por equipamento e a imagem do real, o bonde igualmente surpreendeu quem não concebia um veículo àquela velocidade. No fundo, a civilização continua a conviver com o velho e o novo, escondendo, às vezes no fundo dos oceanos, o que descarta em toneladas. Já começamos a perceber que nosso desenvolvimento e progresso, dependente que foi da queima de carvão, extinguindo muita vida vegetal, poluindo a atmosfera com combustível fóssil, pode ser também nossa regressão. Que proteção real temos contra furacões, maremotos, terremotos, mudanças climáticas abruptas? Que proteção (quase infalível) contra os milenares fenômenos naturais?

O conto de Eça chama-se “Civilização”, não “Civilização e rusticidade”, mas a narrativa é dividida entre a civilização urbana e a vida rústica. Não seria o conto uma reflexão sobre o que é realmente civilização? No texto estendido, que posteriormente se denominou “A cidade as serras”, o personagem Jacinto estava certo, na primeira parte da narrativa, que se passa na cidade, que vivia uma vida superior: “[...] eu, civilizado, sou mais feliz que o incivilizado, porque descubro realidades do Universo que ele não suspeita e de que está privado. Aplica esta prova a todos os órgãos e compreendes o meu princípio. Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável acumulação das nações [...] Claro é portanto que nos devemos cercar de Civilização nas máximas proporções para gozar nas máximas proporções a vantagem de viver [...]” (1996, p. 11). A certeza de Jacinto, de repente, começou a se abalar no meio da narrativa. Ele já não vivia, empalidecia, prostrava-se em estado vegetativo e procurava alento em alguma novidade: “Que maçada! Que maçada! Claramente a vida era para Jacinto um cansaço – ou por laboriosa e difícil ou por desinteressante e oca. Por isso, o meu pobre amigo procurava constantemente juntar a sua vida novos interesses, novas facilidades. Dois inventores, homens de muito zelo e pesquisa, estavam encarregados, um em Inglaterra, outro na América, de lhe noticiar e de lhe fornecer todas as invenções, as mais miúdas [...]” (1996, p. 63). Na segunda parte da narrativa, vivendo na serra, Jacinto se surpreende com as coisas que não notava, como o céu estrelado, e desabafa para o amigo Zé Fernandes que só o ser humano pode desiludir-se com a vida: “É no máximo de civilização que ele experimenta o máximo de tédio. A sapiência, portanto está em recuar até esse honesto mínimo de civilização que consiste em ter um teto de colmo, uma leira de terra e o grão para nela semear [...]” (1996, p. 87). É o que muita gente nesse início de século XXI não tem.

Talvez o desapontamento com os rumos da civilização que havia se tornado tão particular no espírito de Eça no final do século XIX faça parte hoje de um conflito muito mais abrangente. Se a obra de Eça de Queiroz foi uma tradução muito aproximada do século XIX, ela não deixa de anunciar o que também iria se passar no século XX e nesse princípio de século XXI, à medida que muitas coisas ali engendradas se acentuaram. Constatemos algumas afinidades através das palavras de Moog: “No conjunto de sua obra viveria somente o século XIX, nos seus aspectos predominantes, nos seus defeitos como nas suas virtudes, e até nos seus transitórios desfalecimentos. Do século XIX vir-lhe-ia o cientificismo, o naturalismo, a irreligiosidade, o gôsto pelos problemas psicológicos e sociais. Dêle o narcisismo, o orgulho da razão, o materialismo, a suficiência, a fatuidade, o cinismo, o satanismo, a leviandade, a ligeireza, a procura desesperada de originalidade, a falta de originalidade, a arrogância, a paixão pelo bizarro, o dandismo, e no seu caso o grande desencanto do fim” (1996, p. 69). O que Eça já apontava no seu conto escrito sobre a atmosfera do décimo-nono século, o século XX vivenciou no movimento Contracultura, o século XXI experimenta na sua saturação do discurso ecológico.

Existem interpretações dos textos de Eça de Queiroz publicados postumamente que conjecturam sua retomada de um Portugal arcaico, histórico. De qualquer forma, a fuga do personagem Jacinto e de seu criador é a nossa fuga contemporânea quando buscamos alternativas de respiração fora das cidades, de seu ar poluído, opressor, sua superlotação e violência, quando buscamos uma alternativa à alimentação fabricada em série, à locomoção impedida, as atitudes compulsivas. Quem acompanha a trajetória de vida de Eça narrada por Moog compreende que ele tenha se desvanecido da crença numa civilização e tenha projetado na vida sem pretensões da serra o último reduto de esperança.

