sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A CANOA DE LUTO


                                                                                                 Lucilene Gomes Lima

Quando o SARS-CoV 2 começou a grassar pelo mundo, ouvi de um habitante de Manaus, capital do Amazonas, que aqui ele não se criava. Há quase um ano tem-se comprovado que isso era um engano. O vírus atingiu Manaus e o Amazonas como um todo. Chegou à ilha de Saracá ou Silves, como é mais comumente conhecida. A pandemia do SARS-Cov 2 acentuou indisfarçáveis pontos problemáticos do sistema capitalista - a superpopulação concentrada nos grandes centros urbanos, a alimentação de má qualidade, o mau gerenciamento dos recursos físicos e humanos no sistema de saúde, a desigualdade social.

A pequena vila de Silves não pode incluir-se em todas essas características. A ideia de cidade é muito precária e incipiente. Os seus habitantes, e neles se incluem os galináceos, os cães e as aves de rapina, como os urubus, são indiferentes ao modo de vida civilizacional humano. Os cães vivem a dormir sossegados nas ruas porque ignoram o tráfego de veículos, que são poucos.  Os galináceos ciscam à vontade pelos quintais, não têm sua liberdade tolhida e nem são o prato principal dos habitantes humanos, que ainda podem se alimentar de peixe por eles mesmos pescados, apesar de, às vezes, comerem a comida ruim, embutida, enlatada, congelada da cidade. A divisão dos terrenos em Silves não obedece à geometria triangular dos terrenos das capitais urbanas, os habitantes talvez ignorem o que seja propriedade privada. A maioria dos terrenos não tem muros que separem uma casa de outra ou portões que estabeleçam aos estranhos a privacidade dos moradores, quase todos os moradores se conhecem ou são aparentados. Não chegou à ilha a violência, como ela se apresenta nos grandes contextos urbanos, apesar de ter chegado o barato dos entorpecentes. Os modismos de massa e a alienação chegaram com a televisão. A esperança não vem do lago Saracá vem, parafraseando uma canção, das antenas de tv. “A arte de viver da fé. Só não se sabe fé em quê”.

Todos os dias os habitantes da ilha de Saracá cumprem os mesmos rituais: pescam, nadam e alguns brincam na praia reduzida do período de enchente. Um dia, porém, desses anos pandêmicos de 2020/21, a prainha ficou deserta, sem risos, vozerio de seus frenquentadores esparsos. Na prainha só restou uma canoa sem piloto, sem aquele que lhe dava função, uma das vidas ceifadas pelo mal. Uma canoa vazia, de luto, como todo o Amazonas pego de surpresa com a pandemia, mas ainda brincando com a morte.


A civilização, nos termos em que a engendra o corrupto sistema capitalista, chega de alguma forma ao vasto Amazonas, com a política rasteira de período eleitoral, com a catequese cultural representada nas estátuas de santos que ornamentam as praças das vilas amazônicas, com a máquina pública apadrinhada, com a discrepância entre a estrutura física administrativa e o serviço público precário. A civilização traz também os males globais. É uma evidência histórica que os vírus sempre existiram entre os seres humanos, mas é falso concluir que as epidemias são naturais. Uma pandemia é consequência dos gradativos processos coloniais humanos. Como afirma Alfred W. Crosby, em seu livro Imperialismo ecológico: “[...] o maior desastre demográfico do mundo foi iniciado por Colombo, Cook e outros navegadores [...]” (2011, p. 218). A pandemia é de complexo controle no mundo globalizado à medida que já não há mais lugar isolado.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

CRÔNICA DE UM PAÍS COLONIZADO

                                                                                                                Isaac Warden Lewis

Nos países colonizados, muitas pessoas ficam perplexas ao tomarem conhecimento de que alguns indivíduos se utilizam de suas condições favorecidas para usufruírem de vantagens, benefícios, privilégios como se ainda vivêssemos em um regime colonial onde poucas pessoas detinham direitos, privilégios às custas da carência e do sacrifício da grande maioria da população desfavorecida. O mais surpreendente é que esses indivíduos das classes favorecidas declaram continuamente que vivemos em um estado democrático de direito. Isso ocorre porque esses indivíduos frequentaram escolas, faculdades e até universidades onde aprenderam que deveriam estudar saberes técnico-profissionais para atuarem na sociedade sem refletirem que sociedade é essa onde irão atuar? Que saber técnico irão aprender? Como  se desenvolveram a sociedade e os saberes técnicos? Para que servem os saberes técnicos na sociedade onde irão atuar? Ademais não se interessam em saber se vivemos em um estado democrático de direito ou em um estado burocrático de direito. Como surgiu o estado democrático de direito e como surgiu o estado burocrático de direito? Esses egressos de nossas escolas e faculdades supõem-se civilizados, seres humanos superiores, mas, na realidade, agem e vivem como a maioria dos animais domésticos e selvagens. Por exemplo, as galinhas e os galos nascem pintinhos, crescem ciscando o chão em busca de seus alimentos. Não se perguntam se amanhã haverá chão, não se preocupam em saber como surgiu a terra onde vivem, não precisam de respostas fáceis elaboradas por sacerdotes na pré-história e, muito menos, lhes interessam saber se alguns cientistas descobriram fatos que refutaram os falsos conhecimentos propagados pelos sacerdotes. As galinhas põem ovos, chocam seus ovos e quando nascem os pintinhos, elas caminham pela terra ciscando, alimentando-se de minúsculos animais, os pintinhos, por sua vez, aprendem a fazer as mesmas coisas para se tornarem galos ou galinhas. Esses animais não precisam de um estado burocrático de direito, camuflado de estado democrático de direito, para se beneficiarem de vantagens indevidas.

