Isaac Warden Lewis
O país chamado Brasil
consolidou uma série de contradições e confusões temáticas e conceituais
difíceis de serem corrigidas. Esta terra começou sendo chamada de ilha de Vera Cruz. A terra não era uma
ilha e a cruz não era vera. Depois, chamou-se Terra de Santa Cruz. Esse nome também não vingou porque a cruz não
era santa. Não havia e nunca houve documento divino provando que esta terra
deveria pertencer a Portugal. Essa nação propagou, então, que descobrira uma terra
que passaria a ser chamada Brasil.
Que descoberta era essa onde viviam povos nativos há mais de mil anos antes de
os europeus chegarem à América (outro nome problemático)? Para piorar as
coisas, chegaram com os invasores portugueses ordens religiosas (jesuítas,
principalmente) que nada sabiam sobre cristianismo. Ensinavam, na verdade,
cristianismo às avessas porque, na Europa, estudiosos questionavam os dogmas
cristãos e produziam conhecimentos científicos que desqualificavam qualquer
conhecimento religioso. Mas, para os nativos, os africanos e os portugueses
analfabetos e ignorantes, o ensino jesuítico era considerado farol da
civilização. A partir desse ensino precário, mas satisfatório para os
colonizadores e exploradores dos indígenas e dos negros, os filhos de senhores
e senhoras escravagistas iam a Portugal estudar Direito, que não consistia em
estudar ciências jurídicas e, sim, aprender a operacionalizar as leis
manuelinas e joaninas, favoráveis à escravização e discriminação negativa de
índios e negros africanos e seus descendentes. Havia, naturalmente, exceções,
como, por exemplo, Gonçalves Dias, mas a maioria dos formados nessas escolas
eram somente operadores das leis estabelecidas em favor das classes
privilegiadas e favorecidas de Portugal e do Brasil, ou seja, traficantes,
senhores e senhoras escravagistas, incluindo reis, rainhas e a corte.
No Brasil Império, as
contradições e as confusões temáticas e conceituais continuaram. O Brasil
torna-se independente. Mas, como? Os brasileiros ou o povo brasileiro lutou
para se tornar independente de Portugal? Não, o regente D. Pedro declarou sua
independência com relação às cortes portuguesas. Depois da revolução francesa
(1789) que aboliu o absolutismo dos reis, como Luís XIV, que dizia “o estado
sou eu”, os brasileiros aceitaram o fato de que o Brasil era independente sem
luta revolucionária. Claro que os brasileiros, nesse caso, eram os traficantes,
os senhores e as senhoras escravagistas e seus filhos letrados, a maioria,
operadores das leis manuelinas e joaninas que, agora, passariam a ler os
manuais e as apostilas de segunda mão da burguesia vitoriosa na Inglaterra e na
França. Embora houvesse um grande número de advogados formados nas faculdades
de Direito de São Paulo e de Olinda, os cientistas jurídicos eram poucos, como,
por exemplo, Castro Alves, Rui Barbosa, Antônio Bento, Saldanha Marinho e
outros em várias províncias do Brasil. O diploma possibilitava a esses letrados
empregos nos órgãos públicos. Essa era a expectativa dos senhores e das
senhoras escravagistas para os seus filhos ou afilhados. Nesse período,
senhores e senhoras escravagistas, seus descendentes e agregados, a maioria
constituída de mamelucos, viam-se como europeus. Macaqueavam-se física e
espiritualmente, pretendendo serem europeus, civilizados, cristãos, embora não
tivessem noção exata do que era ser europeu, civilizado, cristão. Além disso,
esses senhores e essas senhoras, analfabetos, ignorantes, preguiçosos, em sua
maioria, ambicionavam conquistar títulos de nobreza. Vários barões, marqueses,
duques conquistaram seus títulos por terem massacrado índios e negros
desarmados. O Brasil era um império às avessas. Era um império de papel. Para
quem leu a história do império persa, romano ou britânico, por exemplo, fica
difícil entender que império era esse constituído no Brasil. Oficialmente, o
Brasil constituiu-se através de proclamações. O rei de Portugal proclamou aos
quatro cantos da terra que os portugueses descobriram o Brasil. D. Pedro
proclamou a independência. A república brasileira também não resultou de luta
do povo para fundar uma república. Os senhores escravagistas resolveram
proclamar a República. Ponto final.
