segunda-feira, 16 de junho de 2025

A MULHER, A MINISTRA E O MEIO AMBIENTE


                                                                  Lucilene Gomes Lima*



Foto: Wikipédia


As palavras revelam mais do que seus emissores desejam ou pensam revelar. O senador Plínio Valério em audiência na Comissão de Infraestrutura do Senado, no dia 27 de maio de 2025, em que interpelava a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, lhe diz: “A mulher merece respeito, a ministra, não. O senador separou o ser mulher do cargo que ela ocupa. Acaso alguém pode se separar da sua condição social, histórica, biológica para assumir um cargo? Isso precisaria ser possível para que o senador, segundo outra fala sua, pudesse enforcar somente a ministra e não a mulher.

Singularmente com a mulher ocorre o fato de se separar o que ela é profissional e socialmente de sua categoria ontológica. Na sociedade de consumismos em que vivemos, muitas vezes, as datas de vendas do comércio separam mãe, mulher, profissional. Nesse contexto, por mulher se entende apenas o sexo e sua capacidade de atração e geração. Por isso, quando alguém refere a palavra mulher precisa explicitar o que quer dizer com essa palavra.   

O senador Plínio Valério diz respeitar as mulheres porque tem seis filhas. Para ele, ter filhas, fato que, no momento de geração, não depende de sua escolha, significa respeitar mulheres. É preciso saber se ele respeita as filhas em seus estudos, suas profissões e como seres pensantes. O senador diz respeitar a ministra Marina como mulher, porém demonstra não respeitar Marina, ser histórico com inegável participação e luta nas questões ambientais, as quais motivaram toda a discussão e os desentendimentos. Marina, ser social mulher, já estava envolvida com as questões ambientais antes de ser ministra do meio ambiente. O senador Plínio finge ignorar que a mulher nunca se separou em convicção, pensamento e ação da ministra. Marina cresceu ativista ambiental, foi membra de partido político de ativismo ambiental, o Partido Verde, e fundou um partido cujo lema principal é o ativismo ambiental, a Rede Sustentabilidade, e se não merece respeito como ministra, também não é considerada confiável pelo setor do agronegócio brasileiro, daí seus embates como sindicalista, parlamentar e ministra. Marina sempre enfrentou embates nos cargos que ocupou, tendo se mantido firme em seus princípios. O senador Plínio separou Marina, ser real, histórico de seu cargo e a pôs numa categoria abstrata, a mulher. Por outro lado, o senador Plínio demonstrou, por suas próprias palavras, não respeitar nem mesmo essa categoria, uma vez que diz que a esposa o repreendeu por não a ouvir e ouvir a ministra Marina. Não é demais inferir que se o senador não ouve sua mulher, que não é ministra, pode também não a considerar nem respeitar.

Dizem que a emenda costuma sair pior do que o soneto e parece ter sido isso que ocorreu quando o senador Plínio, ao tentar se retratar por sua fala com relação à ministra Marina, disse em entrevista: “Se eu pedir desculpas para Marina não entro em casa”. Não se pode precisar o que o senador quis dizer com essa fala. Talvez signifique que ele nunca pede desculpas para sua mulher e ela, a exemplo do contexto em que o recriminou por não ter disposição de ouvi-la, não aceite a sua contradição.

O senador Plínio demonstrou covardia usando as mulheres (esposa e filhas) para se eximir da acusação de preconceito e foi oportunista e demagógico ao recorrer à pandemia de Covid 19 para justificar o descaso e o desrespeito para com o ambiente de sua terra natal. Como as palavras não estão livres do oportunismo de quem as enuncia, o senador Plínio Valério e o senador Omar Aziz se transformaram em paladinos dos direitos humanos, da compaixão humana, alardeando o desejo de salvar pessoas e, ao mesmo tempo, menosprezando a catástrofe ambiental planetária, na qual, inclusive, as pandemias podem se generalizar. Quando o senador Plínio diz que se pedisse desculpas à ministra não conseguiria se eleger nem para o cargo de vereador, indica quem são seus eleitores, mas, devido sua imprecisão vocabular, não se sabe se o que ele quis realmente comunicar é que não será reeleito porque pede desculpas a uma ministra que se posiciona a favor da preservação do meio ambiente ou porque, simplesmente, pede desculpas a uma mulher.

O senador Marcos Rogério, presidindo a Comissão de Infraestrutura, disse à ministra Marina que ela estava agindo por sexismo e depois que era mal-educada por interromper a fala dos senadores e lhes apontar o dedo, por último, disse à ministra que se colocasse no seu lugar. Todas essas acusações têm um contexto que as precederam, apesar de o senador Marcos omitir esse contexto ao se defender em plenário por suas falas e criticar o comportamento da ministra como de uma pessoa exaltada e desrespeitosa. O sexismo do qual o senador acusou a ministra foi trazido à discussão na comissão não por ela, mas pelo senador Plínio, e o desrespeito ao direito de fala foi praticado pelo próprio senador Marcos quando cortou o microfone da ministra, que respondia ao senador Omar Aziz, o qual, com tom de voz alterado e ofensivo, ao denominar a equipe do ministério de “meia dúzia de especialistas que falam besteira sobre região que não conhecem”, a acusou de não ter lhe respondido uma pergunta. O que o senador Omar finge não saber é que Marina nasceu num estado da Amazônia, o Acre, e que conhece a região como lugar de vivência, não somente como função burocrática de governo. O contexto demonstra que a ministra só alterou o tom de voz, apontou o dedo em riste e, por fim, retirou-se da audiência após ter sido sucessivamente ofendida.    

Os três parlamentares foram inábeis ou sordidamente hábeis com as palavras, apesar de ocuparem o cargo de respeitáveis senadores da República. Todos revelaram-se por suas palavras: aquele que disse que respeitava uma mulher sem, de fato, respeitá-la; aquele que menosprezou a preocupação com a segurança ambiental, qualificando-a como “conversinha de governança” e aquele que disse a uma ministra mulher qual era o seu lugar de fala – calar-se. É preciso questionar para que servem a Educação, o Congresso, o Ministério do Meio Ambiente se os senadores Omar Aziz, Marcos Rogério e Plínio Valério, dentre outros, não consideram e não respeitam os conhecimentos e os dados técnicos produzidos por especialistas brasileiros.

Longe de não ser importante a discussão sobre o gênero que a audiência possibilitou, a questão do meio ambiente é central, primeiramente, por demonstrar a capilaridade dos interesses em jogo. Um embate, na verdade, entre o grande capital e os defensores da preservação ambiental, conforme explicita na audiência a fala do senador Lucas Barreto, autor do requerimento que convidou a ministra: “[...] Nós queremos esse direito de prospectar essa riqueza que tem na costa do Amapá”. Enquanto uma ministra apresenta dados técnicos, um senador apenas diz que ela está mentindo, ecoando os interesses das empresas que extraem gananciosamente os elementos naturais, constroem estradas, administram e lucram com as frotas rodoviárias. Nesse aspecto, explica-se a confluência de propósitos dos senadores: desmoralizar o poder de voz de uma mulher e menosprezar o tema da catástrofe ambiental.   

