Lucilene Gomes Lima
“E
não há melhor resposta
que o
espetáculo da vida”
(Mor (Morte e vida severina)
É comum João Cabral
de Melo Neto ser qualificado como poeta seco, antilírico. Essas denominações
advêm de seu próprio posicionamento ante o ato de fazer poesia. “O poeta é um
escritor que tem determinada maneira de assumir a palavra”, disse. “O poema com
mão certa, pouca e extrema, sem perfumar a flor – Não sou poeta inspirado”,
declarou. Segundo suas palavras, criou uma poesia com tessitura áspera, uma
poesia em que o leitor tivesse de pensar para passar de uma palavra a outra.
João Cabral disse ter rejeitado o automatismo do soneto desde os tempos de
escola. Confessou que na época em que era obrigado a decorá-los tinha horror à
literatura. Avesso ao sentimentalismo, João Cabral pensava que o esforço do
poeta era dizer coisas abstratas através de uma linguagem concreta. Num poema,
falou do tédio das quatro paredes, dos quatro pontos cardeais, quer dizer, do
já estabelecido, da não possibilidade inventiva. Seu objetivo era trabalhar a
memória e a imaginação.
João Cabral não
ocultou o fato de que a poesia não foi sua primeira opção de escrita. Disse que
seu ideal era ser crítico literário e foi ser poeta porque “achou que era mais
fácil”. Depois descobriu que “a poesia era muito mais difícil do que a crítica literária”,
mas, de certa forma, somou as duas coisas quando declarou que escrever poesia
lhe dava o mesmo trabalho que escrever ensaio. A sua noção de ser a poesia mais
difícil pode ter vindo do lidar com a conotação da linguagem.
Declarações como “Eu
não sinto nenhuma necessidade de escrever, mas sinto uma necessidade enorme de
ler”, quando não podia mais ler por problemas de visão, indicam o quanto era
cerebral, daí que aquilo que destinava ao leitor tivesse sido meticulosamente
construído. Nesse aspecto, há em João Cabral a negação do espontaneísmo
surrealista.
Toda aridez pontuada
pelo poeta, sua recusa do sentimentalismo ao afirmar que o que criava
poeticamente não tinha relação com sua emoção, pois criava emoção para os
outros, não apaga o humanismo em sua poesia que, destaca Merquior, é regida por
uma clara referencialidade à contingência humana (Jornal do Brasil, 9 de
fevereiro de 1980). O nobre compromisso de João Cabral com a realidade,
enfatizado pelo crítico, é referendado pelo poeta quando destaca: “A primeira
obrigação do sujeito que nasceu com aptidão para a palavra é dizer a verdade.”
João Cabral,
comparativamente a Shakespeare, revela uma reflexão ímpar pelas coisas
terrenas, humanas. Shakespeare faz Hamlet declarar: Que obra-prima é o homem!
Quão nobre na razão: quão infinito na faculdade, na forma e no movimento, quão
expressivo e admirável; na ação, quão parecido com um anjo; na compreensão,
quão parecido com um deus, a beleza do mundo, o modelo dos animais, e ainda
assim, para mim, o que é esta quintessência do pó ? (Trad. I. W. Lewis)
João Cabral, em
“Morte e vida severina”, também afirma um valor da vida humana na criança
franzina que tem “a marca da humana oficina”, nas suas mãos cujo trabalho
humano já se advinha. Assim como Shakespeare opõe toda a grandeza humana ao seu
mísero destino na terra – a quintessência do pó, a criança severina é uma
essência frágil: magra, pálida, genza, pequena, setemesinha. A apologia ao ser
humano em João Cabral é a resistência, o apego à vida. Embora Morte e vida
severina seja reconhecido como o poema mais popular de João Cabral, ele não se
dá tão facilmente à interpretação, nele também há um terreno árido que reflete
todo o esforço do poeta para, através da “materialidade” das palavras, das
coisas que elas nomeiam, falar do abstrato através do concreto. Se, para João
Cabral, “Morte e vida severina” é “a coisa que escreveu com maior facilidade” é
porque o espaço enfocado era seu terreno geográfico e simbólico. As
materialidades que compõem a tessitura do poema, entre elas o ser severino, o
coqueiro, o avelós, a palmatória, o canavial, a sala, a porta, o mar, estão
entrelaçadas a conceitos como vida, resistência, esperança, liberdade, começo,
fim, novo, velho, beleza, feiúra.
