terça-feira, 28 de janeiro de 2025

MEMÓRIAS DE ADORAÇÃO AO FOGO

                                                                                            Lucilene Gomes Lima 


Você não imagina como essas cenas da minha infância ainda estão vivas em minha memória. Lembro-me como se fosse hoje. Parece até que minha velha avó está me olhando com aquele seu jeito de deixar qualquer um amofinado. Se eu tinha medo dela? Claro que tinha.

Ela sempre me levava para o roçado nos dias em que ia fazer a coivara a fim de preparar a terra para a plantação de tabaco. Fazia uma grande fogueira. Uma coisa imensa para os meus olhos de criança. Eu passava um longo tempo a olhar para o fogo. O que via nele? Muitas coisas. Era superior e soberano como a minha avó. Pra mim, representava o mesmo que ela. Causava temor e admiração.

Minha avó era especialista em beliscões. Você acredita que eu ainda me lembro da dor intensa dos beliscões que ela me dava quando me recusava a tomar banho? Nunca lhe respondia malcriações, mas no meu pensamento eu a praguejava com os palavrões mais feios do mundo.

Depois, eu tinha remorso, ficava pensando se não era pecado desejar coisas tão feias para a minha avó. E ela sempre dizia que criança malcriada o diabo levava. Acho que era por isso que quase todas as noites eu sonhava que o diabo queria me levar. Como era o meu sonho? Era uma aflição danada. Parece que tudo estava acontecendo de verdade.

Você sabe como é a imagem do diabo? Num dos meus sonhos, ele apareceu com cabeça e patas de bode, pernas negras, escamas verdes, asas azuis, cabeça vermelha. Bicho pavoroso. Tinha uma força fora do comum.

Disse que ia me levar e começou a me arrastar. Eu me debati. Empreguei toda a resistência que pude para me soltar. O bicho não desistiu e tanto fez que...

Você ouviu? Esse é o meu neto, Quinzinho. Nunca sabe encontrar nada sem a minha ajuda. Aguarde um pouquinho que eu vou terminar de lhe contar como acabou o sonho.

Pronto. Já estou de volta. Em que parte eu parei? Isso mesmo. Você lembrou bem. Quando o diabo queria me levar.

Como estava contando, o bicho tinha vencido e já estava me levando para o inferno com ele, mas, nesse momento, sabe quem apareceu? Não, não foi Deus. Mas foi como se fosse.

Exatamente. Foi a minha avó. Ela apareceu toda de branco, cercada por chamas de fogo brilhantes, segurando uma cruz, e não sei com que forças me arrebatou das garras do monstro e me salvou.

Rezei muito quando acordei e venerei minha avó como se fosse santa. Depois que voltei a sentir a dor de seus beliscões, esqueci o sonho e tornei a desejar-lhe mal.

Não demorou muito e eu tive o mesmo sonho em que o diabo aparecia querendo me levar. Você já deve estar se perguntando se a minha avó me salvou. Isso eu conto depois. Primeiro, preciso contar toda a aflição que passei. Desta vez o sufoco foi maior.

Ao ver o bicho se aproximando, eu tentei escapar. Não consegui. Os meus pés não se moviam do chão. Eu não tinha forças para movimentar nenhum músculo do meu corpo. O que fiz? Fiquei parada e rezei. Rezei todos os pedaços de orações que eu sabia. Acho que rezei até coisa que nem era oração. Naquela hora, eu tinha de rezar qualquer coisa. Não teve reza que fizesse o bicho parar...

Está ouvindo? É o menino de novo. Espere só mais um pouquinho que eu vou saber o que ele está querendo.

Você está vendo como essas crianças dão trabalho? Bom, agora eu posso terminar de contar o sonho.

Como eu dizia, o bicho ia me dominar com suas garras quando, de repente, uma coisa muito estranha aconteceu. O bicho tinha se transformado na minha avó. Eu fiquei confusa. Achei que aquilo era uma arte do demônio para me iludir. Não era. Era a minha avó mesmo, e foi ela quem mais uma vez me salvou.

Passei a ter menos medo de sonhar com o demônio, confiando que minha avó sempre me salvaria. No mundo real, a história era diferente. Eu sempre a temia e até a odiava porque me aplicava castigos cruéis.

Uma noite, eu sonhei que o diabo saía das labaredas do fogo para me pegar. Tive medo. Esperei minha avó chegar para me salvar. Ela veio. E quando os dois se enfrentaram cara a cara...

Mas esse menino está-me chamando outra vez! Eu volto já.

Será que demorei muito? Você está ansioso para saber como acabou o sonho? Parei quando o diabo e minha avó estavam se enfrentando, não foi?

Você deve estar pensando que minha avó expulsou o diabo e mais uma vez me salvou. Não foi tão simples assim. De repente, diante dos meus olhos, os dois se juntaram num só corpo. Uma parte era a minha avó, outra era o diabo. Então, ficaram me puxando de um lado e de outro. Se eu me deixasse levar por minha avó, também acabava sendo levada pelo diabo. Lembro claramente desse momento de agonia, mas não lembro no que foi que resultou. Por que não me lembro? Ora, porque nesse momento eu acordei.  

* Publicado originalmente em O mestre e o discípulo (2000)

Nenhum comentário:

Postar um comentário