 


 * Mestra em Estudos literários pela Universidade Federal do Pará, autora dos livros O mestre e o discípulo, O julgamento, Ficções do ciclo da borracha, A expressão literária, O produto imaginário, cofundadora da editora Mundo Novo 


sábado, 31 de maio de 2025

L A N Ç A M E N T O

 





Esse livro é composto de duas partes. Na primeira são caracterizadas as bases  constitutivas do produto imaginário na mensagem publicitária a  partir  de    concepções históricas e sociais do feminino e como esse discurso se apresenta na mensagem publicitária brasileira através da análise de anúncios elaborados nas décadas do século XX e primeira década do século XXI. Na segunda parte são analisados os veículos transmissores dos anúncios e a consequente relação ideológica entre os conteúdos das mensagens publicitárias e os conteúdos divulgados por esses veículos. 


quinta-feira, 22 de maio de 2025

(DE) CADÊNCIA

 

                                                                                                     Lucilene Gomes Lima

 

P

 

elo barulho do tecido se rasgando, ela calculou que o vestido se partira de cima a baixo. “Mais cedo ou mais tarde, isso aconteceria, Maria das Graça”’, pensou. Mas por que se chamava assim? Estava tão certa de seu infortúnio a ponto de resgatar o passado obscuro?

Chamava-se, de fato, Maria das Graças, mas mudou de nome e de vida para ser Josephine, a modelo refinada das passarelas. No tempo em que fora Maria das Graças nunca brilhara, nunca encantara plateias seletas, nunca conhecera o mundo da moda nem vestira os mais invejáveis vestidos, idealizados por geniais estilistas. Só ela sabia o que era nascer numa cidade do interior que apenas os mapas registram. Por isso, decidiu enterrar o passado. Preferiu fazer de conta que Maria das Graças nunca existira.

Então, por que se lembrar agora de que Josephine não era seu nome verdadeiro? Se tudo foi modificado para que não ficasse o mais leve sinal da existência de Maria das Graças. Mudaram-lhe a cor do cabelo, transformaram-lhe os traços do rosto, ensinaram-lhe um novo modo de falar, andar, comer, sorrir. E assim, aos poucos, ela esqueceu realmente quem era. Deslumbrou-se com o mundo da moda e passou a orientar-se somente por ele. Uma ou outra lembrança que lhe vinha da vida de outrora servia apenas para reforçar sua abjeção: a mãe chorando, debruçada à janela no dia em que ela partiu; a mãe, trajando aquele vestidinho de chita... como era triste e insignificante o mundo que ficava para trás.

Só, no camarim, buscava uma explicação para ter chegado ao ponto de descuido que chegara e, mais que tudo, buscava uma forma de salvar-se do vexame.

Calculava quanto custaria aquele vestido. Certamente não estava em jogo somente o valor em dinheiro. Sabia do temperamento do estilista que idealizara aquela peça. Ele jamais a perdoaria por tê-la destruído, menos ainda no dia em que pretendia expô-la como a grande sensação do desfile.

Não seria menor a humilhação que passaria perante as outras modelos. Sequer tinha argumentos para advogar em sua causa. Rasgara aquele vestido porque cometera o maior pecado que uma modelo poderia cometer – engordara.

Disfarçara o quanto pudera. Evitara ficar em trajes menores diante das outras a fim de que não notassem o seu corpo mais cheio. Inútil. Elas já deviam estar desconfiadas. Uma delas, inclusive, havia feito uma insinuação em forma de piada.

Indiferente ao seu drama, o desfile se inicia lá fora. Todas as modelos já estão perfiladas em frente a escada de acesso à passarela. Ela receberá a deixa para entrar por último, tática usada pelo estilista para causar maior suspense na plateia. O vestido que usa é a peça principal da coleção; falava-se pelos corredores que o estilista passara meses idealizando-o.

A fumaça produzida pelo gelo seco invade a passarela, criando uma atmosfera de mistério e, assim que se dispersa, a primeira modelo sobe, cadenciando o movimento do corpo. Seu rosto impassível lembra os dos manequins de cera das vitrines.

Josephine aguarda o momento de sua chamada. Pensa em fugir, mas não pode sair do camarim sem ser vista. Poderia, então, tentar explicar-se, buscar benevolência, compreensão. Entretanto, com o número expressivo de moças que tentam ocupar seu lugar, é pouco provável que lhe seja dada uma chance de explicação. Tais moças, com as medidas rigorosamente nos padrões, são capazes de qualquer coisa para terem uma chance de brilhar. Todas elas sonham subir as passarelas um dia e desse modo obter fama, sucesso e muito dinheiro.

Entretanto, o descarte também faz parte da carreira de uma modelo. Como qualquer produto, estão sujeitas a serem substituídas logo que se desgastem ou se tornem desinteressantes.

As modelos expõem o segundo traje da noite. Em breve, Josephine será chamada para sua entrada triunfal e única.

Ela permanece dento do camarim, a porta semiaberta, olhando o desenvolvimento do desfile, contando os minutos que lhe restam, temendo ouvir a deixa para sua entrada.

Nesses momentos que antecedem a sua desdita, antevê o futuro como um filme. Primeiramente, os contratos cancelados e o fechamento de todas as portas; depois, o retorno.

A mãe recebendo-a com o semblante de quem constata a vitória da experiência, a confirmação dos conselhos e das imprecações. E proferindo as mesmas recriminações banais. Ela sofrendo com a certeza de que se voltasse no auge da fama a acolhida seria diferente. A mãe seria, então, cúmplice de seu audacioso projeto, de sua ousada tentativa de romper o círculo em torno do horizonte pequeno e destacar-se para o mundo.

Resta-lhe saber o que levará da vida de glamour. Que significa, finalmente essa vida? Luzes, brilho, imagens. É para os outros uma imagem? Uma imagem nas capas de revistas, uma imagem na tela da televisão. Uma imagem que precisa ser alimentada continuamente de seu caráter ilusório. Sendo assim, nada poderá levar que pertença a esse mundo. A partir do momento em que se desligue dessa imagem, será apenas um ser comum, semelhante aos outros, semelhante, até, a sua mãe.

Do corredor vem a chamada inevitável. Ela respira fundo, sente-se suspensa no ar, não sente o próprio corpo. Nesse momento não há passado, não há futuro, só o receado presente.

Num estado de transe, dá alguns passos a caminho da escada. Não sabe por que caminha. Sente-se absolutamente indiferente em relação ao que vai fazer, mas seus pés se movimentam e ela vai subindo, degrau a degrau.

A plateia está em silêncio; ouve-se, ao fundo, uma música de tom exótico. Há uma excessiva claridade na passarela. Ela preferiria que tudo fosse escuridão. Os flashes das máquinas fotográficas começam a disparar antes mesmo que ela suba o último degrau.

E, logo, sem saber como chegou até ali, está sobre a passarela. Uma brisa fria lhe penetra no corpo pela extensão do vestido rasgado. Como uma vítima que olha para o algoz, ela lança um olhar de relance para o estilista. Ele parece estupefato.