A aridez
interpretativa que se apresenta em versos de poemas, como “Um cão sem plumas”:
Aquele rio
era como um cão sem
plumas
nada sabia da chuva
azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de
água
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
nos quais o poeta associa impossibilidades – o rio saber (conceituar) e saber o que não existe (a chuva azul, a fonte cor-de-rosa) constituindo uma equivalência com o cão que também não pode ser desprovido do que não existe nele (as plumas) não está tão distante das imagens construídas em “Morte e vida severina”. A vida severina precedida pela morte (conforme o título do poema) é tão imponderável quanto o rio que sabe ou o cão sem plumas. A vida severina, o coqueiro franzino que se mantém firme na areia movediça, alagada pela maré, o avelós, planta desprovida de folhas, mas verde no agreste de cinzas, a palmatória, outra planta desértica que acumula água, na “caatinga sem saliva” e põe flores belas, tornam-se “sim numa sala negativa”, porta abrindo-se em mais saídas”. São todos existências improváveis, transformadas em imagens de beleza no poema.
No núcleo criativo de João Cabral, a comparação faz-se constantemente presente, intercambiando o concreto e o abstrato:
Espesso
como uma maçã é
espessa.
Como uma maçã
é muito mais espessa
Se um homem a come
do que se um homem a
vê.
Como é ainda mais
espessa
se a fome a come
Como é ainda muito
mais espessa
se não a pode comer
a fome que a vê.
(Discurso do Capibaribe).
Uma coisa que existe
é real, mas vivenciá-la, ter a necessidade dela ou sentir a sua falta é que a
torna espessa (essencial). O concreto (ruas, praças, casas) e o abstrato (a
lembrança) chegam mesmo a se fundir em “O profissional da memória”:
Já não lembrava do
que
se injetou em tal
esquina,
que fonte o lembrava
dela,
que gesto dela, qual
rima.
Mas o que perdeu de exato
de outra forma
recupera:
que hoje qualquer
coisa de uma
traz da outra sua
atmosfera.
Em “A educação pela pedra”:
No sertão a pedra não
sabe lecionar,
E se lecionasse, não
ensinaria nada;
Lá não se aprende a
pedra: lá a pedra,
Uma pedra de
nascença, entranha a alma.
Ou em “Fábula de um
arquiteto”:
O arquiteto: o que
abre para o homem
(tudo se sanearia desde
casas abertas)
portas por – onde,
jamais portas – contra,
por onde, livres: ar
luz razão certa
Imagens
presentes em outros poemas são comparáveis às imagens em “Morte e vida
severina” na alternância de fatores extremos (morte-vida/vírus-vacina) ou nas
contingências do humano que aproximam o retirante nordestino e o toureiro
sevilhano:
A cicatriz não tenho
mais;
o inoculado, tenho
ainda,
nunca soube e se o
inoculado
(então) é vírus ou
vacina
(Menino de engenho)
o de nervos de
madeira,
de punhos secos de
fibra
o de figura de lenha
lenha seca de
caatinga,
o que melhor
calculava
o fluido aceiro da
vida,
o que com mais
precisão
roçava a morte em sua
fímbria.
(Alguns
toureiros)
Há uma beleza em
“Morte e vida severina”. Não a aparente, limitada, que tanto se cultua
contemporaneamente. “Morte e vida severina” expressa uma beleza imagética na
resistência da vida sobre a adversidade. Na descrição da formosura da criança
severina, as comparações se complexificam, criando um lógica inversa – o novo
contagia o velho, o sangue novo corrompe a anemia, a vida nova e sadia
infecciona a miséria. Essa é a síntese dialética de “Morte e vida severina”.
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