Lucilene Gomes Lima
elo barulho do
tecido se rasgando, ela calculou que o vestido se partira de cima a baixo. “Mais
cedo ou mais tarde, isso aconteceria, Maria das Graça”’, pensou. Mas por que se
chamava assim? Estava tão certa de seu infortúnio a ponto de resgatar o passado
obscuro?
Chamava-se, de fato, Maria das Graças, mas mudou de nome e
de vida para ser Josephine, a modelo refinada das passarelas. No tempo em que
fora Maria das Graças nunca brilhara, nunca encantara plateias seletas, nunca
conhecera o mundo da moda nem vestira os mais invejáveis vestidos, idealizados
por geniais estilistas. Só ela sabia o que era nascer numa cidade do interior
que apenas os mapas registram. Por isso, decidiu enterrar o passado. Preferiu
fazer de conta que Maria das Graças nunca existira.
Então, por que se lembrar agora de que Josephine não era
seu nome verdadeiro? Se tudo foi modificado para que não ficasse o mais leve
sinal da existência de Maria das Graças. Mudaram-lhe a cor do cabelo,
transformaram-lhe os traços do rosto, ensinaram-lhe um novo modo de falar,
andar, comer, sorrir. E assim, aos poucos, ela esqueceu realmente quem era.
Deslumbrou-se com o mundo da moda e passou a orientar-se somente por ele. Uma
ou outra lembrança que lhe vinha da vida de outrora servia apenas para reforçar
sua abjeção: a mãe chorando, debruçada à janela no dia em que ela partiu; a
mãe, trajando aquele vestidinho de chita... como era triste e insignificante o
mundo que ficava para trás.
Só, no camarim, buscava uma explicação para ter chegado ao
ponto de descuido que chegara e, mais que tudo, buscava uma forma de salvar-se
do vexame.
Calculava quanto custaria aquele vestido. Certamente não
estava em jogo somente o valor em dinheiro. Sabia do temperamento do estilista
que idealizara aquela peça. Ele jamais a perdoaria por tê-la destruído, menos
ainda no dia em que pretendia expô-la como a grande sensação do desfile.
Não seria menor a humilhação que passaria perante as outras
modelos. Sequer tinha argumentos para advogar em sua causa. Rasgara aquele
vestido porque cometera o maior pecado que uma modelo poderia cometer –
engordara.
Disfarçara o quanto pudera. Evitara ficar em trajes menores
diante das outras a fim de que não notassem o seu corpo mais cheio. Inútil.
Elas já deviam estar desconfiadas. Uma delas, inclusive, havia feito uma
insinuação em forma de piada.
Indiferente ao seu drama, o desfile se inicia lá fora.
Todas as modelos já estão perfiladas em frente a escada de acesso à passarela.
Ela receberá a deixa para entrar por último, tática usada pelo estilista para
causar maior suspense na plateia. O vestido que usa é a peça principal da
coleção; falava-se pelos corredores que o estilista passara meses
idealizando-o.
A fumaça produzida pelo gelo seco invade a passarela,
criando uma atmosfera de mistério e, assim que se dispersa, a primeira modelo
sobe, cadenciando o movimento do corpo. Seu rosto impassível lembra os dos
manequins de cera das vitrines.
Josephine aguarda o momento de sua chamada. Pensa em fugir,
mas não pode sair do camarim sem ser vista. Poderia, então, tentar explicar-se,
buscar benevolência, compreensão. Entretanto, com o número expressivo de moças
que tentam ocupar seu lugar, é pouco provável que lhe seja dada uma chance de
explicação. Tais moças, com as medidas rigorosamente nos padrões, são capazes
de qualquer coisa para terem uma chance de brilhar. Todas elas sonham subir as
passarelas um dia e desse modo obter fama, sucesso e muito dinheiro.
Entretanto, o descarte também faz parte da carreira de uma
modelo. Como qualquer produto, estão sujeitas a serem substituídas logo que se
desgastem ou se tornem desinteressantes.
As modelos expõem o segundo traje da noite. Em breve,
Josephine será chamada para sua entrada triunfal e única.
Ela permanece dento do camarim, a porta semiaberta, olhando
o desenvolvimento do desfile, contando os minutos que lhe restam, temendo ouvir
a deixa para sua entrada.
Nesses momentos que antecedem a sua desdita, antevê o
futuro como um filme. Primeiramente, os contratos cancelados e o fechamento de
todas as portas; depois, o retorno.
A mãe recebendo-a com o semblante de quem constata a
vitória da experiência, a confirmação dos conselhos e das imprecações. E
proferindo as mesmas recriminações banais. Ela sofrendo com a certeza de que se
voltasse no auge da fama a acolhida seria diferente. A mãe seria, então,
cúmplice de seu audacioso projeto, de sua ousada tentativa de romper o círculo
em torno do horizonte pequeno e destacar-se para o mundo.
Resta-lhe saber o que levará da vida de glamour. Que
significa, finalmente essa vida? Luzes, brilho, imagens. É para os outros uma
imagem? Uma imagem nas capas de revistas, uma imagem na tela da televisão. Uma
imagem que precisa ser alimentada continuamente de seu caráter ilusório. Sendo
assim, nada poderá levar que pertença a esse mundo. A partir do momento em que
se desligue dessa imagem, será apenas um ser comum, semelhante aos outros,
semelhante, até, a sua mãe.
Do corredor vem a chamada inevitável. Ela respira fundo,
sente-se suspensa no ar, não sente o próprio corpo. Nesse momento não há
passado, não há futuro, só o receado presente.
Num estado de transe, dá alguns passos a caminho da escada.
Não sabe por que caminha. Sente-se absolutamente indiferente em relação ao que
vai fazer, mas seus pés se movimentam e ela vai subindo, degrau a degrau.
A plateia está em silêncio; ouve-se, ao fundo, uma música
de tom exótico. Há uma excessiva claridade na passarela. Ela preferiria que
tudo fosse escuridão. Os flashes das máquinas fotográficas começam a
disparar antes mesmo que ela suba o último degrau.
E, logo, sem saber como chegou até ali, está sobre a
passarela. Uma brisa fria lhe penetra no corpo pela extensão do vestido
rasgado. Como uma vítima que olha para o algoz, ela lança um olhar de relance
para o estilista. Ele parece estupefato.
Ela continua desfilando mecanicamente, julga-se
ensandecida. Mas a plateia, num único gesto, transforma tudo. Aplaude
vigorosamente, está embevecida, o que vê é deslumbrante.
O estilista é aclamado e sobe a passarela para receber os
aplausos pela absoluta originalidade do modelo.