quinta-feira, 7 de setembro de 2023

O CANTO DE CÁ E O CANTO DE LÁ: SERTÃO E CIDADE NA POESIA DE PATATIVA DO ASSARÉ

 

                                                                                                          Lucilene Gomes Lima

 

Fazer análise literária da obra de Patativa do Assaré é partir de um caminho oposto ao que tem sido trilhado pela historiografia e crítica literária brasileiras. O que se concebe como poeta, poesia, literatura nesse meio canônico diz respeito a conceitos atrelados a uma cultura hegemônica que traça fronteiras incomunicáveis entre o popular  e o erudito. Nas palavras de Muniz Sodré: a literatura dita popular, popularesca ou ainda de massa é sistematicamente excluída do discurso consagrador das instituições que mantêm a salvaguarda da cultura erudita” (1978, p. 15). Por esse motivo, essa análise não pode fazer uso naturalmente de todos os termos  usuais no campo do discurso literário sem pontuar que esses mesmos termos são negados em relação ao autor de cordel. Demais, o próprio ato de analisar também é inscrever no discurso erudito, cujo pressuposto para análise é um valor que se vincula à tradição literária hegemônica. 

É um truísmo, mas não custa lembrar, que o cordel não é posto entre a chamada grande literatura. Não é nem mesmo digno de receber a acepção de literatura, oscilando entre as denominações de subliteratura ou paraliteratura. Da literatura erudita e de sua escrita crítica, o cordel é excluído, não havendo, via de regra, referência nos manuais, dicionários, compêndios ou antologias literárias.

A negação do valor da poesia de cordel que a literatura canônica pratica é assumida pelo poeta cordelista. No poema de abertura, intitulado “Aos poetas clássicos” da antologia Cante cá que eu canto lá: filosofia de um trovador nordestino (1992), Patativa do Assaré dirige-se aos poetas da tradição erudita da seguinte forma:

 

Poetas niversitaro,

Poetas de Cademia,

De rico vocabularo

Cheio de mitologia;

Se a gente canta o que pensa,

Eu quero pedir licença    

Pois mesmo sem português

Neste livrinho apresento

O prazê e o sofrimento

De um poeta camponês (p. 17). 

O que se nota, em primeiro lugar, é que o poeta julga superiores os poetas provindos da academia, da universidade, pois o “rico vocabularo”, para ele, inscreve-se numa linguagem escolar culta. Supõe, portanto, que a instrução é inerente ao poeta culto, sua condição de poeta sendo um sucedâneo dessa formação. O poeta cordelista também se julga sem português, o que reforça a dicotomia poeta inculto/poeta culto através do domínio da gramática padrão. Por não dominar as regras dessa gramática, o poeta julga-se desprovido de uma língua e “sem português”. Estando, assim, desprovido, sente necessidade de pedir licença ao poeta culto para cantar o que pensa, o que, para ele, é uma condição de seu ser de poeta camponês. Nas demais estrofes do poema, o poeta justifica sua origem e patenteia que sua condição de trabalhador o pôs à margem do caminho do saber escolarizado:

Eu nasci aqui no mato,

Vivi sempre a trabaiá,

Neste meu pobre recato,

Eu não pude estudá,

No verdô de minha idade,

                              Só tive a felicidade

                              De dá um pequeno insaio

                              In dois livro do iscritô,

                              O famoso professô

                              Filisberto de Carvaio (p. 17) 

O poeta segue descrevendo a emoção do contato com as primeiras letras e enfatiza que a leitura incipiente o tirou da “treva escura”. Mas o contato com as letras e a inserção no mundo do saber do poeta clássico não modifica o intento do poeta camponês: “[...] Na minha pobre linguage, / A minha lira servage/ Canto o que minha arma sente/ E o meu coração incerra,/ As coisa de minha terra / E a vida de minha gente” (1992, p. 18).