Ela continua desfilando mecanicamente, julga-se ensandecida. Mas a plateia, num único gesto, transforma tudo. Aplaude vigorosamente, está embevecida, o que vê é deslumbrante.

O estilista é aclamado e sobe a passarela para receber os aplausos pela absoluta originalidade do modelo.   


terça-feira, 28 de janeiro de 2025

MEMÓRIAS DE ADORAÇÃO AO FOGO

                                                                                            Lucilene Gomes Lima 


Você não imagina como essas cenas da minha infância ainda estão vivas em minha memória. Lembro-me como se fosse hoje. Parece até que minha velha avó está me olhando com aquele seu jeito de deixar qualquer um amofinado. Se eu tinha medo dela? Claro que tinha.

Ela sempre me levava para o roçado nos dias em que ia fazer a coivara a fim de preparar a terra para a plantação de tabaco. Fazia uma grande fogueira. Uma coisa imensa para os meus olhos de criança. Eu passava um longo tempo a olhar para o fogo. O que via nele? Muitas coisas. Era superior e soberano como a minha avó. Pra mim, representava o mesmo que ela. Causava temor e admiração.

Minha avó era especialista em beliscões. Você acredita que eu ainda me lembro da dor intensa dos beliscões que ela me dava quando me recusava a tomar banho? Nunca lhe respondia malcriações, mas no meu pensamento eu a praguejava com os palavrões mais feios do mundo.

Depois, eu tinha remorso, ficava pensando se não era pecado desejar coisas tão feias para a minha avó. E ela sempre dizia que criança malcriada o diabo levava. Acho que era por isso que quase todas as noites eu sonhava que o diabo queria me levar. Como era o meu sonho? Era uma aflição danada. Parece que tudo estava acontecendo de verdade.

Você sabe como é a imagem do diabo? Num dos meus sonhos, ele apareceu com cabeça e patas de bode, pernas negras, escamas verdes, asas azuis, cabeça vermelha. Bicho pavoroso. Tinha uma força fora do comum.

Disse que ia me levar e começou a me arrastar. Eu me debati. Empreguei toda a resistência que pude para me soltar. O bicho não desistiu e tanto fez que...

Você ouviu? Esse é o meu neto, Quinzinho. Nunca sabe encontrar nada sem a minha ajuda. Aguarde um pouquinho que eu vou terminar de lhe contar como acabou o sonho.

Pronto. Já estou de volta. Em que parte eu parei? Isso mesmo. Você lembrou bem. Quando o diabo queria me levar.

Como estava contando, o bicho tinha vencido e já estava me levando para o inferno com ele, mas, nesse momento, sabe quem apareceu? Não, não foi Deus. Mas foi como se fosse.

Exatamente. Foi a minha avó. Ela apareceu toda de branco, cercada por chamas de fogo brilhantes, segurando uma cruz, e não sei com que forças me arrebatou das garras do monstro e me salvou.

Rezei muito quando acordei e venerei minha avó como se fosse santa. Depois que voltei a sentir a dor de seus beliscões, esqueci o sonho e tornei a desejar-lhe mal.

Não demorou muito e eu tive o mesmo sonho em que o diabo aparecia querendo me levar. Você já deve estar se perguntando se a minha avó me salvou. Isso eu conto depois. Primeiro, preciso contar toda a aflição que passei. Desta vez o sufoco foi maior.

Ao ver o bicho se aproximando, eu tentei escapar. Não consegui. Os meus pés não se moviam do chão. Eu não tinha forças para movimentar nenhum músculo do meu corpo. O que fiz? Fiquei parada e rezei. Rezei todos os pedaços de orações que eu sabia. Acho que rezei até coisa que nem era oração. Naquela hora, eu tinha de rezar qualquer coisa. Não teve reza que fizesse o bicho parar...

Está ouvindo? É o menino de novo. Espere só mais um pouquinho que eu vou saber o que ele está querendo.

Você está vendo como essas crianças dão trabalho? Bom, agora eu posso terminar de contar o sonho.

Como eu dizia, o bicho ia me dominar com suas garras quando, de repente, uma coisa muito estranha aconteceu. O bicho tinha se transformado na minha avó. Eu fiquei confusa. Achei que aquilo era uma arte do demônio para me iludir. Não era. Era a minha avó mesmo, e foi ela quem mais uma vez me salvou.

Passei a ter menos medo de sonhar com o demônio, confiando que minha avó sempre me salvaria. No mundo real, a história era diferente. Eu sempre a temia e até a odiava porque me aplicava castigos cruéis.

Uma noite, eu sonhei que o diabo saía das labaredas do fogo para me pegar. Tive medo. Esperei minha avó chegar para me salvar. Ela veio. E quando os dois se enfrentaram cara a cara...

Mas esse menino está-me chamando outra vez! Eu volto já.

Será que demorei muito? Você está ansioso para saber como acabou o sonho? Parei quando o diabo e minha avó estavam se enfrentando, não foi?

Você deve estar pensando que minha avó expulsou o diabo e mais uma vez me salvou. Não foi tão simples assim. De repente, diante dos meus olhos, os dois se juntaram num só corpo. Uma parte era a minha avó, outra era o diabo. Então, ficaram me puxando de um lado e de outro. Se eu me deixasse levar por minha avó, também acabava sendo levada pelo diabo. Lembro claramente desse momento de agonia, mas não lembro no que foi que resultou. Por que não me lembro? Ora, porque nesse momento eu acordei.  

* Publicado originalmente em O mestre e o discípulo (2000)

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

TUDO QUE ERA SÓLIDO CONDENSA-SE NA NUVEM


                                                                                          Lucilene Gomes Lima


 Em Manaus: amor e memória (2004), Thiago de Mello testemunha que os objetos naturais e os objetos e ritos culturais criados por nós, seres humanos, constituem um ritmo próprio na incipiente vida urbana do município de Manaus na primeira metade do século XX. Em sua lembrança afetiva da capital do Amazonas, o poeta relata que conversas se iniciavam em todas as ruas tão logo anoitecia. As frentes das casas, as calçadas recebiam cadeiras de embalo e os habitantes contavam histórias, falavam da vida cotidiana na década de 1930. Outro hábito comum à época eram as sestas diurnas, que ocorriam quando os trabalhadores chegavam às casas para o almoço. Depois de dormir aproximadamente quinze minutos ou meia hora, voltava-se ao trabalho. A sesta não era exclusividade da população local, os trabalhadores estrangeiros também adotavam o hábito. A soneca tinha momento, mas não tinha lugar, podia-se deitar na relva, recostar-se nos troncos das árvores. Diferentemente do que ocorre hoje em dia, em que a vida urbana eliminou a razoabilidade dos hábitos, usava-se chapéu para se proteger do sol e roupa branca para atrair menos calor. A sociabilidade urbana era também muito diferente ou, talvez, deva-se dizer, ela existia. Os vizinhos se conheciam, as casas não eram tão fechadas nem precisavam de grades. Thiago conclui que “[...] o forte da cidade não era a criminalidade, mas a cordialidade” (2004, p. 52). A morte era um espanto porque não era rotineira.

