quarta-feira, 24 de maio de 2023

ESPANHA E SUA CULTURA SUBCOLONIZADA

                                                                                                              Isaac Warden Lewis

 

O movimento de descolonização iniciado pot autores/autoras negrosnegras, mulatos/mulatas, brancos/brancas e nativos/nativas dos continentes da América, África e da Ásia foram extremamente importantes porque esses autores e essas autoras retrataram primordialmente os colonizadores e também a política dos países colonizadores nas colônias, como sugere o título do livro de Albert Memmi, “ O retrato do colonizado precedido do retrato do colonizador” (2007). Angela Davis, em seu livro “Mulheres, raça e classe”(2016). Frantz Fanon, em “Os condenados da terra” e Aimé Césaire, em “Diário de um retorno ao país natal (2012) e Discurso sobre o colonialismo (2020 realizaram a mesma análise em seus livros. A história da invasão dos territórios dos continentes da América, África e Ásia por europeus foi apresentada, desde o início do século XVI, como uma epopeia magistral realizada por seres humanos superiores a serviço de países adiantados, civilizados, cristãos. O livro de Luís de Camões, “Os Lusíadas”, por exemplo, passa essa mensagem. Essa pseudo-epopéia abstrai o fato de que  os países da península ibérica viviam e permaneceram na Baixa Idade Média por muitos e muitos anos, subcolonizados por países do norte da Europa que realizavam desenvolvimentos econômicos (revolução industrial, revolução comercial, revolução agrícola); culturais, científicos (Renasccença, Iluminismo e políticos (Revolução Francesa).

Atualmente, textos escritos por descendentes de portugueses que viveram na África denunciam que seus pais e avós, imigrantes emergenciais, tratavam desrespeitosamente  os nativos dos países que os receberam. Esses autores, perplexos, descobriram os preconceitos, racismos e xenofobismo praticados contra eles por serem portugueses nascidos na África. A prática de racismo no século XXI por europeus de países subcolonizados, como Portugal e Espanha, não surpreende tanto os nativos dos continentes invadidos quanto os cidadãos dos países colonizadores, porque os costumes, a política, a educação dos colonizadores são extremamente semelhantes em todos os continentes. Os políticos, os militares, os funcionários públicos e os religiosos corruptos e genocidas foram produzidos pelos reinados da Espanha e de Portugal com financiamentos de capitalistas de países do norte da Europa, mais desenvolvidos, interessados em açambarcar e monopolizar terras dos nativos dos países invadidos. No Brasil, alguns imigrantes de países subccolonizados e seus descendentes comportaram-se preconceituosamente contra os nativos, mesmo tendo fugido da fome e da miséria de seus países de origem. A história  das lutas e de resistência dos negros no Brasil estão registradas por vários autores: Abdias Nascimento, “Genocídio do negro brasileiro (2018) e “Quilombismo” ((2019); Beatriz Nascimento “Uma história feita por mãos negras” (2018); Clovis Moura “ “Quilombos: Resistência ao escravismo”  (2020), Jessé de Souza “ Como o racismo criou o Brasi(2021) e Joel Rufino de Souza, “Saber negro” ( 2015)

Também os nativos do Brasil têm registrado suas reflexões sobre a invasão dos seus territórios, assim como dos crimes praticados pelos invasores portugueses e luso-brasileiros contra eles.Ailton Krenak publicou “Futuro ancestral” e  “A vida não é útil”; Kaká Werá Jecupé publicou “A terra dos mil povos: a história indígena contada por um índio”; Daniel Munduruku publicou “O Karaíba”.; Diakuru publicou “Os ensinamentos que não se esquecem”.

Os constrangimentos sofridos pelo jogador brasileiro Vinicius Júnior faz parte do mesmo processo da chegada dos colonizadores genocidas Herman Cortez ao México e Francisco Pizarro ao Peru a partir do século XVI. Os torcedores dos times espanhóis foram instruídos para agirem como bestas, como qualquer torcedor de países colonizados ou subcolonizados.