Nesse poema, Patativa do Assaré estabelece sua opção por fazer poesia rimada, que é, para ele, recurso essencial sem o qual a poesia perde a essência e se torna tão sem sentido quanto o “[...] corpo sem alma / E o coração sem amô” (p. 19). Apesar de partir da superioridade do poeta clássico, letrado, o poeta camponês demarca a condição de existência de ambos como uma só, sendo essa condição uma verdade inexorável ante qualquer outra diferença, transformando-se também no ponto chave da autoestima do poeta camponês: 

Dêste jeito Deus me quis

E assim eu me sinto bem;

Me considero feliz

Sem nunca invejá quem tem

Profundo conhecimento.

Ou ligêro como o vento

Ou divagá como a lesma

Tudo sofre a mesma prova,

Vai batê na fria cova;

Esta vida é sempre a mesma (p. 19-20). 

Outros poemas de Patativa apresentam o mesmo diálogo entre saber culto e saber popular. Em “O poeta da roça”, ele canta: “Meu verso rastêro, singelo e sem graça,/ Não entra na praça, no rico salão, / Meu verso só entra no campo e na roça/ Nas pobre paioça, da serra ao sertão” (p. 20). Em “Eu e o sertão”, o sertão é elevado à categoria de um ser, personifica o “cabôco”, que nele vive, e o poeta dialoga, assumindo a ignorância como um saber:

 

                                  Tu veve munto esquecido

Dos meio de inducação,

Sempre, sempre tem vivido,

Sem escola e sem lição.

Teu mundo é bem pequenino,

Por isso do teu destino,

Da tua simplicidade

Nasce a fé e a esperança;

Tua santa inguinorança

Incerra munta verdade (p. 22-3). 

Nesses versos, é sugerido o que no poema “Cante lá, que eu canto cá” será o mote principal: a natureza como fonte de onde emana o saber e, principalmente, a inspiração do poeta. Essa é uma importante diferenciação entre o poeta camponês e o poeta culto, o primeiro representando o cá (sertão) e o segundo o lá (a cidade):

                                  Você teve inducação,

Aprendeu munta ciença,

Mas das coisa do sertão

Não tem boa esperiença.

Nunca fez uma paioça

Nunca trabaiou na roça,

Não pode conhecê bem,

Pois nesta penosa vida,

Só quem provou da comida

Sabe o gosto que ela tem (p. 25-6).

Os dois extremos que marcam a poesia de Patativa, o sertão e a cidade, são mais do que espaços geográficos, lugares, de onde se enunciam saberes diferentes. Um jogo de oposições é reiterado constantemente em sua poesia. Se a cidade é o lugar onde a “Ciença guverna”, onde há “boa inducação”, “sabença”, progresso, o sertão é o lugar onde não há estudo, nem arte, onde há “misera” e sofrimento. Aparecem, todavia, outros pares de oposição em que a cidade não é um lugar privilegiado em relação ao sertão porque seu mundo de riqueza, vaidade, grandeza não pode ser trocado pela pureza e naturalidade do mundo do sertão. Mesmo sendo o lugar onde o saber governa, a cidade é vista realisticamente em poemas como “A triste partida”, “Emigrante nordestino no sul do país”, ambos singulares ao apontar a exploração e o aviltamento do migrante nordestino em busca de sobrevivência na cidade grande. Também em “Brasi de cima e Brasi de baxo” o poeta revela que a cidade tem uma dupla face, de riqueza e de miséria.

A poesia de Patativa frequentemente é um canto ufanista da natureza e do homem do sertão. A natureza é pura, harmoniosa, inspira o poeta. O homem é decantado como forte, corajoso e trabalhador. Mas o conteúdo de poemas como “É coisa do meu sertão” demonstra que o poeta não desconhece que o seu canto deve buscar equilíbrio:

Eu sei que dizendo assim,

Eu não tou falando à toa,

Meu sertão tem coisa boa

E também tem coisa ruim;

Umas que fede a cupim

Ôtras que chera a melão.

