Lucilene Gomes Lima
A expressão dos sentimentos de um eu feminino marca
a cantiga de amigo, forma de composição poética do período literário conhecido
como Trovadorismo, florescido em Portugal entre os séculos XII, XIII e XVI. Nas
cantigas de amigo, fala a mulher, ao contrário da cantiga de amor em que fala o
homem. Segundo Saraiva e Lopes, em História
da literatura portuguesa (2008), uma das diferenças entre a cantiga de amor
e a de amigo é que a primeira expressa o amor idealizado, enquanto a segunda
expressa situações vulgares e corriqueiras das relações amorosas. O ambiente que
inspira as cantigas de amor é o palaciano. As cantigas de amigo, por sua vez,
retratam idílios nas margens dos rios, à beira das fontes ou o espaço doméstico
onde a moça realiza tarefas cotidianas. Não há disfarce ou fingimento de
intenção na cantiga de amigo, exceto pelo eufemismo de o amante ser assim
tratado. Em geral, no primeiro verso da cantiga, o amigo ou namorado é
referido.
Na poesia trovadoresca, tanto as cantigas de amor
quanto as de amigo eram compostas por homens. O trovador, nas cantigas de amor,
colocava-se como vassalo da dama para quem cantava, adotava uma atitude
submissa.
As cantigas de amor e de amigo legaram algumas
características à música popular brasileira. Um exemplo é a modinha, forma de composição combinando
música e poesia, executada em salões durante o império, estendendo-se até as
primeiras décadas do século XX. Nessas canções, não faltavam uma súplica
amorosa e um tom bucólico. Esse gênero musical de salão foi sucedido por um
gênero de rua, a serenata, de tema
igualmente sentimental. Guardadas as devidas diferenças de contexto histórico e
de espaço, nas serenatas, como nas cantigas trovadorescas de amigo, os
compositores também representam uma atitude de suserano perante as mulheres às
quais dedicam suas canções. As serenatas eram entoadas embaixo de janelas,
pondo as damas em posição de superioridade e o cantador de suplicante. A
expressão de um eu feminino na canção é outra característica em comum entre a
cantiga de amigo trovadoresca e a canção popular brasileira. A partir dos anos
1920, a música popular brasileira apresenta uma série de motivos em tons melodramáticos
e assuntos cotidianos no Teatro de
revistas, combinando representação teatral, dança e canção. A plateia,
composta de trabalhadores do comércio, militares de baixa patente, funcionários
públicos, era predominantemente masculina, mas foi essa plateia que viu surgir
Araci Cortes, primeira estrela da canção brasileira. Araci interpreta uma letra
composta por Henrique Vogeler e Luís Peixoto, denominada “Linda flor”, que se
torna um sucesso na época, pondo na voz de uma mulher a temática do sofrer
amoroso e do abandono. “Chorei toda noite, pensei, /nos beijos de amor que te
dei./Ioiô, meu benzinho do meu coração, / me leva pra casa, me deixa mais não”.
Em 1935, o compositor brasileiro Noel Rosa escreve o samba “X do problema”,
expressando-se pela voz de uma mulher. Nesse samba, está presente o tom de
monólogo e diálogo que também caracteriza as cantigas trovadorescas de amigo. A
letra do samba é inovadora por fundir à temática amorosa a identidade cultural
e a condição social, sob um protagonismo feminino.
Nos anos 1930 e 1940, o rádio torna-se o sucessor do
teatro de revistas, passando a ser o principal veículo divulgador da canção de
estrato popular. Nesse contexto, a popularidade está mais ligada à possibilidade
de difusão em massa do que à tradição e às formas de expressão espontâneas. A
grande difusão dos programas de rádio possibilitou o surgimento dos programas
de auditório e a formação de um público feminino, constituído principalmente
por camadas pobres da população. Essa plateia feminina identifica-se com
intérpretes femininas, conferindo-lhes prestígio. Muitas cantoras brasileiras
notabilizaram-se na época áurea do rádio, entre elas Marlene, Emilinha Borba,
Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Linda e Dircinha Batista, Isaurinha Garcia.
Devido a elas, a música popular brasileira inaugurou uma tradição de ser mais
rica em intérpretes femininas do que em intérpretes masculinos.