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Maio, 2023.

domingo, 21 de maio de 2023

A CONCRETUDE HUMANA NA OBRA DE JOÂO CABRAL DE MELO NETO

                                                                                                    Lucilene Gomes Lima 


                                                                                                                                                                                     “E não há melhor resposta

                                                                                                                                                                                      que o espetáculo da vida”

(Mor                                                                                                                                                                             (Morte e vida severina)

 

É comum João Cabral de Melo Neto ser qualificado como poeta seco, antilírico. Essas denominações advêm de seu próprio posicionamento ante o ato de fazer poesia. “O poeta é um escritor que tem determinada maneira de assumir a palavra”, disse. “O poema com mão certa, pouca e extrema, sem perfumar a flor – Não sou poeta inspirado”, declarou. Segundo suas palavras, criou uma poesia com tessitura áspera, uma poesia em que o leitor tivesse de pensar para passar de uma palavra a outra. João Cabral disse ter rejeitado o automatismo do soneto desde os tempos de escola. Confessou que na época em que era obrigado a decorá-los tinha horror à literatura. Avesso ao sentimentalismo, João Cabral pensava que o esforço do poeta era dizer coisas abstratas através de uma linguagem concreta. Num poema, falou do tédio das quatro paredes, dos quatro pontos cardeais, quer dizer, do já estabelecido, da não possibilidade inventiva. Seu objetivo era trabalhar a memória e a imaginação.

João Cabral não ocultou o fato de que a poesia não foi sua primeira opção de escrita. Disse que seu ideal era ser crítico literário e foi ser poeta porque “achou que era mais fácil”. Depois descobriu que “a poesia era muito mais difícil do que a crítica literária”, mas, de certa forma, somou as duas coisas quando declarou que escrever poesia lhe dava o mesmo trabalho que escrever ensaio. A sua noção de ser a poesia mais difícil pode ter vindo do lidar com a conotação da linguagem.

Declarações como “Eu não sinto nenhuma necessidade de escrever, mas sinto uma necessidade enorme de ler”, quando não podia mais ler por problemas de visão, indicam o quanto era cerebral, daí que aquilo que destinava ao leitor tivesse sido meticulosamente construído. Nesse aspecto, há em João Cabral a negação do espontaneísmo surrealista.

Toda aridez pontuada pelo poeta, sua recusa do sentimentalismo ao afirmar que o que criava poeticamente não tinha relação com sua emoção, pois criava emoção para os outros, não apaga o humanismo em sua poesia que, destaca Merquior, é regida por uma clara referencialidade à contingência humana (Jornal do Brasil, 9 de fevereiro de 1980). O nobre compromisso de João Cabral com a realidade, enfatizado pelo crítico, é referendado pelo poeta quando destaca: “A primeira obrigação do sujeito que nasceu com aptidão para a palavra é dizer a verdade.”

João Cabral, comparativamente a Shakespeare, revela uma reflexão ímpar pelas coisas terrenas, humanas. Shakespeare faz Hamlet declarar: Que obra-prima é o homem! Quão nobre na razão: quão infinito na faculdade, na forma e no movimento, quão expressivo e admirável; na ação, quão parecido com um anjo; na compreensão, quão parecido com um deus, a beleza do mundo, o modelo dos animais, e ainda assim, para mim, o que é esta quintessência do pó ? (Trad. I. W. Lewis)

João Cabral, em “Morte e vida severina”, também afirma um valor da vida humana na criança franzina que tem “a marca da humana oficina”, nas suas mãos cujo trabalho humano já se advinha. Assim como Shakespeare opõe toda a grandeza humana ao seu mísero destino na terra – a quintessência do pó, a criança severina é uma essência frágil: magra, pálida, genza, pequena, setemesinha. A apologia ao ser humano em João Cabral é a resistência, o apego à vida. Embora Morte e vida severina seja reconhecido como o poema mais popular de João Cabral, ele não se dá tão facilmente à interpretação, nele também há um terreno árido que reflete todo o esforço do poeta para, através da “materialidade” das palavras, das coisas que elas nomeiam, falar do abstrato através do concreto. Se, para João Cabral, “Morte e vida severina” é “a coisa que escreveu com maior facilidade” é porque o espaço enfocado era seu terreno geográfico e simbólico. As materialidades que compõem a tessitura do poema, entre elas o ser severino, o coqueiro, o avelós, a palmatória, o canavial, a sala, a porta, o mar, estão entrelaçadas a conceitos como vida, resistência, esperança, liberdade, começo, fim, novo, velho, beleza, feiúra.

