Lucilene Gomes Lima
Você não imagina como
essas cenas da minha infância ainda estão vivas em minha memória. Lembro-me
como se fosse hoje. Parece até que minha velha avó está me olhando com aquele
seu jeito de deixar qualquer um amofinado. Se eu tinha medo dela? Claro que
tinha.
Ela sempre me levava
para o roçado nos dias em que ia fazer a coivara a fim de preparar a terra para
a plantação de tabaco. Fazia uma grande fogueira. Uma coisa imensa para os meus
olhos de criança. Eu passava um longo tempo a olhar para o fogo. O que via
nele? Muitas coisas. Era superior e soberano como a minha avó. Pra mim,
representava o mesmo que ela. Causava temor e admiração.
Minha avó era
especialista em beliscões. Você acredita que eu ainda me lembro da dor intensa
dos beliscões que ela me dava quando me recusava a tomar banho? Nunca lhe
respondia malcriações, mas no meu pensamento eu a praguejava com os palavrões
mais feios do mundo.
Depois, eu tinha
remorso, ficava pensando se não era pecado desejar coisas tão feias para a
minha avó. E ela sempre dizia que criança malcriada o diabo levava. Acho que
era por isso que quase todas as noites eu sonhava que o diabo queria me levar.
Como era o meu sonho? Era uma aflição danada. Parece que tudo estava
acontecendo de verdade.
Você sabe como é a
imagem do diabo? Num dos meus sonhos, ele apareceu com cabeça e patas de bode,
pernas negras, escamas verdes, asas azuis, cabeça vermelha. Bicho pavoroso.
Tinha uma força fora do comum.
Disse que ia me levar
e começou a me arrastar. Eu me debati. Empreguei toda a resistência que pude
para me soltar. O bicho não desistiu e tanto fez que...
Você ouviu? Esse é o
meu neto, Quinzinho. Nunca sabe encontrar nada sem a minha ajuda. Aguarde um
pouquinho que eu vou terminar de lhe contar como acabou o sonho.
Pronto. Já estou de
volta. Em que parte eu parei? Isso mesmo. Você lembrou bem. Quando o diabo
queria me levar.
Como estava contando,
o bicho tinha vencido e já estava me levando para o inferno com ele, mas, nesse
momento, sabe quem apareceu? Não, não foi Deus. Mas foi como se fosse.
Exatamente. Foi a
minha avó. Ela apareceu toda de branco, cercada por chamas de fogo brilhantes,
segurando uma cruz, e não sei com que forças me arrebatou das garras do monstro
e me salvou.
Rezei muito quando
acordei e venerei minha avó como se fosse santa. Depois que voltei a sentir a
dor de seus beliscões, esqueci o sonho e tornei a desejar-lhe mal.
Não demorou muito e
eu tive o mesmo sonho em que o diabo aparecia querendo me levar. Você já deve
estar se perguntando se a minha avó me salvou. Isso eu conto depois. Primeiro, preciso
contar toda a aflição que passei. Desta vez o sufoco foi maior.
Ao ver o bicho se
aproximando, eu tentei escapar. Não consegui. Os meus pés não se moviam do
chão. Eu não tinha forças para movimentar nenhum músculo do meu corpo. O que
fiz? Fiquei parada e rezei. Rezei todos os pedaços de orações que eu sabia.
Acho que rezei até coisa que nem era oração. Naquela hora, eu tinha de rezar
qualquer coisa. Não teve reza que fizesse o bicho parar...
Está ouvindo? É o
menino de novo. Espere só mais um pouquinho que eu vou saber o que ele está
querendo.
Você está vendo como
essas crianças dão trabalho? Bom, agora eu posso terminar de contar o sonho.
Como eu dizia, o
bicho ia me dominar com suas garras quando, de repente, uma coisa muito estranha
aconteceu. O bicho tinha se transformado na minha avó. Eu fiquei confusa. Achei
que aquilo era uma arte do demônio para me iludir. Não era. Era a minha avó
mesmo, e foi ela quem mais uma vez me salvou.
Passei a ter menos
medo de sonhar com o demônio, confiando que minha avó sempre me salvaria. No
mundo real, a história era diferente. Eu sempre a temia e até a odiava porque
me aplicava castigos cruéis.
Uma noite, eu sonhei
que o diabo saía das labaredas do fogo para me pegar. Tive medo. Esperei minha
avó chegar para me salvar. Ela veio. E quando os dois se enfrentaram cara a
cara...
Mas esse menino
está-me chamando outra vez! Eu volto já.
Será que demorei
muito? Você está ansioso para saber como acabou o sonho? Parei quando o diabo e
minha avó estavam se enfrentando, não foi?
Você deve estar pensando que minha avó expulsou o diabo e mais uma vez me salvou. Não foi tão simples assim. De repente, diante dos meus olhos, os dois se juntaram num só corpo. Uma parte era a minha avó, outra era o diabo. Então, ficaram me puxando de um lado e de outro. Se eu me deixasse levar por minha avó, também acabava sendo levada pelo diabo. Lembro claramente desse momento de agonia, mas não lembro no que foi que resultou. Por que não me lembro? Ora, porque nesse momento eu acordei.
* Publicado originalmente em O mestre e o discípulo (2000)