sexta-feira, 17 de julho de 2020

A DESSACRALIZAÇÃO DO MISTÉRIO

                                                                                           Isaac Warden Lewis

É fato que a sacralização do mistério, do desconhecido, se constituiu na Antiguidade através da fundação de templos religiosos. Os sacerdotes, os letrados, os legisladores tornam-se funcionários essenciais a serviço das classes favorecidas em várias sociedades antigas e medievais, principalmente, tanto no Oriente como no Ocidente, graças à falta de conhecimentos precisos sobre a realidade natural e social.  De acordo com os sacerdotes, os letrados e os legisladores dessas sociedades, o universo seria obra divina, misteriosa. A Terra seria o centro do universo, o homem seria um ser privilegiado entre os animais, a vida seria uma dádiva divina, misteriosa. Tudo giraria em torno da Terra: o sol, os planetas, as estrelas. Uma divindade ou algum ser misterioso dirigia o movimento dos astros, a existência, a vida, os seres humanos, a sociedade.
É fato também que a dessacralização do mistério, do desconhecido, começou a constituir-se na Antiguidade. No século VI a. C., Sidarta Gautama, o Buda (c563-c483 a. c.), rompe com a doutrina mística e religiosa do bramanismo, o qual ensinava que os seres humanos passavam por várias reencarnações e, por isso, dividiam-se em castas superiores, intermediárias e inferiores. Insatisfeito com as desigualdades e injustiças sociais da sociedade hindu e depois de longas peregrinações e meditações, Sidarta Gautama declarou que todos os seres humanos eram iguais e que a felicidade humana era alcançável por cada ser humano através de seu esforço de busca pela compreensão.  Aristarco de Samos (cerca de 270 a. C.) postulou que a Terra e os planetas giravam em torno do sol. Eratóstenes (276-194 a.C.) mediu, com relativa precisão, a distância da Terra em relação ao sol. Nicolau Copérnico (1473-1543) realizou estudos, constatando que os planetas giravam em torno do sol. Galileu Galilei (1564-1642), Johannes Kepler (1571-1630) e Isaac Newton (1643-1727) aprofundaram os conhecimentos e as descobertas realizadas por Copérnico. O sol passa a ser considerado o centro do sistema solar e, não, do universo.
A partir disso, várias áreas do conhecimento serão dessacralizadas, principalmente com a chegada de muçulmanos à Europa no século XII. Seus estudiosos levaram manuscritos de filósofos e estudiosos gregos da Antiguidade, de ciência médica dos árabes. Vários estudiosos europeus dedicam-se, então, ao estudo do corpo humano. Realizam dissecações e revelam a anatomia do ser humano através de desenhos e diagramas, como, por exemplo, Andreas Vesalio (1514-1564), em seu livro, “A organização do corpo humano”, publicado em 1543.
A partir do século XIV, vários teólogos europeus propuseram a reforma da religião, como John Wycliffe (1328-1384), John Huss (1369-1415), Martinho Lutero (1483-1546), Thomas Müntzer  (1490-1525), João Calvino (1509-1564), John Knox (1513-1572). Os reformadores assinalaram que, na Europa, grassava a ignorância entre a população e, por isso, ela era sufocada pela religião. Contestaram a infalibilidade do papa e criticaram o autoritarismo e a arbitrariedade do clero católico. Condenaram os rituais pagãos, a idolatria e as superstições adotados pela Igreja Católica Apostólica Romana.  
Do século XVI ao século XIX, os cientistas desvelam os conhecimentos em várias áreas. A Biologia, a Botânica, a Zoologia, a Geografia, a História Natural, a História das sociedades, a Antropologia dessacralizam mistérios e mitos, sugerindo aos seres humanos reformularem suas ideias, seus pensamentos sobre a vida, a sociedade, o mundo e os seus comportamentos. Louis Pasteur (1822-1895) revela que as doenças são geralmente produzidas por vírus e bactérias e, não, por seres malignos ou misteriosos.
Nesse período, vários estudiosos, educadores e teólogos criticaram a educação e as práticas de ensino nas escolas dirigidas por igrejas. Eles propõem a reforma da educação. Pedagogos desenvolvem a concepção de que todos os seres humanos (homens e mulheres) devem ter acesso ao conhecimento científico, técnico e artístico independentemente de suas crenças religiosas e de suas condições de vida, sugerem que a educação científica, técnica e artística deve ser propiciada por um estado laico e que o ensino religioso deve ser realizado pelas igrejas em seus respectivos templos. Em resumo, os educadores propõem uma educação universal, laica, comprometida com a popularização dos conhecimentos científicos, técnicos e artísticos que vinham sendo desenvolvidos desde a Renascença na Europa.
No Brasil, a partir do século XVI, os jesuítas e os letrados, a serviço da corte portuguesa medieval, insistem no monopólio da catequese e da educação para manter a dominação e a espoliação dos nativos, dos africanos e dos trabalhadores livres por parte dos colonizadores portugueses. Mesmo depois da proclamação da independência (1822), da proclamação da abolição (1888) e da proclamação da república (1889), os setores conservadores católicos continuaram mantendo uma educação fundamentalmente teológico-catequética mística em favor da organização político-social feudal colonizada da sociedade brasileira. Essa organização favorecia os latifundiários nacionais e os empresários de países colonizadores, como, por exemplo, a Inglaterra. Desse modo, a propriedade da terra, como meio de produção, é monopolizada legalmente (e não legitimamente) por esses dois setores. A classe desfavorecida (os índios, os negros, os trabalhadores livres) é destituída legalmente do direito à propriedade da terra como meio de produção. O Brasil tem sido um país de apartheid  não declarado. Na verdade, todos os países da América Latina são sociedades de apartação não declaradas, distinguindo-se do sistema da África do Sul que era uma sociedade de apartheid  legalmente declarado. Porém tal como a África do Sul, o Brasil teve e tem seus genocídios, tem tido suas prisões arbitrárias, ilegais, direitos humanos negados à grande maioria da população e a liberdade de expressão cerceada.
Os dois golpes político-militares de 1930 e de 1964, rotulados erroneamente de “revoluções”,  mantiveram a sociedade brasileira como uma organização político-social feudal colonizada. Os dois golpes tiveram o apoio de setores católicos conservadores. A partir da década de 1970, os setores conservadores brasileiros passaram a contar com o apoio político e ideológico de igrejas “evangélicas”, patrocinadas pelo Complexo Industrial-Militar dos Estados Unidos. As igrejas evangélicas resgataram e adotaram princípios e práticas religiosas medievais do catolicismo romano. Adotaram principalmente rituais pagãos, idolatria e superstições. Insistem ainda em entrelaçar anacronicamente práticas religiosas com as atividades políticas e profissionais inerentes ao estado laico moderno.


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