Na Manaus evocada pela lembrança do poeta, os sons urbanos (do apito das fábricas e dos barcos, das serrarias, da usina de luz, das badaladas dos sinos das igrejas, do pregão e dos instrumentos improvisados que usavam os mascates para vender especiarias e de tudo um pouco – linhas, agulhas, botões, morins, chita, brilhantinas, pó de arroz) marcavam as horas do dia e ligavam-se à vida pacata e rotineira, gravando-se na memória, revelando um modo de viver, ser, existir.

Assim como os sons, os cheiros evocam lembranças: o odor da defumação do látex, das madeiras cortadas nas serrarias, exalando aroma de pau rosa, preciosa, cedro: “[...] o cheiro delas ficava nas serragens e não era sempre o mesmo. Era um com o sol, era outro depois da chuva [...]” (2004, p. 82). Os cheiros dos alimentos também constroem a memória. O aroma dos mingais, tomados no mercado Adolpho Lisboa aos sábados e domingos, e das especiarias que os temperavam, o cheiro da tartaruga e da pimenta murupi que acompanhava o guizado e o sarapatel do quelônio, os odores e sabores do cupuaçu, da sapotilha, do jatobá e o cheiro das mariranas que costumava exalar quando as árvores se carregavam de frutos. O cheiro da moagem e da torrefação do café no moinho da cidade. O poeta lembra que o cheiro dos produtos importados vendidos em algumas casas da cidade, tais como camarões, bacalhau, figos, maçãs faziam a felicidade dos que podiam ao menos aspirá-los, uma vez que nem todos podiam comprá-los. Thiago também não se permite deixar de louvar a arquitetura cabocla, a qual denomina “sobradinhos de madeira”, autênticos e condizentes com o espaço, construídos com matéria prima e criatividade local, ao contrário dos casarões e sobradões de inspiração europeia, construídos à época do ciclo da borracha, geralmente com material importado (pedras, mármores, telhas, vidraças, azulejos, gradis).   

A importância da relação entre sujeito e objeto para a memória humana é ressaltada por Ecléa Bosi: “O relógio da família, a medalha do esportista, a máscara do etnólogo, o mapa-mundi do viajante. Cada um desses objetos representa uma experiência vivida. Penetrar na casa em que estão é conhecer as aventuras afetivas de seus moradores” (Memória e sociedade: lembrança de velhos, 1994, p. 441). Quando objetos e espaços físicos são destruídos, com os escombros também se enterra a memória. Os sujeitos se sentem descartados juntamente com os objetos, os lugares que são partes de suas vivências e de sua história.  Diz ainda Ecléa: “[...] o desenraizamento é uma condição desagregadora da memória: sua causa é o predomínio das relações de dinheiro sobre outros vínculos sociais [...]” (1994, p. 443). Os objetos biográficos que criam a sensação de enraizamento tornam-se objetos de consumo. Ecléa vislumbra um “mapa afetivo, sonoro” nas lembranças dos sujeitos testemunhas que entrevista. Identifica uma memória sensorial que marca o humano: “A substituição do trem e do bonde pelo ônibus mudou a paisagem sonora para os ouvidos de d. Risoleta: ‘O trem de Santo Amaro entrava numa mata virgem e ia: Tendendém, tendendém! Dentro da mata... Depois foram tirando tudo, tiraram o bonde e puseram ônibus, se vê como é que está’ ” (1994, p. 445).

Partindo de uma frase expressa no Manifesto comunista, escrito por Marx e Engels, Marshall Berman desenvolve o argumento de seu livro, publicado em 1983, “Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade”.  O autor denomina o Manifesto como arquétipo de um século inteiro de manifestos e movimentos modernistas que se sucederiam. Para Berman, o Manifesto “[...] pode esclarecer especificamente a relação entre a cultura modernista e a cultura e a sociedades burguesas [...]” (1986, p. 89). O autor destaca que a classe burguesa toma para si a tarefa de mudar o mundo. Os membros da burguesia capitalista “[...]fariam o mundo em frangalhos se isso pagasse bem. Assim como assustam a todos com fantasias a respeito da voracidade e desejo de vingança do proletariado, eles próprios, através de seus inesgotáveis empreendimentos, deslocam massas humanas, bens materiais e dinheiro para cima e para baixo pela Terra e corroem e explodem o fundamento da vida de todos em seu caminho [...]” (1986, p. 98). Berman também destaca que a burguesia é a classe dominante mais violentamente destruidora de toda a história.  Aponta, segundo a análise de Marx no Manifesto, que na cultura moderna assim como na economia burguesa convivem revolução permanente, desenvolvimento infinito, perpétua criação e renovação em todas as esferas da vida e sua antítese: destruição insaciável, estilhaçamento, destruição da vida (1986, p. 100).   

A modernidade, conforme analisa Berman, baseado nas transformações culturais, na percepção de escritores e artistas, traz a ideia do novo como valor premente. Não somente prédios, ruas são postos abaixo. Uma febre de mudança transforma tudo em obsoleto. Quaisquer objetos podem decretar a inutilidade daqueles que os antecederam. A onda avassaladora da inovação é, muitas vezes, apenas para a proclamação do novo. Essa veneração pela novidade é captada por Ecléa Bosi, quando afirma [...] os objetos protocolares são os objetos que a moda valoriza, não se enraízam nos interiores, têm garantias por um ano, não envelhecem com o dono, mas se deterioram [...]” (1994, p. 441). Os grandes monumentos construídos pela classe burguesa, celebrados efusivamente nos movimentos vanguardistas e por artistas no século XX, os enormes portos e pontes, infindáveis bulevares, os arranha-céus são espetáculos de grandiosidade para os olhos. Como lembra Berman, são desmantelados pelas próprias forças que os celebram (1996, p. 98). São sólidos que, a vista de um novo empreendimento, podem se desmanchar no ar. O autor ilustra que a mudança na estrutura urbana, no século XIX, modifica os seres humanos em seus hábitos e modos de agir e perceber o mundo: “O homem, na rua moderna, lançado nesse turbilhão, se vê remetido aos seus próprios recursos – freqüentemente recursos que ignorava possuir – e forçado a explorá-los de maneira desesperada, a fim de sobreviver. Para atravessar o caos, ele precisa estar  em sintonia, precisa adaptar-se aos movimentos do caos, precisa aprender não apenas a pôr-se a salvo dele, mas a estar sempre um passo adiante. Precisa desenvolver sua habilidade em matéria de sobressaltos e movimentos bruscos, em viradas e guinadas súbitas, abruptas e irregulares – e não apenas com as pernas e o corpo, mas também com a mente e a sensibilidade.” (1986, p. 154).

