Isaac Warden Lewis
Nos países
colonizados, muitas pessoas ficam perplexas ao tomarem conhecimento de que
alguns indivíduos se utilizam de suas condições favorecidas para usufruírem de
vantagens, benefícios, privilégios como se ainda vivêssemos em um regime
colonial onde poucas pessoas detinham direitos, privilégios às custas da
carência e do sacrifício da grande maioria da população desfavorecida. O mais surpreendente
é que esses indivíduos das classes favorecidas declaram continuamente que
vivemos em um estado democrático de direito. Isso ocorre porque esses
indivíduos frequentaram escolas, faculdades e até universidades onde
aprenderam que deveriam estudar saberes técnico-profissionais para atuarem na
sociedade sem refletirem que sociedade é essa onde irão atuar? Que saber
técnico irão aprender? Como se
desenvolveram a sociedade e os saberes técnicos? Para que servem os saberes
técnicos na sociedade onde irão atuar? Ademais não se interessam em saber se
vivemos em um estado democrático de
direito ou em um estado burocrático
de direito. Como surgiu o estado democrático de direito e como surgiu o
estado burocrático de direito? Esses egressos de nossas escolas e faculdades
supõem-se civilizados, seres humanos superiores, mas, na realidade, agem e
vivem como a maioria dos animais domésticos e selvagens. Por exemplo, as
galinhas e os galos nascem pintinhos, crescem ciscando o chão em busca de seus
alimentos. Não se perguntam se amanhã haverá chão, não se preocupam em saber
como surgiu a terra onde vivem, não precisam de respostas fáceis elaboradas por
sacerdotes na pré-história e, muito menos, lhes interessam saber se alguns
cientistas descobriram fatos que refutaram os falsos conhecimentos propagados
pelos sacerdotes. As galinhas põem ovos, chocam seus ovos e quando nascem os
pintinhos, elas caminham pela terra ciscando, alimentando-se de minúsculos
animais, os pintinhos, por sua vez, aprendem a fazer as mesmas coisas para se
tornarem galos ou galinhas. Esses animais não precisam de um estado burocrático
de direito, camuflado de estado democrático de direito, para se beneficiarem de
vantagens indevidas.
No mundo antigo,
o estado burocrático foi modelado para garantir os direitos e os interesses dos
grupos favorecidos e, ao mesmo tempo, negar direitos para a grande maioria das
classes desfavorecidas (de fato, as classes trabalhadoras) e também
desconsiderar os interesses .dessas classes. A sociedade indiana antiga
constituía um exemplo em que as castas favorecidas usufruíam da exploração do
trabalho da maioria da população desfavorecida, que vivia eternamente
empobrecida. No século VI a. C., um brâmane, chamado Sidarta Gautama, o Buda,
depois de refletir sobre a miséria em que vivia a maioria da população,
concluiu que todos os seres humanos eram iguais, propondo a abolição do sistema
de castas privilegiadas e de castas desfavorecidas. Entretanto a ideia e a
prática da desigualdade e injustiça
continuaram prevalecendo no mundo (incluindo Grécia, Roma, Judeia), onde as
concepções religiosas orientavam o comportamento social de suas populações
tanto para o bem quanto para o mal. As sociedades cristãs e muçulmanas adotaram
e sintetizaram os rituais e os princípios preconceituosos e discriminatórios
das religiões antigas (tanto as primitivas quanto as pré-históricas). Essas
concepções podem ser assimiladas em obras literárias. Na Grécia Antiga, Ésquilo
(525-456 a. C.) e Sófocles (495-406 a. C.) produziram tragédias nas quais os
destinos dos personagens eram determinados pelos deuses. Vale ressaltar que
alguns autores discordaram disso. Menandro (342-290 a. C.), por exemplo,
elaborou obras literárias, ressaltando que os personagens são responsáveis pela
sua felicidade ou infelicidade. Na Itália, no século XIV, Bocaccio, no livro
Decamerão, elaborou uma série de contos em que os personagens são responsáveis
por suas vicissitudes ou idiossincrasias.