A decisão dos senhores
e das senhoras escravagistas ocorreu um ano após a proclamação (outra)! da
abolição da escravidão. Essa abolição trouxe um problema anunciado para as
classes privilegiadas e favorecidas. O que fazer com milhares e milhares de
índios e negros vagando pelo Brasil? Em 1850, os escravagistas
estabeleceram que a aquisição de terras no Brasil só poderia ser feita através
de compra. Mesmo assim, milhares de índios, negros, cafuzos, pardos, mulatos,
brancos, mamelucos ocuparam terras devolutas, distantes, em todas as províncias
brasileiras desde o período colonial. Os fazendeiros mamelucos começaram a
imaginar uma república europeia nos trópicos. Trouxeram europeus de verdade –
italianos, portugueses, espanhóis, suíços para trabalharem em suas terras, mas,
ao invés de se irmanarem com os brancos europeus, trataram-nos como escravos.
Esses europeus não gostaram de tal tratamento. Os italianos – os rebeldes mais
organizados – passaram a combater a escravidão, a exploração dos trabalhadores,
propor reformas e revoluções. Os fazendeiros e os seus letrados (chefes de
polícia, juízes, operadores de leis) descobriram horrorizados que os imigrantes
eram politizados – comunistas, anarquistas, socialistas, sindicalistas
combativos. Prenderam milhares desses imigrantes. Colocaram-nos em um navio e
devolveram-nos para as suas pátrias. No século XIX, os escravagistas tiveram
uma experiência similar na Bahia. Trouxeram da África negros muçulmanos.
Descobriram horrorizados que tais negros eram rebeldes e que pretendiam fundar
uma república negra muçulmana na Bahia. Mais horrorizados ficaram, ao
descobrirem que tais negros sabiam ler e escrever em várias línguas.
Prenderam-nos, castigaram-nos e devolveram-nos para África.
Enfim, os letrados
mamelucos importaram textos sobre positivismo
e darwinismo social de segunda mão,
já superados, da Europa (digo, da Inglaterra e França), mas ainda em vigor nas colônias
mais atrasadas, como Austrália, países da África, Estados Unidos (país
independente, porém ideologicamente alinhado com países escravagistas),
Alemanha (onde vigorava o idealismo medieval e antirrevolucionário de Kant e
Hegel) e apropriados por mentes doentias em todas as partes do mundo. Esses
letrados mamelucos perguntavam-se que país o Brasil deveria ser: Brasil
europeu, Brasil africano ou Brasil ameríndio? Respondiam essa pergunta,
desqualificando e discriminando negativamente negros e índios e concluíam com
as afirmações já contidas nas leis manuelinas e joaninas. O Brasil deveria ser
branco puro e índios e negros deveriam ser apartados. Os operadores de direito e
os legisladores encontraram uma maneira de inventar um “estado burocrático de
direito” e o denominaram “estado democrático de direito”. Nesse estado, tudo
funciona às avessas. Todos têm direitos e, ao mesmo tempo, nem todos têm
direitos. A lei deve ser para todos, mas nem todos devem necessariamente
obedecer às leis. A Constituição é para todos, mas nem todos são regidos por
essa Constituição. Os operadores das leis e do direito acham isso maravilhoso,
pois podem enunciar, quando acham oportuno e conveniente, que “o Brasil é um
estado democrático de direito”. E tudo se passa como se isso fosse verdade,
mesmo com inocentes presos e criminosos soltos de acordo com a Constituição, o
Direito, a Democracia etc, etc, etc. Num tribunal brasileiro, o honesto
torna-se desonesto e o desonesto torna-se honesto.
