Oito horas da
manhã.
O bairro do
Sossego inicia o seu formigar diário. Moradores descem e sobem as ladeiras tortuosas e esburacadas. Vendedores
ambulantes fazem pregões em busca de vender alimentos de consumo rápido. Do
interior das moradias, emana o odor do café da manhã. Algumas crianças brincam
à porta das casas. Uma das ruas do bairro ostenta sobre o chão uma grande mancha
vermelha. Uma mancha banal, incapaz de sensibilizar, de expressar qualquer
angústia da morte. Uma mancha que denuncia a lembrança de um crime ocorrido
ali. No entanto, nada diz aos transeuntes que passam apressados. Manchas como
essa aparecem com certa frequência nas ruas do bairro do Sossego. De vez em
quando, as ocorrências criminais ainda fazem parte dos assuntos do dia dos
moradores, que as comentam com naturalidade.
Numa casa desse bairro, mora Louro, que
chegou há pouco do distante condomínio residencial em que trabalha como
segurança. Fatigado, espera a chegada do pão, que seu filho foi comprar num
quiosque próximo. Comer alguma coisa, deitar-se e recuperar algumas horas de
sono é tudo o que deseja no momento. A
sua companheira dissolve numa vasilha
com água morna umas poucas colheres de leite em pó. Louro fixa seu olhar no
conteúdo da vasilha. Aquele líquido triste está ali todas as manhãs. “Isso é
uma vantagem” – pensa ele. Entretanto a consistência do líquido não respalda
esse pensamento. O filho traz o pão. Louro molha-o no café com leite e
mastiga-o devagar. A manteiga acabou. O pão teria outro sabor se houvesse a
manteiga. Mas Louro pensa que pode passar sem ela. É um homem resignado, está
acostumado a privações. O diabo do pão é que insiste em pedir a manteiga: teima em não ter sabor: faz bolo na garganta. Um pão
cheio de caprichos.
Nove horas da
manhã.
Através das grandes
luminárias externas que vão-se apagando pouco a pouca, as casas do Boulevard La Paix dão os primeiros
sinais do seu despertar. Nas extensas alamedas do condomínio, o amanhecer já se
anunciou há muito pelo canto mavioso dos pássaros e pelo fulgor dos raios do
sol que banham as copas de exuberantes árvores. O Boulevard La Paix é um admirável exemplo de um paraíso particular.
Tem o silêncio, o ar puro e o isolamento. Aqui se situa a casa do patrão do
Louro, senhor Afonso Hilário Gonçalves. Como atividade rotineira de todas as
manhãs, a governanta liga para o quarto do senhor e senhora Gonçalves e anuncia
que o café está servido. O senhor Gonçalves desce. A senhora Gonçalves costuma
acordar mais tarde. À mesa, estão dispostos queijos, pães finos, geleias,
frutas, sucos e os tradicionais café e leite. O senhor Gonçalves seleciona num
sofisticado prato de porcelana um tenro pedaço de queijo. Ao ser degustado, o
queijinho derrete-se todo meloso. Após o café, o senhor Gonçalves, acompanhado
do seu segurança pessoal, dirige-se a “Gonçalves & Malheiros Financiamentos
S/A” para mais um dia de trabalho na vice-presidência.
Dez horas da
manhã.
A companheira de
Louro faz a faxina diária na sua casa. Inconscientemente, detém-se mais na
limpeza da televisão comprada recentemente, um tesouro que ela lustra para que
nunca perca a magia do novo.
Onze horas da
manhã.
A senhora Gonçalves
informa à governanta que se sente indisposta e não descerá à sala de refeições.
Manda que seja servido o breakfast em seu quarto. O breakfast chega em dez minutos, mas ela
manda que seja levado de volta. Lembra-se que está de dieta.
Quatro horas da
tarde.
A companheira de
Louro lava roupa numa tina que fica na parte externa da casa, enquanto ele se
prepara para voltar ao trabalho. Na rua, dois homens observam discretamente,
conversam algo entre si e se separam. Poucos minutos depois da saída de Louro,
um dos homens se aproxima e, dizendo estar à procura de um endereço, pede um
copo de água à companheira de Louro. Aproveitando o momento em que ela entra
para pegar a água, o homem observa, pela porta semiaberta, os objetos da casa.
Nota, também, as portas e as janelas em mau estado e as fragilidades das
trancas. Bebe a água, agradece e vai embora. A companheira de Louro volta à
lavagem de roupa.
Cinco horas da
tarde.
Louro está
pronto para recomeçar mais um turno de trabalho na residência dos Gonçalves. Na
entrada do condomínio, é revistado pelo segurança da guarita. Faz parte do
sofisticado sistema de segurança do condomínio a revista de todos que entrem
como visita ou empregado. Ao entrar na mansão, Louro assume seu posto. Inicia
uma inspeção rotineira no sistema de segurança da casa. Entre outras coisas,
verifica se os alarmes estão em perfeito funcionamento, faz uma limpeza no
rifle automático. Depois, se coloca em seu posto de observação na sala equipada
com circuito interno de televisão.
Dez horas da
noite.
A companheira de
Louro cochila enquanto assiste à televisão. Os filhos já estão dormindo
profundamente. Na porta do fundo, as frágeis dobradiças cedem à pressão de um pé-de-cabra.
O barulho atrai a atenção da mulher, que se levanta e caminha até a cozinha. Ao
sentir a aproximação, o invasor se esconde por trás de um armário. A mulher
ouve um outro barulho na direção da sala, retorna e depara-se com um homem de
arma em punho, apontada para as crianças. Ela tenta gritar, mas o homem que se
escondera na cozinha chega, domina-a a abafa seu grito. Ela luta e tenta
inutilmente desvencilhar-se. Uma das crianças que ainda dormia, acorda
assustada e grita. O assaltante desnorteia-se e a alveja. Vendo o filho ser
atingido, a mulher ganha uma força inesperada e consegue se soltar dos braços
que a retém. Corre em direção ao filho baleado, mas os outros filhos também se precipitam em direção a ela. Os
dois assaltantes atiram. A mulher e as crianças são atingidas. Os assaltantes
ainda têm tempo de colocar numa bolsa algumas coisas de pouco valor e fogem
pela porta da frente.
Onze horas da
noite.
A fortaleza dos
Gonçalves descansa em paz a muitos quilômetros do barulho das sirenes e das
luzes intermitentes que rasgam a escuridão da noite, cheia de sobressaltos e
medos.
Onze e meia da
noite.
A governanta
atende ao telefone na residência dos Gonçalves. Uma voz pede para falar com
alguém chamado “Louro”, identificando-se como sua vizinha. É caso de morte,
explica. A governanta, com a voz claramente irritada, informa que se trata de
um engano. Ali não reside ninguém com tal nome. E desliga. ]
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Do livro “O
mestre e o discípulo”
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