A partir do
século XIV, vários estudiosos começaram a refletir sobre os conhecimentos
herdados das civilizações antigas, contruíram novos métodos epistemológicos
para construção e aprimoramento dos conhecimentos humanos. Aprendemos que os
estados burocráticos de direito surgiram no período de transição da
pré-história para os períodos históricos quando os seres humanos decidiram
dividir as tarefas necessárias para a sobrevivência da comunidade. Surgiram as
atividades específicas de pescadores, pastores, caçadores, coletores de frutas
etc. Essa divisão trouxe enriquecimento para várias coletividades, havendo,
então, necessidade de outras divisões de tarefas. O acúmulo de produtos tornou
necessária a preparação de pessoas para controlar e dividir os produtos de
acordo com as necessidades de cada pessoa ou de cada grupo de pessoas. Para
guardar e proteger os produtos de serem saqueados por grupos humanos, foi
necessário que guerreiros fossem designados para defenderem a produção da
coletividade. Depois de algum tempo, surgiu a necessidade de coordenar ou
administrar todas as tarefas da coletividade. Surgiram os faraós, os
comandantes, os reis, os chefes etc. A divisão mais estrutural ocorrida nesse
período foi a divisão do trabalho mental do trabalho manual Surgiram os sacerdotes, especializados em
explicar o destino, o bem, o mal, a tragédia, a fatalidade produzidos pelas
divindades do bem ou do mal. Tais sacerdotes se autodenominaram representantes
ou filhos dessas divindades. Nesse
período, alguns coordenadores e sacerdotes começaram a administrar os bens
coletivos como se fossem seus bens particulares e começaram a inventar leis,
mandamentos, diretrizes para serem obedecidos pelas classes desfavorecidas,
declarando que tais leis, mandamentos e
diretrizes foram determinados por alguma divindade superior para o bem de
todos, de tal sorte que as vantagens, benefícios e privilégios eram acessíveis
às classes favorecidas dirigentes, enquanto que as classes trabalhadoras
desfavorecidas eram destituídas de qualquer direito. A sociedade humana começou
a tornar-se complexa.
Vários estudiosos
começaram a questionar sobre a origem da desigualdade e injustiça nas
sociedades humanas. Logo surgiram propostas para abolir as discriminações entre
os seres humanos. Depois de muitos debates (como os escritos produzidos pelos
enciclopedistas franceses) e combates (como as revoluções ocorridas na
Inglaterra e na França), novas organizações sociais foram projetadas para os
seres humanos. Consensualmente, os revolucionários decidiram pelo
estabelecimento de um estado democrático de direito que considerasse a
igualdade de todos os seres humanos e o direito de todos à liberdade,
abolindo-se os estados burocráticos que consideravam os interesses e
privilégios das classes favorecidas. Nos países colonizados (o Brasil, em
especial), os objetivos dessas lutas foram totalmente distorcidos pelas classes
favorecidas (colonos, latifundiários, senhores escravagistas). Ficou claro,
para a maioria das pessoas das classes desfavorecidas que a democracia, a
liberdade, os direitos não são dádivas, mas objeto constante de luta, pois o
bem estar coletivo deve ser conquistado cotidianamente através de lutas. É da
natureza das classes favorecidas instrumentalizarem as leis e as instituições
do estado para favorecer seus interesses. Desse modo, não devemos ficar
perplexos com as atitudes do prefeito de Manaus e das médicas recém formadas em
distorcerem os princípios de prioridades para vacinação durante a pandemia de
covid-19 (janeiro de 2021) para se apropriarem do imunizante como se fossem de
sua propriedade. Faltou a imprensa informar (e isso sempre falta) em que instituições
essas médicas estudaram?
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Isaac Warden
Lewis é professor aposentado da Faculdade de Educação/UFAM