segunda-feira, 30 de outubro de 2023

POUCAS E MAL TRAÇADAS LINHAS

                                                                                                   Lucilene Gomes Lima



                                              Humarintituba, 20 de maio de ...

 

Meu único e inesquecível amor:

Quando esta carta chegar as tuas mãos, tudo já estará terminado. Se tu pudesses ver o meu estado ao escrevê-la, ficarias com o coração despedaçado e sentirias remorsos por teres me dito aquele adeus. Queria que, ao pegares esse papel, molhasses tuas mãos com as lágrimas que estou derramando por ti. Perdoa-me, meu amado, mas queria que o meu próprio sangue molhasse toda essa carta para que tu pudesses sentir o meu sofrimento.

Fica sabendo que toda a alegria da minha vida se vai com esse amor desenganado. Sonhei a minha vida inteira encontrar um príncipe encantado e esse sonho se realizou. Tu eras meu príncipe. Eras mais que isso, eras o meu rei. O meu amor por ti foi como a beleza do arco-íris, coloriu meu coração até tu partires. Esse pensamento é meu mesmo. Acho que o amor inspira a gente.

Eu não sei escrever muitas palavras bonitas, por isso escolhi uns versos que abaixo te dedico:

 

Oh! Ninguém sabe como a dor é funda,

Quanto pranto s’engole e quanta angústia

A alma nos desfaz!

Horas há em que a voz quase blasfema...

E o suicídio nos acena ao longe

Nas longas saturnais! *

*Versos do poema Dores, do poeta Casimiro de Abreu (1839-1850)


Escolhi esses versos porque falam coisas que estou sentindo e por causa das palavras blasfema e saturnais que achei bonitas.

Jamais esquecerei os momentos felizes que passamos juntos. Esses momentos nunca mais se repetirão? Que bobagem estou dizendo! Tu terás muitos momentos felizes junto da tua nova amada e nem mesmo te lembrarás de que fomos felizes um dia! Será que ela te fará tão feliz quanto eu te fiz? Não, ninguém te amará como eu te amei. Ninguém entregará a vida a um amor como eu a entreguei. Lembras quando ficavas doente? Nem mesmo tua mãe te dedicava tanta atenção! E os teus problemas? No ombro de quem vinhas chorar?

Sabes, eu me acabei por esse amor. Deixei de me divertir, gastei os melhores anos de minha vida e até envelheci. Todos diziam que um noivado longo só poderia acabar em casamento e eu acreditava nisso com devoção. Passei privações economizando dinheiro para te ajudar a construir nosso lar e agora estou sendo recompensada com essa ingratidão da tua parte. 

Apesar de tudo, se me pedisses perdão e quisesses recomeçar, eu aceitaria. Estás vendo a que ponto chegou o meu amor? Eu estou me humilhando, mesmo sabendo que não queres voltar, que realmente me trocastes por outra. Ela é mais bonita, não é? Eu também fui bonita um dia! Lembras como eu era? Mas agora estou um trapo, uma mulher abandonada e traída pelo homem que ela sempre amou.

Eu não quero que sintas pena de mim, nem que tenhas remorsos. A minha vida acabou. Eu sou uma mulher sem futuro. Tudo eu fiz por um amor cruel que me retribuiu com uma ilusão, uma amargura e que tornou a minha vida sem sentido. Não vejo mais graça em nada, desaprendi a sorrir. Acabou tudo! Só me resta desaparecer da face da terra!

 

                                                                                 Do teu perdido amor

                                                                                 Adeus.

 

A carta foi colocada num envelope e ela o lacrou com a saliva, deixando depois sobre uma mesinha no seu quarto. Em seguida, dirigiu-se como uma autômata até a cozinha, abriu uma gaveta e retirou uma faca.

A faca foi usada para cortar um bolo que ela passou a comer avidamente. Era a segunda vez na semana que quebrava o regime.

 

 

 

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 Conto publicado originalmente no livro O mestre e o discípulo (2000)



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