quarta-feira, 26 de abril de 2017

R E - C E N S O

                                                                                                   Lucilene Gomes Lima
I
Um recenseador bate palmas e a mulher vem atender. Ela mantém a porta semiaberta, tencionando mais se ocultar do que aparecer e permanece calada, olhando-o. O recenseador toma a iniciativa de falar algo.
– Bom dia, senhora. Estou fazendo o censo.
A mulher continua calada, mas esboça no rosto um estranhamento, ao ouvi-lo pronunciar a palavra e meneia a cabeça em sinal de incompreensão. Imediatamente, ele recorre ao manual do recenseador e lê em voz alta:
– O censo é o “arrolamento por enumeração direta, nominativa, simultânea e periódica de toda a população existente num determinado território, a fim de verificar o seu estado num dado momento”.
A mulher ri simploriamente. Ele fica desconsertado, sem conseguir explicar o que leu, e opta por uma solução prática.
– Trabalho  para o governo. Quero falar com os donos da casa. A senhora é a dona da casa?
– Não. O dono é  meu marido.
– Posso falar com ele?
– Pode.
A casa, uma construção de madeira, revela o efeito do tempo nas suas paredes. Aqui e acolá tábuas apodrecem. Logo que entra, o recenseador se depara com uma grande família e essa família numerosa reúne-se a sua volta para vê-lo realizar o ato de recensear. Para ele, um ato comum e repetitivo, para a família: um ato marcado por uma certa indeterminação. Por que sua existência tornou-se objeto de curiosidade, para que lhe servirá responder às perguntas do recenseador?
A primeira pergunta refere-se ao nome do dono da casa.
Agenor Silva - o homem responde prontamente.
E o nome da cônjuge? – indaga o recenseador.
– Nome de quê?
– Da sua mulher – esclarece o recenseador.
– Ah, é Iolanda Silva.
Antes de responder as outras perguntas, o homem se lembra de convidar o recenseador a sentar. Oferece um cafezinho, mas o recenseador recusa com um agradecimento. Sentam-se primeiramente a mulher e o marido e, aos poucos, as crianças se amontoam próximo a eles. O sofá, visivelmente danificado, começa a ranger as molas. O recenseador procura ter cautela. Senta-se numa posição incômoda, evitando forçar o assento. Nota que a mulher e o marido estão embaraçados. É como se sua pobreza se estampasse naquele sofá. As perguntas continuam sendo feitas ao marido, De repente, o recenseador sente uma cãibra, devido à posição em que se encontra e não tem outra saída senão deixar-se cair no sofá. Devido ao peso, o assento afunda e ele tem a impressão de estar sendo tragado. Fica numa posição vexatória, meio absorvido pelo sofá. Mesmo assim, tenta completar as perguntas do questionário.
Sucedem-se perguntas sobre as condições financeiras, a religiosidade e o nível de instrução do recenseado. Concluído o preenchimento do questionário, o recenseador se dá conta de que afundou de tal maneira no sofá que será necessário fazer um grande esforço para se levantar. Como não há braços laterais para apoio, ele se vê em apuros. Não pode pedir aos donos da casa que o icem da armadilha sem causar-lhes embaraço. Aflige-se; precisa raciocinar rapidamente. Enquanto o homem afasta-se para assinar o questionário numa mesa, ele olha para a mulher e tem uma ideia:
– Aceitaria aquele cafezinho agora, senhora – pede, fingindo-se à vontade.
Livre dos olhares dos dois, encontra uma maneira de levantar-se.
Ao terminar seu trabalho, o recenseador parte com mais um questionário preenchido. A família Silva torna-se um dado estatístico, válido por dez anos.

II
Dez anos mais tarde, outro recenseador bate palmas em frente a um barraco precariamente construído de isopor e papelão. Mora nele apenas Iolanda Silva. As investigações censitárias mudaram.  O questionário reduziu-se à metade do que era. Tornou-se mais objetivo, mais estatístico.
O barraco não tem porta; está sempre aberta aos visitantes. O sorriso sem dentes de Iolanda Silva também é aberto e hospitaleiro. Ela diz que se lembra da visita do recenseador, há dez anos, quando o marido ainda não a abandonara, os filhos eram pequenos e estavam em sua companhia. Começa a contar todas as desventuras de sua vida ao recenseador. A ele, todavia, só interessam dados que respondam às perguntas do questionário.
– Quantos cômodos sua casa possui? A senhora possui televisão? Quantas televisões possui? – indaga apressado, pensando no tempo que a mulher o fez perder, contando seus problemas. Quantas outras entrevistas poderia fazer, quanta comissão por questionário preenchido poderia ganhar?
O barraco tem um buraco na cobertura e olhando para cima dá para ver o céu. “O céu é minha televisão” – pensa Iolanda.
O recenseador prossegue a entrevista:
– Possui carro? Quantos carros possui? Possui aparelho de ar condicionado?
– O clima aqui é muito fresco – ela comenta pacientemente, sem se mostrar ultrajada.
– Prefere morar em apartamento ou casa? – ele continua.
Na saída, ela pede desculpas:
– O senhor não fique aborrecido. Eu não tenho quase nada mesmo.
– Não se preocupe, ele a tranquiliza, as perguntas são de rotina.  

III
Passados mais dez anos, os processos censitários sofrem uma revolução. Não há mais recenseadores nem questionários. O censo é feito através de computadores móveis que percorrem a cidade recenseando os habitantes através de suas impressões digitais. Ao invés do som de palmas, os recenseados são chamados por um agudo som eletrônico. É com esse som que Iolanda Silva desperta numa madrugada fria, embaixo da ponte onde busca abrigo toda noite. De dentro da máquina uma voz mecânica ordena:
– “Coloque sua mão no visor magnético”
Iolanda estica os dedos compridos e sujos e toca o visor. O som da voz mecânica novamente quebra o silêncio da madrugada:
– Ao ouvir o sinal eletrônico, o seu recenseamento foi efetuado. Obrigado pela colaboração.
Iolanda vira-se de lado, indiferente, encolhe o corpo e retesa os músculos para se defender do frio. O seu coração reduz o ritmo dos batimentos. Bate devagar. Bate lentamente. Pára.
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Do livro “O mestre e o discípulo e outras histórias    

 

  

  

 

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