segunda-feira, 9 de maio de 2022

AUTOCRÍTICA DE UMA PROFESSORA APOSENTADA

 Isaac Warden Lewis

Incrível! Depois de tantos anos, hoje estou aposentada. Não mais dou aulas. Não sei por quê. Isso me soa estranho: dar aulas. Isso significa que o meu tempo de magistério pode ser contado em número de aulas dadas. Eu não havia pensado nisso antes.

Sinto-me estranha. Por que faço essa reflexão todos os dias? Quando era pequena, queria ser professora. Não sei por quê. Talvez a sociedade, a família, alguma professora ou alguém ou alguma coisa tenha-me sugerido seguir a carreira do magistério. Não sei ao certo. Mas o fato é que me dei conta de que desejava ser professora. Naquele tempo, não sabia nada sobre a História, a sociedade, a vida. E passei muitos anos sem saber nada disso. De repente, dou-me conta de que talvez não tenha feito nada diferente todo esse tempo.

Quando era pequena, eu ia à escola todos os dias. A professora ditava as lições. Dizia que devíamos estudá-las. Para ela, estudar era decorar. Eu copiava e decorava as lições. Dessa forma, aprendia muitas coisas. Ou melhor, acreditava que aprendia muitas coisas. Nunca me ocorria refletir sobre o que respondia. E parece que isso nunca ocorria à professora também. Ela repassava o conhecimento pronto. Ela nos dava um saber. Daí, pressupor-se o dever de reconhecimento do aluno – pobre de saber – para com o seu professor que doa um pouco de seu saber.  

Com essa educação da doação, fui crescendo. Enquanto crescia, fui frequentando outros níveis escolares até chegar ao curso de magistério. E alegremente eu me formei professora primária. Houve festas. Ganhei um diploma. Sentia-me feliz e orgulhosa de ser professora. Anos mais tarde, participei de um concurso para o magistério público. Passei. Fui designada para lecionar numa escola. E, durante anos, desempenhei a função de professora. Afinal de contas, o que é uma função de professora? O que é ser professora?

Rotineiramente, sem meditar, passei a fazer a mesma coisa que as minhas professoras haviam feito. Ditava e ditava as lições e pedia aos alunos para estudá-las. Para mim, estudar era decorar. No final do mês, eu organizava provas com perguntas sobre as lições dadas. Os alunos respondiam as perguntas mecanicamente.

Quando me aposentei, reencontrei a maioria desses alunos, vivendo condições de vida sofridas e injustas. Percebi que eram inconscientes e incapazes de entender sua situação  e o contexto social e político em que estavam inseridos. Entendi, então, que eu não lhes havia ensinado a viver. Percebi que os havia treinado para se adaptarem aos preconceitos sociais e às tarefas exigidas pelo mercado de trabalho.

Como é que eu não me dera conta disso durante o tempo em que lecionava? Como pude ser tão cega? Compreendi que fora educada numa bitola e ensinava os meus alunos nessa mesma bitola. Ao exigir deles a memorização das lições, dificultava a possibilidade de refletirem sobre o mundo e de agirem criativamente sobre ele. Sei bem que alguns alunos recusavam-se a conformarem-se a essa bitola. Embora a minha prática de ensino dificultasse o desenvolvimento da reflexão e da criatividade, ela não impedia que alguns alunos agissem criticamente. No meu entender, esses alunos eram rebeldes, maus elementos porque  atrapalhavam a rotina das minhas aulas. Entendo, agora, que minha formação me impedia de perceber e compreender, com clareza, as minhas ações, a minha prática educativa.

Agora, tenho consciência de que, embora tenha desempenhado a função de professora, não fui uma educadora. Pois não fui capaz de estimular e desenvolver a capacidade reflexiva da maioria dos meus alunos. Isso possibilitaria a eles pensarem o seu cotidiano, pensarem a sua vida. Então, eles seriam capazes de refletir sobre as injustiças sociais de sua sociedade e poderiam agir criticamente para transformá-la e torná-la justa para todos. Imagino como seria o mundo se cada professora assumisse uma postura crítica no ato de ensinar.

No entanto, enquanto exercia a função de professora, eu me preocupava somente com as aparências. Orgulhava-me do status de ser professora. Exibia o anel de professora a todo momento e em todo lugar. Na parede da sala, fiz questão de pendurar o diploma e a fotografia da minha formatura. Eu estava vestida de beca e com a borla na cabeça. Quanta futilidade! Como sinto vergonha de tudo isso!

Na verdade, eu deveria ter aprendido a aprender para poder ensinar os meus alunos a aprenderem.Somente agora, compreendo que “o pior analfabeto é o analfabeto político”. Não me lembro onde vi ou ouvi esta frase. Como pude ser tão analfabeta?

Entretanto algumas frases que lia antes, mecanicamente, ganham sentido agora ao relacioná-las  com a reflexão que faço sobre a minha experiência vivida no magistério. Eu ouvia dizer que “a educação era uma questão política”, mas nunca parei para refletir sobre isso.

Será que ainda posso ensinar, apesar de estar aposentada? Sim, acho que posso. Educação é participação. Quando eu reencontrar os meus alunos, falarei com eles sobre a autocrítica que tenho feito da minha prática educativa durante o tempo em que fui professora. Na verdade, falarei com todas as pessoas que me ouvirem. Falarei com todo mundo, pois, como li num livro – “Pedagogia do oprimido”, de Paulo Freire, ontem à noite: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.

 

.......

Do livro “Umanitá e outras histórias”.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                                    

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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