A aridez interpretativa que se apresenta em versos de poemas, como “Um cão sem plumas”:

Aquele rio

era como um cão sem plumas

nada sabia da chuva azul,

da fonte cor-de-rosa,

da água do copo de água

da água de cântaro,

dos peixes de água,

da brisa na água. 

nos quais o poeta associa impossibilidades – o rio saber (conceituar) e saber o que não existe (a chuva azul, a fonte cor-de-rosa) constituindo uma equivalência com o cão que também não pode ser desprovido do que não existe nele (as plumas) não está tão distante das imagens construídas em “Morte e vida severina”. A vida severina precedida pela morte (conforme o título do poema) é tão imponderável quanto o rio que sabe ou o cão sem plumas. A vida severina, o coqueiro franzino que se mantém firme na areia movediça, alagada pela maré, o avelós, planta desprovida de folhas, mas verde no agreste de cinzas, a palmatória, outra planta desértica que acumula água, na “caatinga sem saliva” e põe flores belas, tornam-se “sim numa sala negativa”, porta abrindo-se em mais saídas”. São todos existências improváveis, transformadas em imagens de beleza no poema.

No núcleo criativo de João Cabral, a comparação faz-se constantemente presente, intercambiando o concreto e o abstrato:

Espesso

como uma maçã é espessa.

Como uma maçã

é muito mais espessa

Se um homem a come

do que se um homem a vê.

Como é ainda mais espessa

se a fome a come

 

Como é ainda muito mais espessa

se não a pode comer

a fome que a vê.

             (Discurso do Capibaribe).

 

Uma coisa que existe é real, mas vivenciá-la, ter a necessidade dela ou sentir a sua falta é que a torna espessa (essencial). O concreto (ruas, praças, casas) e o abstrato (a lembrança) chegam mesmo a se fundir em “O profissional da memória”:

Já não lembrava do que

se injetou em tal esquina,

que fonte o lembrava dela,

que gesto dela, qual rima.

 

                                               Mas o que perdeu de exato

de outra forma recupera:

que hoje qualquer coisa de uma

traz da outra sua atmosfera.


Em “A educação pela pedra”:

No sertão a pedra não sabe lecionar,

E se lecionasse, não ensinaria nada;

Lá não se aprende a pedra: lá a pedra,

Uma pedra de nascença, entranha a alma.


Ou em “Fábula de um arquiteto”:

O arquiteto: o que abre para o homem

(tudo se sanearia desde casas abertas)

portas por – onde, jamais portas – contra,

por onde, livres: ar luz razão certa


Imagens presentes em outros poemas são comparáveis às imagens em “Morte e vida severina” na alternância de fatores extremos (morte-vida/vírus-vacina) ou nas contingências do humano que aproximam o retirante nordestino e o toureiro sevilhano:

A cicatriz não tenho mais;

o inoculado, tenho ainda,

nunca soube e se o inoculado

(então) é vírus ou vacina

                      (Menino de engenho)

 

o de nervos de madeira,

de punhos secos de fibra

o de figura de lenha

lenha seca de caatinga,

o que melhor calculava

o fluido aceiro da vida,

o que com mais precisão

roçava a morte em sua fímbria.

                          (Alguns toureiros)

 

Há uma beleza em “Morte e vida severina”. Não a aparente, limitada, que tanto se cultua contemporaneamente. “Morte e vida severina” expressa uma beleza imagética na resistência da vida sobre a adversidade. Na descrição da formosura da criança severina, as comparações se complexificam, criando um lógica inversa – o novo contagia o velho, o sangue novo corrompe a anemia, a vida nova e sadia infecciona a miséria. Essa é a síntese dialética de “Morte e vida severina”.