Tudo o que é feito pelos seres humanos tem mudado a vida no planeta a cada século, a cada década. Assim como os bulevares mudaram o tráfego e arrastaram em sua poeira uma série de tradições, impondo outro modo de vida, as coisas têm mudado sensivelmente o modo de viver e a nós mesmos. Mudamos a natureza, criamos novos objetos e esses novos objetos criaram novos seres humanos. Pela primeira vez na história, as coisas que nos servem e das quais nos servimos perdem sua materialidade. A era moderna trouxe a urgência de destruir ou fragilizar para reconstruir, mas no século XXI importa menos reconstruir do que reduzir a própria materialidade das coisas. Num determinado período de nossa história recente, em que as coisas eram reconhecidas por sua solidez, a percepção das pessoas era contrária a de agora, fornecida pelos meios eletrônicos digitais. Na primeira projeção cinematográfica, o público não percebeu a diferença entre a realidade expressa por imagens em uma tela e a realidade objetiva, por isso, os espectadores assustaram-se ao ver um trem direcionar-se a sua frente, como se pudesse transpor o objeto de projeção e atingi-los.

Vivemos numa era que caminha cada vez mais para uma superestrutura englobante. O advento da internet funde entretenimento, conhecimento, informação e comércio numa só rede. Quando ocorre tal consórcio, rompem-se as fronteiras espaciais e temporais. O leitor que ia a uma biblioteca encontrava-se num espaço cercado somente de livros, o silêncio era a condição para se estar e permanecer num salão de leitura, enquanto para navegar em aplicativos não se tem qualquer pré-condição que não seja um aparelho conectado, o qual pode ser usado em qualquer lugar e a qualquer hora, inclusive no barulhento espaço urbano. A navegação na rede também inclui a mensagem publicitária intrusiva, ausente no espaço das bibliotecas e no conteúdo dos livros. Em nenhum outro momento da história uma fonte difusora possui tantos produtos e serviços acoplados. Um único aparelho, o telefone celular, comporta em seus aplicativos de dados tv, rádio, cinema relógio, calculadora, calendário, espelho, telefone, telex, fax, revistas, livros, jornais, câmeras fotográficas e filmadoras, bancos para operações financeiras, dinheiro para compra de produtos e pagamentos de serviços, música, relações  sociais e culturais virtuais, uma infinidade de coisas antes palpáveis e, de certa forma, controláveis, agora ao alcance apenas num toque de tela.

O telefone celular passou a ser, mais que um objeto utilitário, um objeto protocolar, valorizado pela moda, pela neurose do novo. Apesar de divinizado pela gama de possibilidades que oferece, o aparelho é constantemente descartado e reposto para acompanhar o avanço tecnológico, diferentemente dos objetos biográficos que envelhecem com os donos, conforme observa Ecléa Bosi: “Só o objeto biográfico permanece com o usuário e é insubstituível” (1994, p. 441). Os “objetos desmaterializados”, em oposição aos objetos biográficos, apenas nos servem, sem fazer parte de nossa vivência. Podemos trocar digitalmente milhares de mensagens, sem que elas sejam mais do que “curtidas”, consumo de comunicação. As mensagens, como também a própria relação na rede digital, são de hospedagem.

Várias relações sociais, tanto quanto objetos tornaram-se efêmeros na era digital. Nada é para reter ou guardar, mas usufruir e descartar. As fotos digitais em meios eletrônicos não representam a experiência vivida, como as fotos físicas de álbuns igualmente físicos, lembranças de momentos especiais, comemorações, viagens. A foto captada hoje imediatamente é descartada devido à quantidade e à banalidade. Em lugar da experiência, passa a valer o simultaneísmo do compartilhamento e a privacidade anula-se no click, no zoom. A era digital cunhou a expressão selfie, que não é propriamente uma fotografia, mas um espelho. A mudança em relação à fotografia convencional é que passamos a ser imagem e espectadores de nós mesmos, ou seja: vemo-nos no ato de nos fotografar. A visão especular também ocorre na transmissão de vídeo ao vivo. Numa conversa on line, vemos o outro, o outro nos vê e cada um vê a si próprio, é, portanto, uma transmissão em espelho. Há uma mudança profunda na relação sujeito-objeto, que vai deixando de ser tangível, quanto na relação sujeito-sujeito que se virtualiza.

Gerações crescidas com telas já não se satisfazem com materialidade. Nos museus, a importância física dos objetos expostos é menor para essas gerações que preferem as exibições holográficas, os pixels que se projetam e se movimentam nas paredes intermitentemente, obliterando as sensações prolongadas, duradouras e contemplativas.

Ecléa Bosi narra que a memória se apoia em coisas sólidas, como a calçada efetivamente pisada, onde outros também imprimiram seus passos, sua presença e vivência. Essa noção de que a memória é constituída pelas sensações que obtemos da concretude das coisas é a mesma de Thiago de Melo ao lamentar o desaparecimento da praça da estação dos bondes em Manaus, juntamente com os objetos que a compunham – calçamento de pedras, plantas, árvores. Para o poeta, a presença material condiciona a memória: “Minha memória trabalha com a matéria de um tempo que o próprio tempo comeu. Como é que era esse tempo?” (2004, p. 4). Sem a solidez das coisas, a memória passa a contar apenas com a capacidade cognitiva de lembrar.

Com o avanço tecnológico, o mundo vai se enchendo de objetos sem funcionamento tanto porque dependem de peças de manutenção que não mais se fabricam quanto porque sua forma de difusão ou transmissão se torna obsoleta. Os dados em nuvens dos servidores de internet podem ser armazenados fora de computadores e celulares, o que torna esses objetos também equipamentos vazios. Os dados em nuvem significam uma rede global de servidores conectados. Enquanto todas as informações na rede se alojam nas nuvens, tornando desnecessários os registros físicos e as memórias em discos rígidos de equipamentos, o sistema de datacenter onde os dados são armazenados, depende de condições físicas determinadas para existir, como um espaço geográfico com temperatura amena, e um sistema de energia permanente.

A perda da materialidade significa mais que um avanço sem precedentes para a humanidade. Pode significar que, se as coisas não estão mais sob o controle de nossas mãos, perdemos o controle sobre nós mesmos e nossas vidas. Os arquivos colocados na nuvem só podem ser acessados através da rede, deixam de ocupar espaço num aparelho físico que, aparentemente, nos pertence, livrando a memória desse dispositivo e a memória humana de seu sentido de concretude.


sexta-feira, 23 de agosto de 2024

COMODIDADE, FACILIDADE, PRATICIDADE NA ALIMENTAÇÃO

 

                                                                                               Lucilene Gomes Lima


A descrição que Geofrey Blainey (Uma breve história do mundo, 2004) faz referente aos seres humanos que viveram, há dois milhões de anos, no planeta Terra pode parecer curiosa aos seres humanos contemporâneos. Nossos antepassados se alimentavam primordialmente de frutas, nozes, sementes e plantas e principiavam a se alimentar de carne, possuindo apenas implementos primitivos para caçar. Mesmo a alimentação frugal era muito difícil de conseguir e exigia longas caminhadas até encontrar frutas e sementes que pudessem ser ingeridas. Foi necessário desenvolver a habilidade de reconhecer plantas comestíveis e não comestíveis, pois, por não possuir esse conhecimento, muitos seres humanos morreram envenenados. A jornada em busca de sobrevivência era repleta de obstáculos e perigos, em nada comparável ao passeio pelo supermercado na época em que vivemos.

