Lucilene Gomes Lima
Em Manaus: amor e memória (2004), Thiago de Mello testemunha que os objetos naturais e os objetos e ritos culturais criados por nós, seres humanos, constituem um ritmo próprio na incipiente vida urbana do município de Manaus na primeira metade do século XX. Em sua lembrança afetiva da capital do Amazonas, o poeta relata que conversas se iniciavam em todas as ruas tão logo anoitecia. As frentes das casas, as calçadas recebiam cadeiras de embalo e os habitantes contavam histórias, falavam da vida cotidiana na década de 1930. Outro hábito comum à época eram as sestas diurnas, que ocorriam quando os trabalhadores chegavam às casas para o almoço. Depois de dormir aproximadamente quinze minutos ou meia hora, voltava-se ao trabalho. A sesta não era exclusividade da população local, os trabalhadores estrangeiros também adotavam o hábito. A soneca tinha momento, mas não tinha lugar, podia-se deitar na relva, recostar-se nos troncos das árvores. Diferentemente do que ocorre hoje em dia, em que a vida urbana eliminou a razoabilidade dos hábitos, usava-se chapéu para se proteger do sol e roupa branca para atrair menos calor. A sociabilidade urbana era também muito diferente ou, talvez, deva-se dizer, ela existia. Os vizinhos se conheciam, as casas não eram tão fechadas nem precisavam de grades. Thiago conclui que “[...] o forte da cidade não era a criminalidade, mas a cordialidade” (2004, p. 52). A morte era um espanto porque não era rotineira.
Na Manaus evocada pela lembrança do poeta, os sons
urbanos (do apito das fábricas e dos barcos, das serrarias, da usina de luz,
das badaladas dos sinos das igrejas, do pregão e dos instrumentos improvisados
que usavam os mascates para vender especiarias e de tudo um pouco – linhas,
agulhas, botões, morins, chita, brilhantinas, pó de arroz) marcavam as horas do
dia e ligavam-se à vida pacata e rotineira, gravando-se na memória, revelando
um modo de viver, ser, existir.
Assim como os sons, os cheiros evocam lembranças: o
odor da defumação do látex, das madeiras cortadas nas serrarias, exalando aroma
de pau rosa, preciosa, cedro: “[...] o cheiro delas ficava nas serragens e não
era sempre o mesmo. Era um com o sol, era outro depois da chuva [...]” (2004,
p. 82). Os cheiros dos alimentos também constroem a memória. O aroma dos
mingais, tomados no mercado Adolpho Lisboa aos sábados e domingos, e das
especiarias que os temperavam, o cheiro da tartaruga e da pimenta murupi que acompanhava
o guizado e o sarapatel do quelônio, os odores e sabores do cupuaçu, da
sapotilha, do jatobá e o cheiro das mariranas que costumava exalar quando as
árvores se carregavam de frutos. O cheiro da moagem e da torrefação do café no
moinho da cidade. O poeta lembra que o cheiro dos produtos importados vendidos
em algumas casas da cidade, tais como camarões, bacalhau, figos, maçãs faziam a
felicidade dos que podiam ao menos aspirá-los, uma vez que nem todos podiam
comprá-los. Thiago também não se permite deixar de louvar a arquitetura
cabocla, a qual denomina “sobradinhos de madeira”, autênticos e condizentes com
o espaço, construídos com matéria prima e criatividade local, ao contrário dos
casarões e sobradões de inspiração europeia, construídos à época do ciclo da
borracha, geralmente com material importado (pedras, mármores, telhas,
vidraças, azulejos, gradis).
A importância da relação entre sujeito e objeto para a
memória humana é ressaltada por Ecléa Bosi: “O relógio da família, a medalha do
esportista, a máscara do etnólogo, o mapa-mundi do viajante. Cada um desses
objetos representa uma experiência vivida. Penetrar na casa em que estão é
conhecer as aventuras afetivas de seus moradores” (Memória e sociedade:
lembrança de velhos, 1994, p. 441). Quando objetos e espaços físicos são
destruídos, com os escombros também se enterra a memória. Os sujeitos se sentem
descartados juntamente com os objetos, os lugares que são partes de suas
vivências e de sua história. Diz ainda
Ecléa: “[...] o desenraizamento é uma condição desagregadora da memória: sua
causa é o predomínio das relações de dinheiro sobre outros vínculos sociais
[...]” (1994, p. 443). Os objetos biográficos que criam a sensação de
enraizamento tornam-se objetos de consumo. Ecléa vislumbra um “mapa afetivo,
sonoro” nas lembranças dos sujeitos testemunhas que entrevista. Identifica uma
memória sensorial que marca o humano: “A substituição do trem e do bonde pelo
ônibus mudou a paisagem sonora para os ouvidos de d. Risoleta: ‘O trem de Santo
Amaro entrava numa mata virgem e ia: Tendendém, tendendém! Dentro da mata...
Depois foram tirando tudo, tiraram o bonde e puseram ônibus, se vê como é que
está’ ” (1994, p. 445).
