quinta-feira, 22 de maio de 2025

(DE) CADÊNCIA

 

                                                                                                     Lucilene Gomes Lima

 

P

 

elo barulho do tecido se rasgando, ela calculou que o vestido se partira de cima a baixo. “Mais cedo ou mais tarde, isso aconteceria, Maria das Graça”’, pensou. Mas por que se chamava assim? Estava tão certa de seu infortúnio a ponto de resgatar o passado obscuro?

Chamava-se, de fato, Maria das Graças, mas mudou de nome e de vida para ser Josephine, a modelo refinada das passarelas. No tempo em que fora Maria das Graças nunca brilhara, nunca encantara plateias seletas, nunca conhecera o mundo da moda nem vestira os mais invejáveis vestidos, idealizados por geniais estilistas. Só ela sabia o que era nascer numa cidade do interior que apenas os mapas registram. Por isso, decidiu enterrar o passado. Preferiu fazer de conta que Maria das Graças nunca existira.

Então, por que se lembrar agora de que Josephine não era seu nome verdadeiro? Se tudo foi modificado para que não ficasse o mais leve sinal da existência de Maria das Graças. Mudaram-lhe a cor do cabelo, transformaram-lhe os traços do rosto, ensinaram-lhe um novo modo de falar, andar, comer, sorrir. E assim, aos poucos, ela esqueceu realmente quem era. Deslumbrou-se com o mundo da moda e passou a orientar-se somente por ele. Uma ou outra lembrança que lhe vinha da vida de outrora servia apenas para reforçar sua abjeção: a mãe chorando, debruçada à janela no dia em que ela partiu; a mãe, trajando aquele vestidinho de chita... como era triste e insignificante o mundo que ficava para trás.

Só, no camarim, buscava uma explicação para ter chegado ao ponto de descuido que chegara e, mais que tudo, buscava uma forma de salvar-se do vexame.

Calculava quanto custaria aquele vestido. Certamente não estava em jogo somente o valor em dinheiro. Sabia do temperamento do estilista que idealizara aquela peça. Ele jamais a perdoaria por tê-la destruído, menos ainda no dia em que pretendia expô-la como a grande sensação do desfile.

Não seria menor a humilhação que passaria perante as outras modelos. Sequer tinha argumentos para advogar em sua causa. Rasgara aquele vestido porque cometera o maior pecado que uma modelo poderia cometer – engordara.

Disfarçara o quanto pudera. Evitara ficar em trajes menores diante das outras a fim de que não notassem o seu corpo mais cheio. Inútil. Elas já deviam estar desconfiadas. Uma delas, inclusive, havia feito uma insinuação em forma de piada.

Indiferente ao seu drama, o desfile se inicia lá fora. Todas as modelos já estão perfiladas em frente a escada de acesso à passarela. Ela receberá a deixa para entrar por último, tática usada pelo estilista para causar maior suspense na plateia. O vestido que usa é a peça principal da coleção; falava-se pelos corredores que o estilista passara meses idealizando-o.

A fumaça produzida pelo gelo seco invade a passarela, criando uma atmosfera de mistério e, assim que se dispersa, a primeira modelo sobe, cadenciando o movimento do corpo. Seu rosto impassível lembra os dos manequins de cera das vitrines.

Josephine aguarda o momento de sua chamada. Pensa em fugir, mas não pode sair do camarim sem ser vista. Poderia, então, tentar explicar-se, buscar benevolência, compreensão. Entretanto, com o número expressivo de moças que tentam ocupar seu lugar, é pouco provável que lhe seja dada uma chance de explicação. Tais moças, com as medidas rigorosamente nos padrões, são capazes de qualquer coisa para terem uma chance de brilhar. Todas elas sonham subir as passarelas um dia e desse modo obter fama, sucesso e muito dinheiro.

Entretanto, o descarte também faz parte da carreira de uma modelo. Como qualquer produto, estão sujeitas a serem substituídas logo que se desgastem ou se tornem desinteressantes.

As modelos expõem o segundo traje da noite. Em breve, Josephine será chamada para sua entrada triunfal e única.

Ela permanece dento do camarim, a porta semiaberta, olhando o desenvolvimento do desfile, contando os minutos que lhe restam, temendo ouvir a deixa para sua entrada.

Nesses momentos que antecedem a sua desdita, antevê o futuro como um filme. Primeiramente, os contratos cancelados e o fechamento de todas as portas; depois, o retorno.

A mãe recebendo-a com o semblante de quem constata a vitória da experiência, a confirmação dos conselhos e das imprecações. E proferindo as mesmas recriminações banais. Ela sofrendo com a certeza de que se voltasse no auge da fama a acolhida seria diferente. A mãe seria, então, cúmplice de seu audacioso projeto, de sua ousada tentativa de romper o círculo em torno do horizonte pequeno e destacar-se para o mundo.

Resta-lhe saber o que levará da vida de glamour. Que significa, finalmente essa vida? Luzes, brilho, imagens. É para os outros uma imagem? Uma imagem nas capas de revistas, uma imagem na tela da televisão. Uma imagem que precisa ser alimentada continuamente de seu caráter ilusório. Sendo assim, nada poderá levar que pertença a esse mundo. A partir do momento em que se desligue dessa imagem, será apenas um ser comum, semelhante aos outros, semelhante, até, a sua mãe.

Do corredor vem a chamada inevitável. Ela respira fundo, sente-se suspensa no ar, não sente o próprio corpo. Nesse momento não há passado, não há futuro, só o receado presente.

Num estado de transe, dá alguns passos a caminho da escada. Não sabe por que caminha. Sente-se absolutamente indiferente em relação ao que vai fazer, mas seus pés se movimentam e ela vai subindo, degrau a degrau.

A plateia está em silêncio; ouve-se, ao fundo, uma música de tom exótico. Há uma excessiva claridade na passarela. Ela preferiria que tudo fosse escuridão. Os flashes das máquinas fotográficas começam a disparar antes mesmo que ela suba o último degrau.

E, logo, sem saber como chegou até ali, está sobre a passarela. Uma brisa fria lhe penetra no corpo pela extensão do vestido rasgado. Como uma vítima que olha para o algoz, ela lança um olhar de relance para o estilista. Ele parece estupefato.

Ela continua desfilando mecanicamente, julga-se ensandecida. Mas a plateia, num único gesto, transforma tudo. Aplaude vigorosamente, está embevecida, o que vê é deslumbrante.

O estilista é aclamado e sobe a passarela para receber os aplausos pela absoluta originalidade do modelo.   


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