sábado, 5 de agosto de 2017

QUESTÃO DE SEGURANÇA

                                                                                         LUCILENE GOMES LIMA
Oito horas da manhã.
O bairro do Sossego inicia o seu formigar diário. Moradores descem e sobem  as ladeiras tortuosas e esburacadas. Vendedores ambulantes fazem pregões em busca de vender alimentos de consumo rápido. Do interior das moradias, emana o odor do café da manhã. Algumas crianças brincam à porta das casas. Uma das ruas do bairro ostenta sobre o chão uma grande mancha vermelha. Uma mancha banal, incapaz de sensibilizar, de expressar qualquer angústia da morte. Uma mancha que denuncia a lembrança de um crime ocorrido ali. No entanto, nada diz aos transeuntes que passam apressados. Manchas como essa aparecem com certa frequência nas ruas do bairro do Sossego. De vez em quando, as ocorrências criminais ainda fazem parte dos assuntos do dia dos moradores, que as comentam com  naturalidade.  Numa casa desse bairro, mora Louro, que chegou há pouco do distante condomínio residencial em que trabalha como segurança. Fatigado, espera a chegada do pão, que seu filho foi comprar num quiosque próximo. Comer alguma coisa, deitar-se e recuperar algumas horas de sono é tudo o que deseja no momento.  A sua companheira dissolve  numa vasilha com água morna umas poucas colheres de leite em pó. Louro fixa seu olhar no conteúdo da vasilha. Aquele líquido triste está ali todas as manhãs. “Isso é uma vantagem” – pensa ele. Entretanto a consistência do líquido não respalda esse pensamento. O filho traz o pão. Louro molha-o no café com leite e mastiga-o devagar. A manteiga acabou. O pão teria outro sabor se houvesse a manteiga. Mas Louro pensa que pode passar sem ela. É um homem resignado, está acostumado a privações. O diabo do pão é que insiste em pedir  a manteiga: teima em  não ter sabor: faz bolo na garganta. Um pão cheio de caprichos.
Nove horas da manhã.
Através das grandes luminárias externas que vão-se apagando pouco a pouca, as casas do Boulevard La Paix dão os primeiros sinais do seu despertar. Nas extensas alamedas do condomínio, o amanhecer já se anunciou há muito pelo canto mavioso dos pássaros e pelo fulgor dos raios do sol que banham as copas de exuberantes árvores. O Boulevard La Paix é um admirável exemplo de um paraíso particular. Tem o silêncio, o ar puro e o isolamento. Aqui se situa a casa do patrão do Louro, senhor Afonso Hilário Gonçalves. Como atividade rotineira de todas as manhãs, a governanta liga para o quarto do senhor e senhora Gonçalves e anuncia que o café está servido. O senhor Gonçalves desce. A senhora Gonçalves costuma acordar mais tarde. À mesa, estão dispostos queijos, pães finos, geleias, frutas, sucos e os tradicionais café e leite. O senhor Gonçalves seleciona num sofisticado prato de porcelana um tenro pedaço de queijo. Ao ser degustado, o queijinho derrete-se todo meloso. Após o café, o senhor Gonçalves, acompanhado do seu segurança pessoal, dirige-se a “Gonçalves & Malheiros Financiamentos S/A” para mais um dia de trabalho na vice-presidência.
Dez horas da manhã.
A companheira de Louro faz a faxina diária na sua casa. Inconscientemente, detém-se mais na limpeza da televisão comprada recentemente, um tesouro que ela lustra para que nunca perca a magia do novo.
Onze horas da manhã.
A senhora Gonçalves informa à governanta que se sente indisposta e não descerá à sala de refeições. Manda que seja servido o  breakfast em seu quarto. O breakfast chega em dez minutos, mas ela manda que seja levado de volta. Lembra-se que está de dieta.
Quatro horas da tarde.
A companheira de Louro lava roupa numa tina que fica na parte externa da casa, enquanto ele se prepara para voltar ao trabalho. Na rua, dois homens observam discretamente, conversam algo entre si e se separam. Poucos minutos depois da saída de Louro, um dos homens se aproxima e, dizendo estar à procura de um endereço, pede um copo de água à companheira de Louro. Aproveitando o momento em que ela entra para pegar a água, o homem observa, pela porta semiaberta, os objetos da casa. Nota, também, as portas e as janelas em mau estado e as fragilidades das trancas. Bebe a água, agradece e vai embora. A companheira de Louro volta à lavagem de roupa.
Cinco horas da tarde.
Louro está pronto para recomeçar mais um turno de trabalho na residência dos Gonçalves. Na entrada do condomínio, é revistado pelo segurança da guarita. Faz parte do sofisticado sistema de segurança do condomínio a revista de todos que entrem como visita ou empregado. Ao entrar na mansão, Louro assume seu posto. Inicia uma inspeção rotineira no sistema de segurança da casa. Entre outras coisas, verifica se os alarmes estão em perfeito funcionamento, faz uma limpeza no rifle automático. Depois, se coloca em seu posto de observação na sala equipada com  circuito interno de televisão.
Dez horas da noite.
A companheira de Louro cochila enquanto assiste à televisão. Os filhos já estão dormindo profundamente. Na porta do fundo, as frágeis dobradiças cedem à pressão de um pé-de-cabra. O barulho atrai a atenção da mulher, que se levanta e caminha até a cozinha. Ao sentir a aproximação, o invasor se esconde por trás de um armário. A mulher ouve um outro barulho na direção da sala, retorna e depara-se com um homem de arma em punho, apontada para as crianças. Ela tenta gritar, mas o homem que se escondera na cozinha chega, domina-a a abafa seu grito. Ela luta e tenta inutilmente desvencilhar-se. Uma das crianças que ainda dormia, acorda assustada e grita. O assaltante desnorteia-se e a alveja. Vendo o filho ser atingido, a mulher ganha uma força inesperada e consegue se soltar dos braços que a retém. Corre em direção ao filho baleado, mas os outros filhos  também se precipitam em direção a ela. Os dois assaltantes atiram. A mulher e as crianças são atingidas. Os assaltantes ainda têm tempo de colocar numa bolsa algumas coisas de pouco valor e fogem pela porta da frente.
Onze horas da noite.
A fortaleza dos Gonçalves descansa em paz a muitos quilômetros do barulho das sirenes e das luzes intermitentes que rasgam a escuridão da noite, cheia de sobressaltos e medos.
Onze e meia da noite.
A governanta atende ao telefone na residência dos Gonçalves. Uma voz pede para falar com alguém chamado “Louro”, identificando-se como sua vizinha. É caso de morte, explica. A governanta, com a voz claramente irritada, informa que se trata de um engano. Ali não reside ninguém com tal nome. E desliga.   ]
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Do livro “O mestre e o discípulo”

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