A canção “Risque”, composta por Ary Barroso, clássica
no gênero “dor de cotovelo”, foi sucesso na voz de Linda Batista na década de
1950. A letra não define se quem fala é um eu masculino ou feminino, mas marca
para o público uma presença feminina interpretando a canção. Na letra, é
referido o fracasso da paixão, é proposto que o relacionamento seja esquecido,
que se busque novo amor, que a saudade seja afogada na mesa de um bar, além de
a relação amorosa ser revelada como fantasia, quimera. São abordagens ousadas
na voz de uma intérprete feminina. Muitas cantoras brasileiras tiveram
desprendimento para interpretar músicas como “Lama”, gravada pela primeira vez
por Linda Rodrigues e, posteriormente, interpretada por Elza Soares, Ângela
Maria, Núbia Lafayette, Waleska, Maria Betânia; “Eu bebo, sim”, imortalizada na
voz de Elizeth Cardoso; “Marvada pinga”, marca interpretativa de Inezita
Barroso e das irmãs Galvão. Aracy de Almeida, considerada a primeira cantora da
dor feminina, interpretou a boemia em composições de Noel Rosa e de outros
compositores e foi parceira ainda muito jovem de Noel em suas noitadas nos
subúrbios cariocas. Assim como em
“Risque”, a letra de “Vingança”, de autoria de Lupicínio Rodrigues, interpretada
por diversas cantoras brasileiras, aborda com desprendimento o conflito
amoroso. A letra põe uma personagem feminina numa cena de boemia e decadência.
Em “Quem há de dizer”, do mesmo compositor, repete-se a referência à boemia
feminina. “Ela disse-me assim”, outra letra de Lupicínio, relata uma traição
feminina. A abordagem da infidelidade feminina nessa letra não expressa a
imagem da mulher como culpada ou vítima, mas como coparticipante e consciente.
As letras de Lupicínio apresentam o tom narrativo e dialogal das cantigas de
amigo.
O sofrimento amoroso sempre esteve presente na
canção popular brasileira e as letras compostas por homens sobre o fracasso da
relação não demonstram apenas um eu feminino passivo, perdido e inconformado
com a separação. “Fim de comédia”, de Ataufo Alves, celebrizada na voz de Dalva
de Oliveira, apresenta um eu feminino diferente de outras letras em que
predomina um espírito malévolo da mulher, sempre tratada pelo eu masculino como
malvada, pérfida, ingrata e inconstante. A letra ilustra a própria separação
conflituosa da cantora com o cantor e compositor Herivelto Martins. A letra de
“A mentira acaba”, de Arno Provenzano e Rui de Almeida, cuja intérprete mais
famosa é Elizeth Cardoso, expressa mensagem semelhante. Outra letra, “Vou
deitar e rolar”, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro, na interpretação
enfática de Elis Regina, é um brado de superação do rompimento amoroso, pois o
eu protagonista da canção convida a gargalhar e seguir em frente.
A disputa de
um mesmo amor é outro assunto que não é incomum na canção popular brasileira. A
cantora Isaurinha Garcia interpreta-o em “Duas mulheres e um homem”, de Cyro de
Souza e Jorge de Castro. Isaurinha também interpreta “Verdade cruel”, de Luiz
Chacon, letra que aborda uma separação e um eu feminino inconformado, mas com
um sabor de vingança pelo fato de que o companheiro viverá com a outra,
pensando nela.
Muitas letras compostas por compositores dão voz a
um eu feminino consciente de suas ilusões em relação ao companheiro. Em “Minha
estranha loucura”, a cantora Alcione interpreta nos versos compostos por
Michael Sullivan, Paulo Massadas e
Mihail Plopschi, a mulher que se sente incompreendida, que se doa sem receber
igual doação, que se anula e se culpa. Outras composições como “Sufoco”, de
Antonio José e Chico da Silva e “Você me vira a cabeça” (Me tira do sério)”, de
Chico Roque e Paulo Sérgio Valle, também interpretadas por Alcione, expressam
queixas e situações semelhantes.