Não devemos pensar que apenas na era contemporânea os seres humanos buscam comodidades. Antes de transformar substancialmente os elementos naturais, os seres humanos já faziam alguns usos desses elementos para facilitar sua sobrevivência. Aproveitavam o fogo para clarear a escuridão da noite, endurecer os rústicos instrumentos feitos para cavar, cremar os mortos, realizar rituais simbólicos, afastar o risco de animais peçonhentos ou predadores, repelir insetos.

Hoje o aproveitamento dos elementos naturais se apresenta de forma bastante prática. Comemos com facilidade e rapidez, apesar de existirem fatores relacionados à alimentação que não podemos ignorar: a forma de cultivo e criação dos alimentos, seu processamento industrial e seu acondicionamento. Todos estão ligados à praticidade da produção e do consumo.

Aparentemente, um supermercado com seus balcões assépticos, suas ilhas geladas, suas prateleiras repletas de embalagens é mais higiênico do que uma feira de produtos naturais recém-extraídos da terra ou colhidos das plantas, animais abatidos e tratados no local. Em primeiro lugar, poucos se perguntam como os alimentos prontos para consumo nos supermercados chegaram ali. Não refletem que a praticidade que buscam como consumidores também é visada pelos produtores, principalmente porque para esses últimos ela se traduz em maior lucratividade. Por esse motivo, as fases de criação e produção dos alimentos passam a ser comandadas pela lógica industrial, que quer dizer produção em larga escala. Sob essa perspectiva, o produto agrícola também deve apresentar um controle de qualidade que prime pela padronização, como os produtos fabricados na esteira industrial, ainda que, muitas vezes, isso signifique modificar suas características naturais.

É mais prático e lucrativo para o produtor que galináceos se reproduzam em pouco tempo e em maior número do que no tempo biológico regular, o mesmo se dando com os bovinos, os suínos e os peixes. No sistema de confinamento, o crescimento e a engorda são recordes em todas essas espécies. O gado criado em sistema de confinamento é alimentado em cochos necessariamente com rações a base de farelos de milho e de soja. O produto almejado é o boi gordo, ou seja: aquele que pesa em média 16 arrobas ou mais e tem idade até quarenta e dois meses, de acordo com as informações contidas no site boisaude.com.br. Na chamada pecuária extensiva, em que os animais se alimentam cem por cento de pasto, dificilmente eles adquirirão essas mesmas proporções. O método do boi de cocho não necessita de grandes extensões de terra, uma vez que o gado não é criado solto. Por outro lado, grandes extensões são necessárias para o cultivo de grãos que irão alimentá-los. Esse fator tem feito com que muitos produtores agreguem a pecuária à agricultura para maior controle da cadeia de produção. Apesar da praticidade da criação do boi de cocho, esse animal fica mais susceptível a adoecer com a dieta só à base de grãos, o que leva os produtores a utilizarem os suplementos melhoradores de desempenho.

Do mesmo modo que a criação de animais é feita com modificação dos processos biológicos naturais, alterando os estágios de fecundação, nutrição, crescimento, o cultivo de plantas comestíveis sofre alteração nos processos de adubação do solo, reprodução das espécies e defesa natural. As plantas cultivadas com insumos agrícolas reproduzem-se mais rapidamente, em maior quantidade e tamanho, de tal forma que seu armazenamento se prolonga além do período da safra. Modificadas em sua reprodução natural, ficam mais sujeitas a doenças e pragas.  

Após as etapas de produção de animais e plantas em larga escala para a comercialização, eles sofrem novos processos para que possam ser estocados nos pontos de venda. Na indústria, a maioria dos alimentos também se altera a fim de que possam chegar embalados para o consumo. Como no supermercado tudo é prático e rápido, a leitura de rótulos de embalagens que informam a origem dos alimentos, e a alteração química que sofreram em seu processo de industrialização, é deixada para trás pela maioria dos consumidores. Mais do que ler os rótulos para compreender as composições químicas dos alimentos industrializados, é preciso conhecer as denominações que são empregadas, por exemplo, os tipos, subtipos, grupos, subgrupos, classes, no caso de grãos. Essas informações não são apenas de interesse dos produtores e beneficiadores, são igualmente importantes para os consumidores porque especificam o tipo de tratamento e beneficiamento que os grãos sofrem na fase de industrialização. 

Uma pessoa pode ler na embalagem de um produto que ele contém ou não contém glúten sem que saiba o que é glúten ou que muitos produtos cuja embalagem diz não conter glúten contêm soja, um grão cultivado extensivamente com agrotóxicos no Brasil. O mesmo pode ocorrer, por exemplo, com as denominações sêmola, ácido fólico, ácido tartárico, lecitina de soja e com a classificação transgênico. Os processos e os aditivos químicos são ainda mais difíceis de o consumidor pouco familiarizado com as nomenclaturas entender e a lista de aditivos autorizados para alimento no Brasil é extensa. São trezentos e cinquenta, dentre os quais diglicerídeos, pirofosfato dissódico, emulsificante, poliglicerol, polirrinoneato etc. A justificativa da indústria de produtos alimentícios para tantos aditivos é o melhoramento. Segundo essa indústria, um melhorador de farinha de trigo contém amido de milho, estabilizante, lactilato de sódio, polisorbato, ácido ascórbico, ácido cítrico, enzimas com o objetivo de branquear, melhorar o sabor e a textura, aumentar o volume, o valor nutritivo e a qualidade dos produtos que com ela são feitos. Esse processamento facilita a produção porque permite que a massa seja menos trabalhada, reduz o tempo de fermentação, aumenta o tempo de duração, possibilitando maior capacidade de armazenagem.

Uma pessoa que apresente intolerância ao glúten pode não saber que ele é um composto de proteínas presente em vários cereais, como cevada, trigo, centeio, portanto além dos pães, bolos e biscoitos, o glúten está contido em vários outros produtos, conforme detalha o site sensibilidadealimentar.com.br: sorvetes, bebidas em pó, bebidas maltadas, barras de chocolate, licores, cervejas escuras e claras e também nas chamadas comidas de conveniência, as sopas prontas, os molhos, os temperos, as carnes processadas, transformadas pelos processos de salga, cura, fermentação ou defumação (presunto, salsicha, linguiça, bacon, salame, mortadela, peito de peru, blanquet de peru, charque, toucinho), as refeições prontas (entre elas, hambúrgueres, pizzas, lasanhas), as batatas de forno, carnes ou peixes empanados, carne enlatada, patês ou pastas, molhos de carne, cubos de caldos, ervas, temperos, fermento em pó, comidas enlatadas em geral, espaguetes, assim como em subprodutos do trigo como farinheta, farelo fino e farelo grosso que também estão contidos em alimentos industrializados, de tal sorte que há probabilidade de que a intolerância possa desenvolver-se pelo excesso do composto no organismo. O pesquisador Ulisses Fagundes Neto, do Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo, aponta que a doença celíaca (decorrente da intolerância ao glúten) era rara até um passado recente e agora é prevalente no mundo ocidental (igastrpoed.com.br). Existem graus de doença celíaca que podem levar também à intolerância à lactose. No Brasil, 70%  da população apresenta algum grau de intolerância à lactose na atualidade.