De tudo eu sei a feição

Pois conheço uma por uma

Vou aqui dizê arguma

Das coisa do meu sertão (p. 70).

O poeta muitas vezes declara seu pouco estudo, mas se orgulha de ter podido dar “[...] um pequeno insaio/In dois livro do iscritô, /O famoso professô/Filisberto de Carvaio (p. 17). Aponta a falta de instrução como um dos problemas que marcam o sertão: “Esta gleba hospitaleira,/ [...] Onde a fada feiticeira/Depositou seu condão,/É também um grande abismo/Do triste analfabetismo, /Por falta de proteção (p. 236).

A poesia de Patativa não apresenta um rico “vocabularo”, como ele mesmo observa em “Aos poetas clássicos”. Por conseguinte, surge uma pergunta: Seria conveniente que ela o apresentasse se o próprio poeta se denomina poeta da mão calosa, da mão grossa, cantor selvagem, poeta matuto? Algumas dessas qualificações são depreciativas, mas o poeta da mão calosa ou da mão grossa, traduz originalmente um poeta que se assume como um homem trabalhador, sofredor, do sertão. E quando chama sua poesia de rasa, ele talvez não vislumbre o fundamental de sua simplicidade.

O modo como o poeta escreve, reproduzindo a oralidade, é uma opção de fazer seus versos representarem a voz sertaneja sem instrução de que se faz porta-voz. O poeta sabe expressar-se de acordo com a norma padrão da língua, conforme atestam várias de suas composições  poéticas, entre elas, sonetos. Alguns desses sonetos se igualam aos produzidos por canônicos poetas brasileiros. É o caso de “Amanhã”:

Amanhã, ilusão doce e fagueira,

Linda rosa molhada pelo orvalho:

Amanhã, findarei o meu trabalho,

Amanhã, muito cedo irei à feira.

 

Desta forma, na vida passageira,

Como aquele que vive do baralho,

Um espera a melhora no agasalho

E outro, a cura feliz de uma cegueira.

 

Com o belo amanhã que ilude a gente,

Cada qual anda alegre e sorridente,

Como quem vai atrás de um talismã.

 

Com o peito repleto de esperança,

Porém, nunca nós temos a lembrança

De que a morte também chega amanhã (p. 181).

Mas, é preciso lembrar, não é necessário que Patativa se iguale aos poetas clássicos para que seja reconhecido o valor de sua obra. O mais original Patativa é o poeta da mão grossa que mantém seu canto “cá”, que mesmo sem a “gramata” corrigir faz poesia significativa. Falando “Como pobre sertanejo, / sem estudo e sem perparo” (p. 257), o poeta imprime a musicalidade ao verso que foi feito para ser cantado. Não apenas a rima dá cadência aos versos, também a própria forma estropiada, segundo a norma gramatical, o linguajar peculiar do sertanejo.

O poeta participa do engenho que supõe pertencer só ao poeta clássico, criando imagens em afinação com o seu mundo: “a gente tem impressão/ Que o mundo é um cemitério” (p. 310). Imagem semelhante é criada por João Cabral de Melo Neto, em “Congresso no polígono das secas”: o sertão tórrido se transforma em “cemitérios gerais” que produzem seus próprios mortos e são mais completos do que os outros cemitérios (1969, p. 79-88). Outras imagens compõem a poesia de Patativa. No poema “Cante lá, que canto cá ”, elas formam uma alegoria:

Canto as fulô e os abróio

Com todas coisa daqui:

Pra toda parte que eu óio

Vejo um verso se bulí.

Se as vêz andando no vale

Atrás de curá meus male

Quero repará pra serra,

Assim que eu óio pra cima,

Vejo um diluve de rima

Caindo inriba da terra.

 

Mas tudo é rima rastêra

De fruita de jatobá,

De fôia de gamelêra

E fulo de trapiá,

De canto de passarinho

E de poêra do caminho,

Quando a ventania vem,

Pois você já tá ciente:

Nossa vida é derefente

E nosso verso também (p. 28). 