No mundo antigo, o estado burocrático foi modelado para garantir os direitos e os interesses dos grupos favorecidos e, ao mesmo tempo, negar direitos para a grande maioria das classes desfavorecidas (de fato, as classes trabalhadoras) e também desconsiderar os interesses .dessas classes. A sociedade indiana antiga constituía um exemplo em que as castas favorecidas usufruíam da exploração do trabalho da maioria da população desfavorecida, que vivia eternamente empobrecida. No século VI a. C., um brâmane, chamado Sidarta Gautama, o Buda, depois de refletir sobre a miséria em que vivia a maioria da população, concluiu que todos os seres humanos eram iguais, propondo a abolição do sistema de castas privilegiadas e de castas desfavorecidas. Entretanto a ideia e a prática da desigualdade e  injustiça continuaram prevalecendo no mundo (incluindo Grécia, Roma, Judeia), onde as concepções religiosas orientavam o comportamento social de suas populações tanto para o bem quanto para o mal. As sociedades cristãs e muçulmanas adotaram e sintetizaram os rituais e os princípios preconceituosos e discriminatórios das religiões antigas (tanto as primitivas quanto as pré-históricas). Essas concepções podem ser assimiladas em obras literárias. Na Grécia Antiga, Ésquilo (525-456 a. C.) e Sófocles (495-406 a. C.) produziram tragédias nas quais os destinos dos personagens eram determinados pelos deuses. Vale ressaltar que alguns autores discordaram disso. Menandro (342-290 a. C.), por exemplo, elaborou obras literárias, ressaltando que os personagens são responsáveis pela sua felicidade ou infelicidade. Na Itália, no século XIV, Bocaccio, no livro Decamerão, elaborou uma série de contos em que os personagens são responsáveis por suas vicissitudes ou idiossincrasias.

A partir do século XIV, vários estudiosos começaram a refletir sobre os conhecimentos herdados das civilizações antigas, contruíram novos métodos epistemológicos para construção e aprimoramento dos conhecimentos humanos. Aprendemos que os estados burocráticos de direito surgiram no período de transição da pré-história para os períodos históricos quando os seres humanos decidiram dividir as tarefas necessárias para a sobrevivência da comunidade. Surgiram as atividades específicas de pescadores, pastores, caçadores, coletores de frutas etc. Essa divisão trouxe enriquecimento para várias coletividades, havendo, então, necessidade de outras divisões de tarefas. O acúmulo de produtos tornou necessária a preparação de pessoas para controlar e dividir os produtos de acordo com as necessidades de cada pessoa ou de cada grupo de pessoas. Para guardar e proteger os produtos de serem saqueados por grupos humanos, foi necessário que guerreiros fossem designados para defenderem a produção da coletividade. Depois de algum tempo, surgiu a necessidade de coordenar ou administrar todas as tarefas da coletividade. Surgiram os faraós, os comandantes, os reis, os chefes etc. A divisão mais estrutural ocorrida nesse período foi a divisão do trabalho mental do trabalho manual  Surgiram os sacerdotes, especializados em explicar o destino, o bem, o mal, a tragédia, a fatalidade produzidos pelas divindades do bem ou do mal. Tais sacerdotes se autodenominaram representantes ou filhos dessas divindades.  Nesse período, alguns coordenadores e sacerdotes começaram a administrar os bens coletivos como se fossem seus bens particulares e começaram a inventar leis, mandamentos, diretrizes para serem obedecidos pelas classes desfavorecidas, declarando que tais leis, mandamentos  e diretrizes foram determinados por alguma divindade superior para o bem de todos, de tal sorte que as vantagens, benefícios e privilégios eram acessíveis às classes favorecidas dirigentes, enquanto que as classes trabalhadoras desfavorecidas eram destituídas de qualquer direito. A sociedade humana começou a tornar-se complexa.

Vários estudiosos começaram a questionar sobre a origem da desigualdade e injustiça nas sociedades humanas. Logo surgiram propostas para abolir as discriminações entre os seres humanos. Depois de muitos debates (como os escritos produzidos pelos enciclopedistas franceses) e combates (como as revoluções ocorridas na Inglaterra e na França), novas organizações sociais foram projetadas para os seres humanos. Consensualmente, os revolucionários decidiram pelo estabelecimento de um estado democrático de direito que considerasse a igualdade de todos os seres humanos e o direito de todos à liberdade, abolindo-se os estados burocráticos que consideravam os interesses e privilégios das classes favorecidas. Nos países colonizados (o Brasil, em especial), os objetivos dessas lutas foram totalmente distorcidos pelas classes favorecidas (colonos, latifundiários, senhores escravagistas). Ficou claro, para a maioria das pessoas das classes desfavorecidas que a democracia, a liberdade, os direitos não são dádivas, mas objeto constante de luta, pois o bem estar coletivo deve ser conquistado cotidianamente através de lutas. É da natureza das classes favorecidas instrumentalizarem as leis e as instituições do estado para favorecer seus interesses. Desse modo, não devemos ficar perplexos com as atitudes do prefeito de Manaus e das médicas recém formadas em distorcerem os princípios de prioridades para vacinação durante a pandemia de covid-19 (janeiro de 2021) para se apropriarem do imunizante como se fossem de sua propriedade. Faltou a imprensa informar (e isso sempre falta) em que instituições essas médicas estudaram?

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Isaac Warden Lewis é professor aposentado da Faculdade de Educação/UFAM