O triticale é um cereal híbrido, resultado do cruzamento de duas espécies, o trigo e o centeio, após pesquisas e experimentos nas décadas de 30, 40 e 50 do século XX, desenvolvido para comercialização em 1968, no entanto, nenhum símbolo específico foi criado nas embalagens para representar esse cereal, assim como foi feito com o transgênico. As plantas híbridas já fazerem parte do processo agrícola há milhares de anos, incluindo o próprio trigo atual que sofreu sucessivos cruzamentos, passando de planta de dois conjuntos de cromossomos para quatro conjuntos. O triticale apresenta características similares às dos transgênicos (plantas modificadas geneticamente pela transplantação de genes específicos de uma espécie para outra), desenvolvidos na década de 1980, é resistente a doenças fúngicas e tem custo menor de produção em relação ao trigo. Como as plantas transgênicas, apresenta-se resistente aos efeitos de herbicidas, usados para matar pragas e plantas daninhas invasoras, mas tanto as plantas daninhas quanto as pragas também desenvolvem uma resistência aos herbicidas, levando ao uso mais intenso do agrotóxico, que contamina não somente todas as plantas como também o solo e as águas. Além de ser utilizado em biscoitos, massas de pizzas, bolos, waffles, panquecas, tortillas, o triticale também é misturado ao trigo na panificação, pois torna a massa do pão menos pesada e mais branca.

O símbolo de produto transgênico costuma aparecer em produtos primários como soja, milho, mas o transgênico também pode estar presente nos ingredientes secundários de outros produtos que não recebem o selo, como pode também estar nos ingredientes acidentais, aqueles que o rótulo diz “poderem conter”, ou seja, que o consumidor não é informado se estão ou não nos ingredientes. Quando o fabricante usa essa informação, trata-se de um alerta sobre contaminação industrial, o qual é exigido pela Anvisa. Essa informação dúbia, no entanto, fere o artigo 37 do Código de defesa do consumidor, que proíbe informações que levem o consumidor ao erro. Apesar disso, a Anvisa aceita essa rotulação como satisfatória, como também permite que produtos com 30% de ingredientes integrais possam ser denominados de integral.

Pesquisas realizadas pelo Idec, em 2016/2017, constataram que produtos cujos ingredientes continham milho, soja e óleo de soja transgênicos não informavam em seus rótulos que os continham, ou seja, os ingredientes secundários não eram identificados. O órgão constatou procedimento similar no caso de gordura trans. Produtos que informavam não ter essa gordura a possuíam em seus ingredientes secundários. Outras constatações foram que 93% de produtos que alegavam ter aditivos nutricionais eram pobres nutritivamente e bebidas que indicavam ser zero açúcar, possuíam outras substâncias tão nocivas quanto o açúcar, como o sódio e o adoçante. 

O consumidor pode se sentir mal informado ou mesmo ludibriado numa série de situações. Muitos são os produtos alimentícios que não se sabe realmente o que são, incluindo os oferecidos como alimenticiamente corretos, alternativos em situações específicas, como a intolerância à lactose ou ao glúten, situações que poderiam ser evitadas também com a exclusão desses alimentos da dieta e inclusão de outros que os substituíssem, preferencialmente não industrializados. Entre esses produtos alimentícios estão o café descafeinado, o leite sem lactose (açúcar do leite), o leite desnatado, o leite desnatado, sem lactose e gordura trans, as bebidas gaseificadas zero açúcar, o óleo composto de soja e oliva. As informações nos rótulos dos produtos divulgam pouco, às vezes nada, de seus processos industriais No caso dos elementos retirados, parece não ser conveniente informar ao consumidor que o café é descafeinado por meio de solventes que também são usados na produção de vernizes e tintas. Esses solventes, inclusive, são usados como aditivos de outros alimentos industrializados. Também não parece ser de interesse da indústria alimentícia esclarecer que o leite sem lactose é uma expressão não exata para representar os produtos lácteos que têm a sua constituição transformada, ou seja: recebem a enzima lactase em sua fórmula para quebrar as moléculas da lactose, que o organismo humano não mais produz ou produz em níveis muito baixos. Desse modo, a lactose não é, de fato, retirada do processo industrial. Os leites desnatados e semidesnatados, por sua vez, possuem menor teor de gordura em comparação ao integral, embora isso não signifique que a quantidade de proteínas que contêm não possa contribuir para aumento de peso.       

Enquanto surgem os alternativos, com ingredientes a menos e os produtos mistos, outros apresentam excesso de ingredientes processados em sua composição. A lasanha congelada, por exemplo, segundo a matéria o que tem nos alimentos industrializados que consumimos?, publicada no site noticias.uol.br (2017), possui amido modificado, margarina, queijo processado gorgonzola, queijo provolone, requeijão cremoso, queijo parmesão, açúcar, sal, soro de leite, fécula de mandioca, leite concentrado pasteurizado, ácido lático, creme de milho, gordura vegetal de soja, extrato de levedura,  aroma idêntico ao natural de queijo,  aroma natural de galinha,  corante idêntico ao natural caramelo IV,  farinha de arroz, farinha de trigo,  frango, aroma idêntico ao natural de frango, aroma idêntico ao natural de manteiga, clara de ovo, produto processado à base de massa para elaborar queijo, mussarela com gordura vegetal, concentrado proteico de leite, concentrado proteico de soro, além de quatro aditivos com sódio: polifosfato de sódio, sorbato de sódio, cloreto de sódio e glutamato monossódico, usados para estabilizar a textura do alimento e prolongar a sua vida útil. Ao leite UHT integral são adicionados três aditivos à base de sódio: monofosfato, difosfato, trifosfato de sódio, que funcionam como estabilizantes para evitar a sedimentação do produto. O acréscimo de sal no preparo de uma refeição com leite, portanto, é mais um excesso que o organismo recebe. Excessos também ocorrem com a sacarose (açúcar) ou similar que consta na composição de diferentes produtos. Os mais comuns são a maltodextrina, produzida a partir de hidrólise (quebra de moléculas) de amido de milho, que tem rápida absorção pelo organismo humano, contribuindo para um aumento de insulina na corrente sanguínea, e os flavorizantes os quais dão sabor doce a produtos lácteos para crianças, criando-lhes o hábito de consumir alimentos doces. O suco industrializado contém açúcar e maltodextrina ao mesmo tempo, além da frutose, o açúcar próprio da fruta.  

A indústria alimentícia tem criado cada vez mais a ilusão de variedade. Desse modo, acaba-se comendo o mesmo alimento com a impressão de que se está variando as refeições ou fazendo uma escolha personalizada. Os produtores, para entregar ao comércio bandejas com várias unidades de coxas ou miúdos de frango precisam criar mais e em menos tempo. O que é cômodo para o consumidor no balcão frigorífico do supermercado faz parte de uma cadeia complexa que tem de ser altamente produtiva. A alta taxa de produção poderia alimentar a todos. Infelizmente não é o que ocorre. O desperdício de alimento industrializado no Brasil é da ordem de 30%, segundo dados do IBGE.