Algumas letras dessa veia sentimental da música
popular brasileira transparecem, no eu feminino magoado, as diferenças entre as
regras sociais para homens e mulheres, denunciando-as como injustas. Como
exemplos, “Errei, sim”, de Ataúfo Alves, “Ronda”, de Paulo Vanzolini e “Com
açúcar, com afeto”, de Chico Buarque. Nas canções em que o eu feminino se
revela como a outra, há uma denúncia dos valores desiguais para a amante e a
esposa, como expressam os versos da canção “Eu sou a outra”, de Ricardo Galeno,
gravada originalmente na década de 1950 pela cantora Carmen Costa e, posteriormente,
também interpretada por Ângela Maria, Elza Soares, Tânia Alves. A letra marcou
a carreira de Carmen Costa porque ela mesma viveu uma relação adúltera que se
tornou pública. Em algumas letras, apesar de o ser feminino expor suas mágoas,
também demonstra uma propensão a contemporizar, perdoando o companheiro. É o
que ocorre em “Amélia de Você”, composta pelas irmãs Elena e Eliane De Grammont,
em que o repúdio à submissão (“Cansei de ser Amélia santa e boa, que esquece,
que perdoa seus defeitos”), alterna-se com uma capitulação (“Tentei mudar você/Não
consegui porque nasci para ser Amélia de você”). Essa dubiedade de pensamento e
de atitude também está contida nas cantigas de amigo, cujo sentimento dos
contrastes do amor, que vem da influência da poesia provençal sobre a poesia
trovadoresca portuguesa, representa-se no querer e não querer, no recuo e na
entrega ao impulso do desejo.
Em muitas letras em que a fala parte do ponto de
vista da mulher, os compositores transmitem o ser feminino em momentos de
ousadia, orgulho e princípios, como podemos constatar em “A loba”, composição
de Luiz Carlos Jr. Peralva e Paulo Roberto dos Santos Rezende, que cria um
paralelismo entre conformação e revolta (“Sou doce, dengosa, polida/Fiel como
um cão/Sou capaz de te dar minha vida/[...]Sou mulher capaz de tudo/Pra te ver
feliz/Mas também sou de cortar o mal pela raiz”). A letra de “A mulher ideal”,
de Carlos Colla e Michael Sullivan, também expressa a mulher num espírito
insubmisso (“Eu sou aquilo que sou, e se quiser me mudar/Você vai se
arrepender, pois foi assim que gostou/Foi desse jeito que amou, além do bem e
do mal”). Na letra “Resposta”, composta por Maysa, a autonomia é tratada como
um momento de epifania, revelação (“Ninguém pode calar dentro de mim/Essa chama
que não vai passar/É mais forte que eu/E não quero dela me afastar/Eu não posso
explicar como foi/E como ela veio/E só digo o que penso/Só faço o que gosto/E
aquilo que creio”). Outros exemplos estão na letra de alerta “Os tempos
mudaram”, da cantora e compositora Roberta Miranda (Olha só, meu
companheiro/Hoje a moda é outra, os tempos mudaram/A mulher é
independente/Bebe, bate e joga o homem pra fora/Homem que se atreve como
antigamente/A trair, virar as costas/Hoje tudo é diferente, é a mulher que
bate/Na sua cara, a porta”) e na letra de mágoa revoltada “Traidor”, da
compositora e cantora Paula Fernandes (“Quem diria você, que insistia em dizer
que era conservador/Que iria me dar mil razões pra te amar por não ser traidor/Mas
agora deu adeus, pôs um fim nos sonhos meus/E aquela criatura que te amou não
te quer mais/Em outros braços me envolvi, nossa história já esqueci/Quando a
gente não cuida de um amor ele se vai”).