Partindo de uma frase expressa no Manifesto comunista, escrito por Marx e Engels, Marshall Berman
desenvolve o argumento de seu livro, publicado em 1983, “Tudo que é sólido
desmancha no ar: a aventura da modernidade”.
O autor denomina o Manifesto como arquétipo de um século inteiro
de manifestos e movimentos modernistas que se sucederiam. Para Berman, o Manifesto
“[...] pode esclarecer especificamente a relação entre a cultura modernista e a
cultura e a sociedades burguesas [...]” (1986, p. 89). O autor destaca que a
classe burguesa toma para si a tarefa de mudar o mundo. Os membros da burguesia
capitalista “[...]fariam o mundo em frangalhos se isso pagasse bem. Assim como
assustam a todos com fantasias a respeito da voracidade e desejo de vingança do
proletariado, eles próprios, através de seus inesgotáveis empreendimentos,
deslocam massas humanas, bens materiais e dinheiro para cima e para baixo pela
Terra e corroem e explodem o fundamento da vida de todos em seu caminho [...]”
(1986, p. 98). Berman também destaca que a burguesia é a classe dominante mais
violentamente destruidora de toda a história.
Aponta, segundo a análise de Marx no Manifesto, que na cultura
moderna assim como na economia burguesa convivem revolução permanente,
desenvolvimento infinito, perpétua criação e renovação em todas as esferas da
vida e sua antítese: destruição insaciável, estilhaçamento, destruição da vida
(1986, p. 100).
A modernidade, conforme analisa Berman, baseado nas
transformações culturais, na percepção de escritores e artistas, traz a ideia
do novo como valor premente. Não somente prédios, ruas são postos abaixo. Uma
febre de mudança transforma tudo em obsoleto. Quaisquer objetos podem decretar
a inutilidade daqueles que os antecederam. A onda avassaladora da inovação é,
muitas vezes, apenas para a proclamação do novo. Essa veneração pela novidade é
captada por Ecléa Bosi, quando afirma [...] os objetos protocolares são os
objetos que a moda valoriza, não se enraízam nos interiores, têm garantias por
um ano, não envelhecem com o dono, mas se deterioram [...]” (1994, p. 441). Os
grandes monumentos construídos pela classe burguesa, celebrados efusivamente
nos movimentos vanguardistas e por artistas no século XX, os enormes portos e
pontes, infindáveis bulevares, os arranha-céus são espetáculos de grandiosidade
para os olhos. Como lembra Berman, são desmantelados pelas próprias forças que
os celebram (1996, p. 98). São sólidos que, a vista de um novo empreendimento,
podem se desmanchar no ar. O autor ilustra que a mudança na estrutura urbana,
no século XIX, modifica os seres humanos em seus hábitos e modos de agir e
perceber o mundo: “O homem, na rua moderna, lançado nesse turbilhão, se vê
remetido aos seus próprios recursos – freqüentemente recursos que ignorava
possuir – e forçado a explorá-los de maneira desesperada, a fim de sobreviver.
Para atravessar o caos, ele precisa estar
em sintonia, precisa adaptar-se aos movimentos do caos, precisa aprender
não apenas a pôr-se a salvo dele, mas a estar sempre um passo adiante. Precisa
desenvolver sua habilidade em matéria de sobressaltos e movimentos bruscos, em
viradas e guinadas súbitas, abruptas e irregulares – e não apenas com as pernas
e o corpo, mas também com a mente e a sensibilidade.” (1986, p. 154).
Tudo o que é feito pelos seres humanos tem mudado a
vida no planeta a cada século, a cada década. Assim como os bulevares mudaram o
tráfego e arrastaram em sua poeira uma série de tradições, impondo outro modo
de vida, as coisas têm mudado sensivelmente o modo de viver e a nós mesmos.
Mudamos a natureza, criamos novos objetos e esses novos objetos criaram novos
seres humanos. Pela primeira vez na história, as coisas que nos servem e das
quais nos servimos perdem sua materialidade. A era moderna trouxe a urgência de
destruir ou fragilizar para reconstruir, mas no século XXI importa menos
reconstruir do que reduzir a própria materialidade das coisas. Num determinado
período de nossa história recente, em que as coisas eram reconhecidas por sua
solidez, a percepção das pessoas era contrária a de agora, fornecida pelos
meios eletrônicos digitais. Na primeira projeção cinematográfica, o público não
percebeu a diferença entre a realidade expressa por imagens em uma tela e a
realidade objetiva, por isso, os espectadores assustaram-se ao ver um trem
direcionar-se a sua frente, como se pudesse transpor o objeto de projeção e
atingi-los.