Outra série de imagens também cria uma alegoria em “Filosofia de um trovador sertanejo”: “[...] O mundo é uma cadeia/ Que de preso veve cheia,/ ninguém me diga que não,/ A morte é seu sentinela,/ E é quem arranca as tramela/ Das porta desta prisão (p. 183). A metáfora criada por Patativa tem às vezes um aspecto globalizante como no poema “Ingratidão”, no qual João, um trabalhador explorado desde criança,  converte-se no emblema de todos os Joões do mundo, padecendo vida amarga (p. 190-195). As metáforas são menos frequentes em sua poesia, predominando , sobretudo, o símile: a poesia sem rima que é “como o corpo sem arma/E coração sem amô” (p. 19) ou como “fulô sem perfume”, parecendo “uma noite iscura/Sem estrela e lua (p. 18-19). As imagens que possibilitam associação com os sentidos são originais: “O meu verso tem o chêro/ Da poêra do sertão (p. 19); “E a brisa assopra manêra/Fazendo cosca na mata” (p. 22).

Na produção extensa de Patativa, alguns poemas se sobressaem pela elaboração e pelo nível de significação que conseguem atingir. Entre esses poemas, estão “A triste partida”, “O inferno, o Purgatório e o Paraíso”, “Ingém de Ferro”, “Conversa de matuto”, “Emigrante nordestino no sul do país”.

“A triste partida”, tal qual o romance “Vidas secas, de Graciliano Ramos, é a  trajetória de desventura de uma família nordestina apanhada pela “seca terrive, que tudo devora” (p. 90). A escolha gradativa dos motivos que compõem o poema, inicialmente através do passar dos meses que se sucedem sem perspectiva de chuva e, depois, através da esperança temerária depositada na migração, atesta a percepção aguda do poeta. Crença, descrença, esperança, desilusão, telurismo, psicologia humana, desigualdade social, o essencial de uma situação particular e universal, porque humana, se agregam nesse poema. As desventuras da migração nordestina que se iniciam no final desse poema continuam a serem contadas no poema “Emigrante nordestino no sul do país” (p. 324-333). O poeta tece detalhadamente como se produz a miséria e a marginalização do migrante nordestino no meio adverso da cidade grande.

O poema “O Inferno, o purgatório e o paraíso” é o aproveitamento de três índices religiosos para representar a divisão de classes, respectivamente, a classe baixa, a classe média, e a classe alta. Á classe baixa ou pobre, como denomina o poeta, é dedicado o maior número de versos. O poeta glosa as carências desse inferno “onde vive sofrendo a classe pobre/sem confortos, sem pão, sem lar, sem cobre” (p. 44). Mas muda de foco logo que se faz necessário apontar o relacionamento dialético entre as classes:

Veja bem, meu leitor, que quadro triste,

Este inferno que temos nesta vida,

O sofrimento atroz dele consiste

Em viver sem apoio e sem guarida.

                                  Minha lira sensível não resiste

Descrever tanta coisa dolorida

Com as rimas do mesmo repertório,

                                  Quero um pouco falar do Purgatório (p. 45) 

A visão do purgatório como lugar de purificação das almas antes de sua entrada no Paraíso é tratada realisticamente pelo poeta através da crítica da aparência vivida pela classe média:

Purgatório infeliz do desgraçado,

Que trabalha e faz tudo o que é preciso

No comércio, lutando com cuidado,

Com desejo de entrar no Paraíso,

Porém, quando termina derrotado,

Fracassado, com grande prejuízo,

Desespera, enlouquece, perde a bola

E no ouvido dispara uma pistola.

 

Ali vemos um gesto alegre e lindo

Disfarçando uma dor, uma aflição,

Afirmando gozar prazer infindo

De esperança, de sonho e de ilusão.