A morte trágica da cantora Marília Mendonça, aos 26
anos, no início do mês de novembro de 2021, trouxe à pauta jornalística a
questão do protagonismo feminino na música popular brasileira. Segundo muitos
comentários, a música sertaneja era dominada por cantores e também por uma
temática masculina antes de Marília. Sua condição, contudo, enquanto mulher que
compõe e interpreta, não é inédita em relação à de outras mulheres compositoras
e cantoras brasileiras. Nas últimas
décadas do século XIX, Chiquinha Gonzaga, considerada como uma das fundadoras
da música popular brasileira, despertou logo cedo para seus dotes artísticos,
mas foi obrigada pelo pai a casar-se aos dezesseis anos, tendo o marido se
oposto a que ela se dedicasse a tocar e a compor. Tempos depois, ela o abandona
e passa a viver com outro homem, o que lhe rende uma ação judicial de divórcio
por abandono do lar e adultério. O pai, por seu lado, deserda-a e considera-a
morta para a família. O desdobrar desses acontecimentos a fazem perder a guarda
de dois dos três filhos, mas ela não desiste da carreira musical. Após o
fracasso da segunda união matrimonial, passa a sobreviver dos modestos recursos
obtidos das aulas de piano e das apresentações em bailes. Na década de 1950,
destaca-se a compositora e intérprete Dolores Duran, com os dotes artísticos
manifestados desde os três anos de idade. Aos cinco anos, participa de festas
populares. Aos dez, participa do programa de calouros de Ary Barroso, obtendo a
nota máxima do júri. Com a morte do pai, começa a se profissionalizar aos doze
anos para ajudar financeiramente a família. A carreira de Dolores é breve,
morre aos 29 anos em virtude de um problema cardíaco e deixa um repertório de
composições marcantes, entre elas, “A noite do meu bem”. A compositora Maysa, outro
talento feminino precoce, cantava desde a adolescência em festas familiares,
compondo algumas músicas. Aos doze anos, compõe o samba-canção “Adeus”. Casa-se
aos dezoito anos com o empresário André Matarazzo, mas a união não é bem
sucedida principalmente porque ele se opõe a sua carreira de cantora. Grava, em 1956, o primeiro disco e em 1957
separa-se. A cantora não supera a separação nem a perda da guarda do filho
único. Vicia-se em álcool e sofre crises depressivas. Morre aos quarenta e um
anos em acidente automobilístico na ponte Rio Niterói. A década de 1970
contemplou a música popular brasileira com um número expressivo de
compositoras. Em suas letras, destacam-se o caráter de depoimento e o tema
amoroso confessional. Eliane De Grammont, compositora entre o final da década
de 1970 e início da década de 1980, só se tornou conhecida por causa do
acontecimento trágico do seu assassinato, aos 26 anos, por seu ex-marido, o cantor
Lindomar Castilho, apesar de ter buscado o reconhecimento e a
profissionalização, cantando em casas noturnas após se separar do cantor, que a
proibia de exercer a carreira artística. O fato teve maior repercussão pela
popularidade de Lindomar Castilho à época. Eliane deixou o anonimato, seu rosto
foi visto pelo público e sua voz foi ouvida, ao menos enquanto durou a abordagem
do caso nos veículos televisivos e jornalísticos. A vida de Helena Meireles, compositora
e violeira autodidata, marcada com os mesmos reveses do casamento compulsório
ainda muito jovem, é outro exemplo, flagrante, da invisibilidade profissional de
uma mulher que decide se dedicar à carreira artística. Mesmo apresentando
talento precocemente, compondo e cantando desde tenra idade, era desconhecida
no Brasil e viveu no ostracismo até sua obra ser elogiada pela revista
estadunidense “Guitar player”, sendo a partir daí descoberta pelos meios de
informação e entretenimento brasileiros, aos 67 anos. Para a compositora e
cantora Roberta Miranda, o sucesso também chegou tardiamente, sofreu idênticos
problemas de não aceitação familiar em relação ao seu sonho de ser cantora,
saindo de casa ainda bem jovem. Aos dezesseis anos, buscou sustentar-se,
cantando em bares, casas noturnas e bailes de bairro, perseguindo o
reconhecimento no meio artístico. Para as compositoras e intérpretes negras, a
condição de mulher dificultou ainda mais a ascensão artística. Clementina de
Jesus, Jovelina Pérola Negra, ainda que tardiamente, Dona Ivone Lara e Leci
Brandão, romperam barreiras que outras mulheres não conseguiram romper. Dona
Ivone, que teve por muito tempo as composições assinadas pelo primo, e Leci
Brandão tornaram-se exceções quando entraram em meios restritos aos homens
negros, como a ala de compositores das escolas de samba.
As letras que Marília
Mendonça compôs e/ou interpretou filiam-se à temática sentimental amorosa da canção
popular brasileira. Ela aproveitou lugares comuns dessas canções: a
traição, o desejo da esposa ou
companheira de repartir a infelicidade amorosa com a outra, a incapacidade de
resistir ao homem amado, a tentativa de esquecimento do amor infeliz, a
vingança por ser rejeitada, a dubiedade de atitudes, a entrega à boemia. Além
do repertório que não traz novidade na escolha dos temas, de certa forma
anacrônicos para uma época em que os compromissos e as relações amorosas se
afrouxam, a volubilidade e a inconstância se acentuam em relação à fidelidade e
ao compromisso, o enfoque melodramático ultrarromântico das canções contrasta
com a forma como são tratadas, na época contemporânea, autonomia e
independência femininas.