Se é difícil
entendermos certos temas, certos conceitos políticos nesse país, como
entendermos o que sejam socialismo,
esquerda, direita, democracia, burguesia, pequena burguesia, proletariado
quando expressos por certos jornalistas, letrados de gabinete e oportunistas
políticos. Como entendermos a insistência desses letrados em chamar o Partido
dos Trabalhadores de partido de esquerda ou de partido socialista? O papel de
um ativista político, de um intelectual engajado com a verdade, é o de
esclarecimento não só de si mesmo como de seus contemporâneos. Nas linhas
anteriores, tentamos mostrar que os letrados, no Brasil, sempre distorceram os
sentidos, os significados de temas, ideias e conceitos. No período colonial, os
jesuítas diziam-se cristãos, mas não se comportavam como cristãos. Ensinavam um
cristianismo que permitia a desqualificação, a discriminação negativa e a
exploração de índios e de negros. No Brasil império, os operadores das leis
defendiam os interesses dos senhores e das senhoras escravagistas e se
consideravam civilizados. Para entendermos as distorções do Brasil república,
precisamos confrontar os significados de termos repetidos constantemente, como pátria, república, democracia, direito,
igualdade, constituição, ordem e progresso etc, etc, etc.
Além disso, precisamos
entender que, no Brasil, país capitalista periférico ou de segunda categoria,
as classes sociais são emergentes, o que significa dizer que as classes emulam
ou querem se parecer com as classes de países capitalistas centrais. A
burguesia, a pequena burguesia, a classe média e até a classe proletária são
classes emergentes. A ânsia das classes emergentes dos países periféricos é não
só parecerem com as classes correspondentes nos países centrais, mas terem a
riqueza e o poder que essas classes detêm em seus países. É por isso que os
líderes periféricos se parecem tanto. Os líderes políticos e os intelectuais
orgânicos dos países da África e do Brasil se parecem tanto. Ao assumirem o
poder político de um país, fazem a mesma coisa que os seus antecessores
antagônicos faziam. Envolvem-se em corrupção, em mentiras, consideram-se donos
do país e comportam-se como se os cidadãos fossem seus súditos.
Os líderes que se dizem
socialistas, revolucionários, tanto nos países africanos quanto no Brasil,
esquecem rapidamente postulados básicos para transformação qualitativa da
sociedade em que vivem. O primeiro postulado que esquecem é que os capitalistas
(por conseguinte, o capital e o capitalismo) são fundamentalistas. Os projetos
dos capitalistas não são conciliatórios e nem buscam a harmonia entre as
classes. As propostas educacionais, políticas, trabalhistas, sociais,
financeiras e de seguridade social são bem claras e visam a concentração de
renda de poucos e a pauperização da maioria da população.
O projeto educacional,
por exemplo, proposto pelo governo da Ditadura Militar (1964-1982), imposto
pelo Acordo MEC-USAID, nas reformas de 1968 e de 1971, visou expandir educação
de má qualidade em todos os níveis de ensino, mais precisamente a precarização
do ensino, a privatização do ensino superior, tornando esse setor educacional
formador de operadores e técnicos em todas as áreas profissionais sem exceção
para atender os interesses do mercado, reservando aos países centrais a
produção científica qualificada. As exceções existem. Há cientistas indianos,
chineses, judeus, brasileiros trabalhando nos países centrais. O governo do
Partido dos Trabalhadores, mais do que os governos anteriores, adotou e
aprofundou os projetos de precarização do ensino em todos os níveis e de
privatização do ensino superior.
Todos os projetos
políticos adotados pelo governo do Partido dos Trabalhadores, principalmente
depois da expulsão dos socialistas fundamentalistas de seus quadros, foram
projetos conciliatórios, assistencialistas, cooperativos e condescendentes com
os interesses de grandes grupos financeiros internacionais e nacionais. Ao
assumirem o poder, os políticos do Partido dos Trabalhadores não questionaram
os projetos políticos adotados pelos governos civis após o Governo Figueiredo.
Não fizeram nada de novo, nem em relação à corrupção e aos desvios teóricos já
praticados tão bem por socialistas e revolucionários de países africanos. Por
que, então, os intelectuais de gabinete, os jornalistas e os oportunistas
políticos insistem em chamar o Partido dos Trabalhadores de partido de
esquerda? Esquerda de onde?
Precisamos respeitar os
anarquistas, os comunistas, os socialistas italianos e brasileiros presos,
condenados e até mortos por essa república desde o início de sua proclamação.
Entendemos que o Partido dos Trabalhadores, mais do que qualquer partido de
direita, abriu as portas para a Direita e fechou as portas para a Esquerda. É,
por conseguinte, um partido contrarrevolucionário.
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