Mas, enquanto estes lábios vão sorrindo,

Vai chorando no peito, o coração

É um mundo repleto de amarguras,

Com bastante aparência de venturas (p. 46). 

Já se destacou que a poesia de cordel pode apresentar aspecto circunstancial ou de ocasião. Walmir Albuquerque observa que o “gênero cordel” requer alguns ingredientes: “[...] ser fato do momento, repercutir junto “a opinião pública, ser uma luta do fraco contra o forte” (1996, p. 25). A poesia de Patativa não foge à circunstância, entretanto um poema como “Ingém de ferro” ultrapassa o dado meramente circunstancial quando o poeta canta a transformação que ocorre com a substituição do engenho de ferro, demonstrando que o progresso, sedimentado na razão do capital, muda o ritmo da vida comunitária:   

Ingém de ferro, você

Com seu amigo motô

Sabe bem desenvorvê,

É munto trabaiadô,

Arguém já me disse até

E afirmô que você é

Progressista em alto grau;

Tem força e tem energia,

Mas não tem a poesia

Que tem um ingém de pau.

...........................................................................................................

Mode esta suberba sua

Ningém vê mais nas muage,

Nas bela noite de lua,

Aquela camaradage

De todos trabaiadô,

Um falando em seu amô

O outro dizendo uma rima,

Na mais doce brincadêra,

Deitado na bagacêra,

Tudo de papo pra cima (p. 92-3). 

Segue motivo semelhante o poema “O puxado de roda” cantando a suplantação do tradicional pelo moderno, suplantação que traz no seu bojo a perda das manifestações espontâneas no trabalho.

Sim senhô, sou puxadô.

Naquele tempo passado,

Por todos agricurtô

Da serra eu fui percurado.

Vivia sem aperreio

Sempre pegando no vêio,

Mas o Chico da Ventura;

Nós era vê dois Sansão,

De camisa de argudão

Amarrada na cintura. 

............................................................................................................... 

Gritando e dizendo graça,

Cantando e a jogá potoca,

Eu fazia virá massa

Um putici de mandioca;

Não tinha quem me agüentasse,

Desmancha que trabaiasse

Corria com bom despacho;

Digo sem acanhamento,

Pra roda de aviamento,

Seu moço, eu sou cabra macho!

..................................................................................................

Hoje a serra tá mudada,

Uma desmancha não presta;

De premêro, a farinhada

Pra mim era a mió festa,

Mas perdi todo o prazê

Quando vi aparecê

Esta horrive novidade

Fazendo um doido baruio,

Cheio de impero e de orgúio,

Fedendo à civilidade.


Era boa a vida minha,

E o tempo não era mau,

Quando a casa de farinha

Só tinha roda de Pau.

Quando os galo miudava,

Os trabaiadô já tava

Cantando suas toada,

Mas o diabo da ingresia

Tirou toda poesia

Que havia nas farinhada (p. 341-347). 

“Conversa de matuto” é um poema que também extrapola a circunstância. Se os versos de cordel podem partir de um tema corrente e momentâneo como eleição, o diálogo entre eleitor ingênuo e o eleitor consciente, que está no poema, atravessa uma temporalidade específica e se torna atual em qualquer época na qual haja políticos oportunistas e eleitores mal informados. O diálogo criado no poema não é apenas uma imprecação contra o mau político, é um confronto dialético bem elaborado em que a ingenuidade do eleitor mais que descrita é posta em cena. O confronto presente nesse poema, como em muitos outros, é estilo de Patativa do Assaré. Desde a cidade do poeta de salão ao sertão do poeta do mato, presente em “Aos poetas clássicos”, o diálogo do duplo vai se espraiando por sua poesia no sofrimento causado pela seca  e na alegria trazida pela chuva; na pobreza do agregado e na riqueza do fazendeiro; na tradição do engenho de pau e no progresso do engenho de ferro.