No processo de embalagem a vácuo, estão associadas a praticidade para o consumidor, a conservação do alimento e a rentabilidade para o produtor. O empacotamento a vácuo estende a vida útil dos produtos em uma quantidade de tempo de 3 a 5 vezes maior que o normal, mas para que isso aconteça é necessário que os produtos sejam mantidos congelados. Desse modo, mesmo alimentos perecíveis podem ser estocados em maior quantidade. Uma praticidade leva à outra. As carnes congeladas tendem a se tornar menos tenras, pois o congelamento enrijece as suas fibras. A praticidade do congelado leva à praticidade do amaciante artificial.    O processo de embalagem é essencial para os produtos alimentícios processados e fracionados. A vantagem propalada das embalagens é a eliminação de intoxicação alimentar. Ironicamente o produto pode já vir contaminado da produção e ao ser embalado no processo a vácuo poderá absorver ainda resíduos tóxicos plásticos no processo de selagem do invólucro, que é por meio de aquecimento. O produto embalado a vácuo fica com o componente químico da embalagem mais próximo do alimento, quase aderindo a ele.

Os aspectos revelados sobre o conteúdo dos alimentos industrializados podem receber a justificativa do beneficiamento, da conservação, qualidade e diversificação, mas os casos de fraude escapam totalmente a essa justificativa. Manipulações grosseiras são ocultas nas perfeições das embalagens. O leite de vaca está entre os produtos mais adulterados no mundo, segundo estudo publicado no Journal of Food Protection. E há mais adulterações: carne de cavalo acrescentada à carne bovina moída, carne bovina misturada com carne de outras espécies, proteína de soja ou vísceras, frutos do mar vendidos como sendo de algumas espécies, mas pertencendo a outras, xarope de milho diluído em mel; sumo de fruta comercializado como cem por cento de polpa com acréscimo de água, açúcar; água, ureia e detergente adicionados a produtos lácteos. Estudos compilados por pesquisadores da Food ChainID apontam outra lista extensa de produtos: azeite de oliva extra virgem, condimentos (pimenta em pó, pó de cúrcuma, açafrão) com corantes artificiais, folhas, cascas e farinha de milho, leite de vaca em pó, vodka, manteiga clarificada, chamada ghee, suco de laranja, vinho, uísque, licor, carne de frango, diferentes tipos de óleos vegetais.  

Certamente nem todos os produtos são falsificados, mas a falta de escrúpulos de empresas, com certificação de qualidade e licença para comercializar, ao adulterarem e falsificarem produtos é vergonhosa e covarde, pois o consumidor em geral não tem recursos técnicos para verificar a autenticidade dos produtos. As fraudes se caracterizam, de acordo com os pesquisadores, pela diluição ou substituição de ingredientes, sendo que 46% das adulterações foram classificadas como potencialmente perigosas para a saúde humana. Entre 34% e 60% dos produtos possuíam pelo menos uma adulteração. Facilidade para os grandes empreendedores do ramo da alimentação é produzir muito em menor tempo para obter grandes lucros, pois esses lucros suplantam com folga os custos. Para isso, necessitam de demanda. A demanda, inclusive, impulsiona a fraude. Quanto mais os produtos industrializados são procurados por causa de sua praticidade, mais são alvos de fraudes.

O quadro geral da alimentação industrializada é preocupante e não é ocultado. As informações estão nos veículos de comunicação (algumas controladas ou atenuadas pelo filtro do patrocínio), as denúncias surgem frequentemente. Por isso, o esforço dos produtores em oferecer alternativas, divulgando e oferecendo o alimento integral, original natural. A situação é tão ostensiva que mesmo pequenos produtores, em feiras locais, de produtos orgânicos, precisam alardear em seus pregões que o que vendem é natural, original. Pagamos cada vez mais caro pelo rótulo natural, original, tradicional ou orgânico em produtos industrializados, pagando, ao mesmo tempo, pelo beneficiamento e embalagem. Na comida congelada paga-se o preço do produto e do gelo, na comida dita saudável, paga-se, muitas vezes, apenas a simulação. Há cada vez mais facilidade na forma de pagar e os produtos estão cada vez mais caros. Os preços e a  dita qualidade são claramente segmentados por classes. São barbaramente segmentados porque o que se está demonstrando é que aqueles que não podem pagar mais podem se nutrir mal, contaminar-se e adoecer. Isso é aceito como normal por alguns que podem escolher consumir melhores produtos e por muitos que não têm escolha. Mesmo pagando mais caro, é possível ser enganado pela simulação de produtos, como falsos ovos caipiras, falsos pães integrais. Marina Colassanti é autora, numa crônica, de uma frase muito apropriada para esse estado de conformação humana: “Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia” (In: Eu sei, mas não devia..., Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29.10. 1972).


sexta-feira, 19 de julho de 2024

DO FESTIVAL DE BESTEIRAS AO FESTIVAL DE IDIOTICES: UM PASSO APENAS

                                                                                                                   Isaac Warden Lewis

 

O cronista Stanilau Ponte Preta (1923-1968) escreveu o livro “Festival de besteira que assola o país”, informando sobre a hegemonia de besteiras que o povo brasileiro era capaz de produzir. Infelizmente suas crônicas não produziram efeito educativo sobre a maioria da população brasileira que, no século vinte e um, regrediu para produzir Festival de idiotices em todas as áreas do conhecimento, além de cultivar orgulhosamente a pandemia da ignorância juntamente com o Corona vírus. As áreas mais afetadas foram a Política, a Educação, as Ciências Humanas, a Ciência Jurídica, a Medicina (alguns médicos tornaram-se curandeiros ou charlatães. Muitos estudiosos esqueceram que sem mulheres, não haveria humanidade, humanismo, cultura. Isso é percebido na política nossa de cada dia, onde eleitores de todas as classes sociais (favorecidas e desfavorecidas), a maioria analfabeta funcional, elegeu, nas eleições de 2018 e 2022, candidatos que apresentavam níveis avançados de idiotia e de imbecilidade, confirmando a teoria do escritor latino Terêncio,  o qual afirmou que “um idiota sempre encontra outros mais idiotas que o admiram e o seguem”.

O Brasil vem seguindo há muito tempo os exemplos de outros países colonizados, como Uganda, Porto Rico e Haiti, pois os líderes políticos brancos, na sociedade brasileira, assemelham-se a Idi Amin, a famílias Ferdinand Marcos e Imelda Marcos, Papa Doc e Baby Doc e o povo que se comporta como os povos dos países citados, pois ama e adora políticos e empresários norte-americanos, além de acreditar em sua mitológica democracia falsa. Ainda há brasileiros que não acreditam que o território brasileiro constitui sede de uma nação bananeira. Pobres mortais.

Manau, 19 de julho de 2024.