*Publicado no blog em 0.5.05.2019

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

AMIZADES ROMPIDAS


I

 

As palavras podem ferir, ofender ou magoar os sentimentos de pessoas que vivem ao nosso redor. Também elas podem ser alentos, estímulos ou princípios pedagógicos que contribuem para o desenvolvimento da consciência, inteligência e do conhecimento pessoal. As palavras ofensivas podem tornar uma pessoa próxima infeliz, magoada por toda a sua vida. As palavras estimulantes podem tornar as pessoas próximas felizes por toda vida.

II

Charles Johnson , professor de inglês, descendente de barbadianos, chegou à cidade de Manaus. Ele havia lido em um livro de autor inglês que a maioria da população do Amazonas era descendente de inúmeros povos nativos que lutaram contra os colonizadores portugueses. Mister Jonhson viajou para outras cidades situadas no interior do Amazonas. Lecionou inglês para estudantes e professores das escolas municipais. Em uma de suas aulas, ele comentou sobre a informação que um autor inglês declarara sobre a descendência nativa da maioria da população do Amazonas. Alguns professores ficaram revoltados. Disseram que “eles nada tinham a ver com os povos que viviam na floresta.” O professor desculpou-se e disse que, com certeza, o autor do livro não conhecia, com  profundidade, a cultura da população do Amazonas. Alguns professores romperam amizade com o professor Charles Johnson.

 

III

Paulo Nascimento nasceu no Amazonas, numa cidade à beira do rio Amazonas. Seu pai, Manoel Nascimento, era português, comerciante próspero, amigo de índios, mamelucos, caboclos, negros, mulatos e de estrangeiros ou de descendentes de turcos, libaneses, judeus, árabes,  barbadianos, colombianos, peruanos e de outras gentes que viviam no Amazonas. Paulo Nascimento pensava em conhecer Portugal algum dia, mas o destino ou a sorte acabou fixando-o no solo amazônico. O destino chamava-se Lindalva, uma moça mulata, filha de um paulista e de uma maranhense, gente extremamente trabalhadora. Paulo e Lindalva tornaram-se amigos, namorados e, por fim, noivos. Paulo Nascimento comunicou aos amigos que iria casar-se com Lindalva. A maioria desses amigos parabenizaram-no, com exceção de Joaqumi Santana, filho de outro casal de portugueses. Joaquim perguntou, em tom de reprovação: “Você vai casar com essa mulher?”. Paulo Nascimento sentiu-se ofendido e respondeu: “Sim, qual é o problema? “Mas, ela é mulata”, respondeu Joaquim. Desde então, Paulo Nascimento não falou mais com Joaquim e deixou de frequentar a casa dos pais de Joaquim. Também, desistiu de conhecer Portugal.  

 

IV

 

Pedro Menezes nasceu no Rio de Janeiro. Ele era mulato. Filho de mãe branca e pai negro. Quando criança, Pedro gostava de sua mãe e de seu pai. Na verdade, ele adorava seu pai. Na adolescência, sua admiração pelo pai decresceu porque descobriu  que  ele era intolerante com seus amigos. Pedro Menezes conheceu Laura, uma estudante de medicina. Ela era branca, inteligente e estudiosa. Pedro e Laura namoraram por três anos. Pedro tornou-se escrivão da polícia. Também tornou-se crítico da sociedade em que vivia e extremamente rigoroso e competente profissionalmente. Não admitia injustiça de qualquer ordem para com os oprimidos da sociedade. Angariou, por isso, muitos inimigos na repartição onde trabalhava. Amoroso com seu pai na infância, tornou-se amargoso com ele por causa de sua atitude desrespeitosa com Gina, a sua nova namorada. Ela era negra e também amiga, carinhosa e inteligente. Um dia, seu pai lhe perguntou pela Laura. Pedro respondeu que ele e Laura romperam relações. Seu pai lhe perguntou se estava namorando “essa nega”. Pedro Menezes percebeu o tom preconceituoso de seu pai com relação à Gina. Pedro ficou mudo, olhou para o pai alguns instantes como se duvidasse que ele era realmente negro. Com certa rispidez, Pedro Menezes respondeu: “Sim, senhor meu pai, ela é minha nova namorada e vou me casar com ela, mesmo que o senhor não concorde”. Depois disso, Pedro Menezes passou a evitar seu pai e não falou mais com ele.

Logo, Pedro Menezes casou com Gina. Eles passaram a morar numa casa ao lado da casa dos pais. Muitas vezes, Pedro chegava tarde. O senhor Lourenço Menezes costumava sentar na varanda para observar a chegada do filho. Numa noite, quando seu filho chegou, o senhor Menezes chamou-o. Em tom delicado e com muita cautela, falou com o filho que ele não devia deixar Gina sozinha até tarde da noite. Pedro Menezes ficou mudo. Observou o semblante de seu pai por alguns instantes e afastou-se para a sua residência.

 

Manaus, Janeiro 2023