A qualificação de poeta social que Plácido Cidade Nunes dá a Patativa do Assaré é oportuna, considerando-se que as reflexões do poeta constantemente levam a uma crítica da sociedade que o margeia e da sociedade humana.

O poeta que se autodetermina matuto é consciente o bastante para perceber que algumas adversidades que se abatem sobre o nordestino não são naturais, mas causadas pela ação humana. O lastro de fatalismo religioso, que poderia predominar num poeta que em dados momentos se mostra  atrelado aos ícones  da religião cristã, é posto em questão nesses versos de “Caboclo roceiro” : “Tu és nesta vida, um fiel penitente, / Um pobre inocente no banco do réu./ Caboclo, não guardes contigo esta crença,/ A tua sentença não parte do céu (p. 100). O poeta desmistifica, por outro lado, superstições como a que envolve o dia treze e o mês de agosto, cantando que uma circunstância infeliz não se dá necessariamente por causa dessa data: “ Mesmo sofrendo a minha sorte crua, / Não direi que esta culpa é sua, / Calmoso agosto de setenta e três” (p. 206). Diversos poemas de Patativa são ilustrativos de que o poeta também desenvolve reflexões no sentido de criar uma consciência da exploração a que está submetido o sertanejo na estrutura agrária de poder do Nordeste brasileiro. Entre os poemas que realizam melhor essa reflexão estão “Vaca lavandeira”: “Fui vaqueiro, quinze anos, / Nas fazendas do sertão, / Carregado de família, / Coberto de precisão./ Toda sorte que eu tirava/ Ia vendendo ao patrão (p. 221) e “O controlista”:

                          O primeiro grande

                          Que tem lavora crescida,

                          Seu nome se ispande,

                          É coisa bem conhecida.

                          Depois da safra chegá,

                          Mode o argodão carregá

                          Roda tanto caminhão

                          Que os camponês se admira,

                          Pois que de ano em ano ele tira

                          Grande safra de argodão,

 

                           Daquele propietaro

                           Que tanto argodão tirou,

                           O povo faz comentar,

                           Mas não diz quem trabaiô,

                           Não diz que foi o cabôco

                           Que pisa inriba de toco

                           Nas lavora de argodão,

                           Pois os cabôco trabaia,

                           Trabaia que se escangaia,

                           Mas a fama é do patrão.

                            ..................................................................................................................

                           Da vida deste operaro

                            Já faz tempo que eu dei fé,

                            Eu não sou tolo e reparo

                            Vejo as coisa como é.

                            Controlista é um coitado,

                            Trabaia iguá um criado,

                            Veve sempre no aperreio

                            E ninguém dá valô,

                            É como o trabaiadô;

                            Que mora em terreno aleio (p. 268-9)              

Por outro lado, as concepções do poeta não estão sempre contra a correnteza da ideologia dominante, Patativa reproduz essa ideologia quando em alguns poemas revela preconceitos raciais e de gênero. No poema “Mãe preta canta : ‘Foi ela a preta mais preta das pretas que eu vi no mundo./Mas porém sua arma pura,/ Era branca como a orora,/ E tinha a doce ternura da Virge Nossa Senhora.” (p. 95). Em relação à mulher, há várias imagens que transmitem o seu caráter como insidioso, interesseiro, verificáveis em poemas como “Maria Tetê” (p. 30-38); “A escrava do dinheiro” (p. 47-54);”Tudinha” (p. 82-89). O poema “O sonho de Mané Filiciano” engloba o preconceito de gênero e racial, reforçando o estereótipo da mulher bonita como diabólica, frequente nos poema s mencionados, e da mulher negra como feia:

De chifre, isporão e rabo

É seu jeito natura,

Mas com suas manha, o Diabo

Bem pode se transformá

Num mocego, num cassaco

Num guaximim, num macaco,

Num cachorro e num veado

E munta gente aquerdita

Que inté in muié bonita

Ele já tem se virado.

