Isaac Warden Lewis
Incrível! Depois
de tantos anos, hoje estou aposentada. Não mais dou aulas. Não sei por quê.
Isso me soa estranho: dar aulas. Isso significa que o meu tempo de magistério
pode ser contado em número de aulas dadas. Eu não havia pensado nisso antes.
Sinto-me
estranha. Por que faço essa reflexão todos os dias? Quando era pequena, queria
ser professora. Não sei por quê. Talvez a sociedade, a família, alguma
professora ou alguém ou alguma coisa tenha-me sugerido seguir a carreira do
magistério. Não sei ao certo. Mas o fato é que me dei conta de que desejava ser
professora. Naquele tempo, não sabia nada sobre a História, a sociedade, a
vida. E passei muitos anos sem saber nada disso. De repente, dou-me conta de
que talvez não tenha feito nada diferente todo esse tempo.
Quando era
pequena, eu ia à escola todos os dias. A professora ditava as lições. Dizia que
devíamos estudá-las. Para ela, estudar era decorar. Eu copiava e decorava as
lições. Dessa forma, aprendia muitas coisas. Ou melhor, acreditava que aprendia
muitas coisas. Nunca me ocorria refletir sobre o que respondia. E parece que
isso nunca ocorria à professora também. Ela repassava o conhecimento pronto. Ela
nos dava um saber. Daí, pressupor-se o dever de reconhecimento do aluno – pobre
de saber – para com o seu professor que doa um pouco de seu saber.
Com essa
educação da doação, fui crescendo. Enquanto crescia, fui frequentando outros
níveis escolares até chegar ao curso de magistério. E alegremente eu me formei
professora primária. Houve festas. Ganhei um diploma. Sentia-me feliz e
orgulhosa de ser professora. Anos mais tarde, participei de um concurso para o
magistério público. Passei. Fui designada para lecionar numa escola. E, durante
anos, desempenhei a função de professora. Afinal de contas, o que é uma função
de professora? O que é ser professora?
Rotineiramente,
sem meditar, passei a fazer a mesma coisa que as minhas professoras haviam
feito. Ditava e ditava as lições e pedia aos alunos para estudá-las. Para mim,
estudar era decorar. No final do mês, eu organizava provas com perguntas sobre
as lições dadas. Os alunos respondiam as perguntas mecanicamente.
Quando me
aposentei, reencontrei a maioria desses alunos, vivendo condições de vida
sofridas e injustas. Percebi que eram inconscientes e incapazes de entender sua
situação e o contexto social e político
em que estavam inseridos. Entendi, então, que eu não lhes havia ensinado a
viver. Percebi que os havia treinado para se adaptarem aos preconceitos sociais
e às tarefas exigidas pelo mercado de trabalho.
Como é que eu
não me dera conta disso durante o tempo em que lecionava? Como pude ser tão
cega? Compreendi que fora educada numa bitola e ensinava os meus alunos nessa
mesma bitola. Ao exigir deles a memorização das lições, dificultava a
possibilidade de refletirem sobre o mundo e de agirem criativamente sobre ele.
Sei bem que alguns alunos recusavam-se a conformarem-se a essa bitola. Embora a
minha prática de ensino dificultasse o desenvolvimento da reflexão e da
criatividade, ela não impedia que alguns alunos agissem criticamente. No meu
entender, esses alunos eram rebeldes, maus elementos porque atrapalhavam a rotina das minhas aulas.
Entendo, agora, que minha formação me impedia de perceber e compreender, com
clareza, as minhas ações, a minha prática educativa.
Agora, tenho
consciência de que, embora tenha desempenhado a função de professora, não fui
uma educadora. Pois não fui capaz de estimular e desenvolver a capacidade
reflexiva da maioria dos meus alunos. Isso possibilitaria a eles pensarem o seu
cotidiano, pensarem a sua vida. Então, eles seriam capazes de refletir sobre as
injustiças sociais de sua sociedade e poderiam agir criticamente para
transformá-la e torná-la justa para todos. Imagino como seria o mundo se cada
professora assumisse uma postura crítica no ato de ensinar.
No entanto,
enquanto exercia a função de professora, eu me preocupava somente com as
aparências. Orgulhava-me do status de ser professora. Exibia o anel de
professora a todo momento e em todo lugar. Na parede da sala, fiz questão de
pendurar o diploma e a fotografia da minha formatura. Eu estava vestida de beca
e com a borla na cabeça. Quanta futilidade! Como sinto vergonha de tudo isso!
Na verdade, eu
deveria ter aprendido a aprender para poder ensinar os meus alunos a
aprenderem.Somente agora, compreendo que “o pior analfabeto é o analfabeto
político”. Não me lembro onde vi ou ouvi esta frase. Como pude ser tão
analfabeta?
Entretanto
algumas frases que lia antes, mecanicamente, ganham sentido agora ao
relacioná-las com a reflexão que faço
sobre a minha experiência vivida no magistério. Eu ouvia dizer que “a educação
era uma questão política”, mas nunca parei para refletir sobre isso.
Será que ainda
posso ensinar, apesar de estar aposentada? Sim, acho que posso. Educação é
participação. Quando eu reencontrar os meus alunos, falarei com eles sobre a
autocrítica que tenho feito da minha prática educativa durante o tempo em que
fui professora. Na verdade, falarei com todas as pessoas que me ouvirem.
Falarei com todo mundo, pois, como li num livro – “Pedagogia do oprimido”, de
Paulo Freire, ontem à noite: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo,
os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
.......
Do livro
“Umanitá e outras histórias”.
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