Vivemos numa era que caminha cada vez mais para uma
superestrutura englobante. O advento da internet funde entretenimento,
conhecimento, informação e comércio numa só rede. Quando ocorre tal consórcio,
rompem-se as fronteiras espaciais e temporais. O leitor que ia a uma biblioteca
encontrava-se num espaço cercado somente de livros, o silêncio era a condição
para se estar e permanecer num salão de leitura, enquanto para navegar em
aplicativos não se tem qualquer pré-condição que não seja um aparelho conectado,
o qual pode ser usado em qualquer lugar e a qualquer hora, inclusive no
barulhento espaço urbano. A navegação na rede também inclui a mensagem
publicitária intrusiva, ausente no espaço das bibliotecas e no conteúdo dos
livros. Em nenhum outro momento da história uma fonte difusora possui tantos
produtos e serviços acoplados. Um único aparelho, o telefone celular, comporta
em seus aplicativos de dados tv, rádio, cinema relógio, calculadora,
calendário, espelho, telefone, telex, fax, revistas, livros, jornais, câmeras
fotográficas e filmadoras, bancos para operações financeiras, dinheiro para
compra de produtos e pagamentos de serviços, música, relações sociais e culturais virtuais, uma infinidade
de coisas antes palpáveis e, de certa forma, controláveis, agora ao alcance
apenas num toque de tela.
O telefone celular passou a ser, mais que um objeto
utilitário, um objeto protocolar, valorizado pela moda, pela neurose do novo.
Apesar de divinizado pela gama de possibilidades que oferece, o aparelho é
constantemente descartado e reposto para acompanhar o avanço tecnológico,
diferentemente dos objetos biográficos que envelhecem com os donos, conforme
observa Ecléa Bosi: “Só o objeto biográfico permanece com o usuário e é
insubstituível” (1994, p. 441). Os “objetos desmaterializados”, em oposição aos
objetos biográficos, apenas nos servem, sem fazer parte de nossa vivência.
Podemos trocar digitalmente milhares de mensagens, sem que elas sejam mais do
que “curtidas”, consumo de comunicação. As mensagens, como também a própria
relação na rede digital, são de hospedagem.
Várias relações sociais, tanto quanto objetos
tornaram-se efêmeros na era digital. Nada é para reter ou guardar, mas usufruir
e descartar. As fotos digitais em meios eletrônicos não representam a
experiência vivida, como as fotos físicas de álbuns igualmente físicos,
lembranças de momentos especiais, comemorações, viagens. A foto captada hoje
imediatamente é descartada devido à quantidade e à banalidade. Em lugar da
experiência, passa a valer o simultaneísmo do compartilhamento e a privacidade
anula-se no click, no zoom. A era digital cunhou a expressão selfie,
que não é propriamente uma fotografia, mas um espelho. A mudança em relação à
fotografia convencional é que passamos a ser imagem e espectadores de nós
mesmos, ou seja: vemo-nos no ato de nos fotografar. A visão especular também
ocorre na transmissão de vídeo ao vivo. Numa conversa on line, vemos o
outro, o outro nos vê e cada um vê a si próprio, é, portanto, uma transmissão
em espelho. Há uma mudança profunda na relação sujeito-objeto, que vai deixando
de ser tangível, quanto na relação sujeito-sujeito que se virtualiza.
Gerações crescidas com telas já não se satisfazem com
materialidade. Nos museus, a importância física dos objetos expostos é menor
para essas gerações que preferem as exibições holográficas, os pixels
que se projetam e se movimentam nas paredes intermitentemente, obliterando as
sensações prolongadas, duradouras e contemplativas.
Ecléa Bosi narra que a memória se apoia em coisas
sólidas, como a calçada efetivamente pisada, onde outros também imprimiram seus
passos, sua presença e vivência. Essa noção de que a memória é constituída
pelas sensações que obtemos da concretude das coisas é a mesma de Thiago de
Melo ao lamentar o desaparecimento da praça da estação dos bondes em Manaus,
juntamente com os objetos que a compunham – calçamento de pedras, plantas,
árvores. Para o poeta, a presença material condiciona a memória: “Minha memória
trabalha com a matéria de um tempo que o próprio tempo comeu. Como é que era
esse tempo?” (2004, p. 4). Sem a solidez das coisas, a memória passa a contar
apenas com a capacidade cognitiva de lembrar.
Com o avanço tecnológico, o mundo vai se enchendo de
objetos sem funcionamento tanto porque dependem de peças de manutenção que não
mais se fabricam quanto porque sua forma de difusão ou transmissão se torna
obsoleta. Os dados em nuvens dos servidores de internet podem ser armazenados
fora de computadores e celulares, o que torna esses objetos também equipamentos
vazios. Os dados em nuvem significam uma rede global de servidores conectados.
Enquanto todas as informações na rede se alojam nas nuvens, tornando
desnecessários os registros físicos e as memórias em discos rígidos de
equipamentos, o sistema de datacenter onde os dados são armazenados,
depende de condições físicas determinadas para existir, como um espaço
geográfico com temperatura amena, e um sistema de energia permanente.
A perda da materialidade significa mais que um avanço
sem precedentes para a humanidade. Pode significar que, se as coisas não estão
mais sob o controle de nossas mãos, perdemos o controle sobre nós mesmos e
nossas vidas. Os arquivos colocados na nuvem só podem ser acessados através da
rede, deixam de ocupar espaço num aparelho físico que, aparentemente, nos
pertence, livrando a memória desse dispositivo e a memória humana de seu
sentido de concretude.