 

Já ôtras vez, o tinhoso

Dêxa de lado a muié

Promode atentá o esposo

E dali nasce o caé;

O safado se apaxona

Dexa a sua própia dona 

por outra muié alêia

Dexa a sua, branca e bela

Pra vivê perto daquela

As vez inté preta e feia (p. 158-9). 

Essa dupla face do discurso poético de Patativa, representada por uma consciência crítica e por uma percepção estreita, pode parecer um desnível em sua obra, mas, como observa Leandro Konder, em relação aos valores das sociedades: “É na linguagem que esses valores expõem suas pretensões à universalidade e suas limitações particulares. É na linguagem que se revelam os movimentos da busca do conhecimento, das aspirações generosas, mas também os movimentos dos medos, dos desejos subterrâneos, dos preconceitos, das ambiguidades” (2002, p. 151). A observação é particularmente interessante, considerando esse poeta que num poema pinta o cangaceiro como o diabo e no outro declara: “Por isso é que eu digo assim:/ ‘- Eu tenho quato menino./ Um pode ser Lampião, /E o ôto, Antônio Silvino, / Pode ôto ser jogadô, / Mas peço a Nosso Senhô,/ À Virge da Conceição, / E a São Bertolameu,/ Pra não ver um fio meu / sendo fiscá de argodão...” (p. 82). O poeta demonstra ter consciência de que o fiscal de algodão, como escroque, é o verdadeiro facínora.

Uma consideração que não se deve fazer quanto ao caráter ideológico no discurso de Patativa é de que ele é apenas fruto da formação inculta advinda de um representante da classe popular sem expressividade artística. A literatura brasileira reconhecida como culta tem veiculado desde sua formação concepções ideológicas e a crítica literária as tem apontado sem, entretanto, negar o valor estético da obra. É o que se verifica nesse comentário feito por Alfredo Bosi acerca do romance O guarani, de José de Alencar:

O que importa é ver como a figura do índio belo, forte e livre se modelou em um regime de combinação com a franca apologia. Essa conciliação, dada como espontânea por Alencar, viola abertamente a história da ocupação portuguesa no primeiro século (é só ler a crônica da maioria das capitais para saber o que aconteceu), toca o inverossímil no caso de Peri, enfim é pesadamente ideológica como interpretação do processo colonial. Nada disso impede, porém, que a linguagem narrativa de Alencar acione, em mais de um passo, a tecla da poesia (1992, p. 181). 

O importante ao se reconhecer o valor da obra de Patativa do Assaré não é trazê-la para o salão da grande literatura. Inseri-la no meio canônico, que por seu caráter hegemônico a repele, não é a melhor forma de lhe conferir representatividade. Apesar de não acreditar que possa ser prestigiado: “ Tarvez, este meu livrinho/ Não vá recebê carinho, / Nem lugio e nem istima” (p. 18), Patativa sabe que é diferente do poeta urbano e faz questão de assinalá-lo. Para o poeta urbano modernista, abolir a rima é filiar-se à vanguarda, os versos brancos são um indicativo de renovação estética. Para Patativa, a rima é inerente a sua poesia, é seu cheiro, sua alma. O poeta, nesse particular, identifica-se com o engenho de pau, só pode produzir poesia e encanto se se mantiver em sua originalidade. O seu lugar é de cá, do sertão, porque só ele o pode traduzir em poesia.

Só canta o sertão dereito

Com tudo quanto ele tem,

Quem sempre correu estreito,

Sem proteção de ninguém,

Coberto de precisão

Suportando a privação

Com paciença de Jó,

puxando o cabo da inxada,

na quebrada e na chapada,

Moiadinho de suó (p. 26-7).

A originalidade da poesia de Patativa do Assaré é que o fez sobressair-se no universo anônimo dos cantadores do povo, passando do folheto de cordel para o livro, da falta de estima da cultura hegemônica para o estudo de Figueiredo Filho, de Raymond Cantel, para esse texto que ora finda.

 

 

 

 

 

 

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