sábado, 9 de julho de 2022

A MANSÃO

                                                                                                             Isaac Warden Lewis

 

A casa de Roberto Ferreira, mais conhecido como Beto Fera, localizava-se no final de uma longa rua, que subia até uma colina, em um bairro do Rio de Janeiro. Em cima da colina, destacava-se a casa de Beto Fera. Os vizinhos, em geral, trabalhadores pobres, que lutaram arduamente para construir suas casas para abrigar sua família e numerosa prole, chamavam a casa de Beto Fera de mansão. Ninguém conseguia explicar como essa casa, dentre tantas naquele bairro, naquela rua, merecera a distinção, dada pelos vizinhos e vizinhas. O curioso é que essa casa virou referência até para os comerciantes do bairro e de outros bairros adjacentes, pois quando um vizinho ia comprar mercadorias em uma loja que precisasse fazer a entrega das compras, o vendedor perguntava pelo nome da rua, o número da casa: O comprador respondia, com orgulho: “ rua Bela Vista, sem número”. O vendedor pedia, então, uma referência. O comprador respondia quase que invariavelmente: “”A minha casa é a antepenúltima antes da mansão do Beto Ferreira” ou “Minha casa fica ao lado da mansão do Beto Fera” e assim por diante.

Ninguém conseguira entender também porque aquela rua se chamava Bela Vista, dado que a rua não apresentava vista bela ou coisa parecida. Mais surpreendente era o nome específico da quadra de ruas daquele bairro. Geralmente os moradores acrescentavam que a rua Bela Vista ficava no “Jardim da Felicidade”. Que felicidade poderia haver naquele bairro?, se levarmos em consideração que aquele bairro era tranquilo antes da chegada dos portugueses no século XVI. Ali, viviam os índios Tupinambá, que foram massacrados pelas tropas de Mem de Sá, o qual viera da Bahia para combater os franceses que pretendiam fundar uma colônia francesa na Baía da Guanabara. Como os Tupinambá eram aliados dos franceses e odiavam os portugueses, eles se tornaram alvos preferenciais dos portugueses, os quais gostavam de descarregar suas armas de fogo contra índios que lutavam com arco e flecha. Isso é a história colonial.  Essa tradição covarde se perpetuou no Brasil república. As polícias, as forças armadas, sob o comando de oficiais luso-brasileiros, continuaram invadindo bairros pobres, operários, comunidades quilombolas e indígenas, descarregando suas armas de fogo, em nome da “ordem e progresso” contra populações desarmadas, com apoio de juízes, políticos e da lei republicana.

A população testemunhava esses fatos históricos que aconteciam como se fosse uma fatalidade, um destino, um fato natural ou normal. Um aviso ou alerta percorria a comunidade, informando que, naquele dia, haveria abordagem policial e todos os homens, todas as mulheres e crianças deveriam ficar alertas. Os moradores ficavam mais preocupados do que alertas. Às dez ou às onze horas, um carro com um oficial e alguns soldados montados em uma camionete, fortemente armados, ao lado de uma potente metralhadora, subia a rua em direção à colina. Meia hora depois, o veículo descia. A vida voltava ao normal. Não houve nenhuma abordagem. Era apenas uma visita de negócios entre os policiais e o Beto Fera em sua mansão. Os policiais foram visitá-lo para receber a propina que ele lhes devia. Beto Fera era conhecido como poderoso comerciante de drogas pelos policiais, juízes e outras autoridades políticas que permitiam o seu monopólio comercial e de tráfico de drogas naquela comunidade. O comunicado que circulara de manhã cedo na comunidade não fora endereçado aos pobres moradores e sim para o Beto Fera, que deveria ficar alerta para atender bem os policiais em sua missão pacificadora.

E, assim, por muitos anos, Beto Fera reinou em sua mansão, situado na rua Bela Vista, no Jardim da Felicidade e bairros adjacentes. Ele se tornou também uma espécie de delegado nessas comunidades. Ele não permitia roubos, assassinatos, crimes em sua jurisdição. Quando algum morador se sentia violentado por algum criminoso, ele se dirigia ao Beto Fera que mandava investigar a procedência do delito e punia severamente o causador do crime. Todo morador sabia, de antemão, que não adiantava se dirigir à delegacia de polícia do bairro, a qual, geralmente, ignorava as reclamações dos moradores pobres.

Um dia, os moradores foram surpreendidos com a morte de Beto Fera. Ao voltar para casa à tarde no dia anterior, um carro aproximou-se de seu carro e dois pistoleiros saíram e atiraram em Beto Fera, que não teve tempo de se defender. À noite, o corpo foi velado na mansão. Que mansão? Os moradores perceberam que as paredes da mansão não era embuçadas, assim como não eram as paredes internas, o piso era terra batida, os dois banheiros eram precários. A viúva, a segunda mulher de Beto Fera, declarou que ele pretendia terminar de fazer os acabamentos da casa. “Agora, não sei o que fazer. A primeira esposa me comunicou que quer vender a casa, alegando que tem direito ao espólio do ex-marido. Todo dinheiro que ele ganhou foi entregue aos policiais e juízes corruptos dessa cidade, embora a vizinhança imaginasse que vivíamos bem. Que vida miserável.. Essa mansão é tão precária quanto foi a vida de Beto Fera. Ele vivia com medo. Afinal, não sabemos se ele foi morto a mando de algum comparsa do crime ou de alguma autoridade policial”.

 

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Manaus, Maio de 2022.

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