sábado, 18 de julho de 2020

racismo, preconceito e intolerância religiosa numa sociedade colonizada


                                                                                                Isaac Warden Lewis


Falar de racismo, preconceito, discriminação, intolerância religiosa em sociedades colonizadas da Asia, África ou América implica compreender o processo de construção ideológica realizada pelos colonizadores capitalistas e imperialistas, no século XVI, os quais planejaram a invasão desses continentes com o objetivo de explorar seus recursos naturais e humanos. Para isso, os colonizadores preestabeleceram que esses continentes eram terras de ninguém e que os povos, por ventura, existentes nelas, seriam animais inferiores, destituídos de inteligência, naturalmente sujos e preguiçosos.
Os europeus, seus descendentes (incluindo os mestiços), os nativos das terras invadidas passaram a acreditar nas construções ideológicas das classes capitalistas europeias. Escritores, como Luís de Camões (português) e José de Alencar (brasileiro), em seus textos, enalteceram as ações selvagens e atitudes hipócritas dos colonizadores e dos colonos portugueses nas terras invadidas e desqualificaram as atitudes heróicas e dignas dos nativos dessas terras sem ressaltar que os nativos foram covardemente submetidos às condições de vida e de trabalho inferiores através da força das armas e de legislações escravocratas feudais herdadas de sociedades escravagistas antigas, como a grega e a romana. Ainda na contemporaneidade, políticos, juízes e advogados brasileiros referem-se às leis gregas e romanas orgulhosamente como a fonte do direito português e brasileiro, abstraindo o fato de que a sociedade brasileira nunca foi um império.
As ordenações afonsinas (1446), manuelinas (1514) e filipinas (1603) continham explicitamente discriminações negativas contra os índios, negros, judeus, árabes, ciganos, ateus e a todas as religiões não católicas romanas. Essas discriminações eram práticas institucionais do estado português e referendadas pela Igreja Católica Apostólica Romana através de suas ordens e da Inquisição, responsáveis pelo cumprimento das normas estabelecidas nas legislações do reino português e nas bulas papais.
Em consequência disso, todos os indivíduos pertencentes aos grupos discriminados viviam na sociedade colonial como segregados e apartados, embora houvesse indivíduos (judeus, negros, índios, mestiços) que se destacaram em cargos importantes da administração colonial, como, por exemplo, Antônio Gonçalves Dias (1823-1864), Cristovão Vieira, pai do padre Antônio Vieira (1608-1697). Em Portugal, vários judeus exerceram atividades importantes na sociedade. Mesmo assim, foram perseguidos, sofreram violências étnicas e expulsos a partir de 1497. Levaram seus conhecimentos, suas técnicas e capacidades produtivas e financeiras para Inglaterra, Holanda e a outros países, contribuindo para o desenvolvimento econômico, social, político e intelectual desses países. A ideologia capitalista e colonialista do racismo, do preconceito, da discriminação permeou todos os setores da sociedade colonial brasileira de tal sorte que brancos discriminavam brancos, negros, índios e mestiços. Negros discriminavam negros, brancos, índios e mestiços. Mestiços discriminavam mestiços, brancos, negros e índios. Ìndios discriminavam índios, negros, brancos e mestiços. Inúmeros/as escritores/ escritoras e ensaístas negros/as, índios/as, mestiços/as têm analisado, em seus textos, as relações pessoais e interpessoais entre os vários grupos étnicos das sociedades colonizadas ou têm explicitado as ações iníquas e as atitudes hipócritas dos colonizadores e de seus descendentes tanto nos continentes invadidos como nas metrópoles coloniais. A lista desses escritores é longa: Maria Firmina dos Reis. Machado de Assis, Lima Barreto, Luiz Gama, Abdias Nascimento, Frantz Fanon, Albert Memmi, Angela Davis, Bell Hooks, Kabengele Munanga, Iray Carone, Maria Aparecida Silva Bento, Grada Kilomba, Djamila Ribeiro. Patricia Hill Collins. Também escritores e ensaístas brancos têm contribuído para a compreensão e o desvelamento do racismo, do preconceito étnico e da intolerância religiosa tanto nos países colonizados quanto nos países capitalistas ocidentais.
Outrossim, desde o início da colonização europeia nos continentes da Ásia, África e América, nativos desses territórios contradisseram as falsas opiniões de que eram inferiores, preguiçosos e incapazes de raciocínio lógico e inteligente. No Brasil, uma professora negra, Maria Firmina dos Reis (1822-1917), em seu romance “Úrsula”, publicado em 1859, criou personagens negros que refletiam sobre as selvagerias, as barbaridades, as iniquidades, as hipocrisias, as falsidades e a desumanidade cristã dos traficantes, senhores e das senhoras de escravos.
Em síntese, o racismo, o preconceito étnico contra os/as outros/outras, a intolerância religiosa constituíram e ainda constituem práticas sociais imperantes na sociedade brasileira  colonizada, uma vez que os europeus e seus descendentes luso-brasileiros, de mentalidade feudal, nunca refletiram que os nativos dos continentes não os convidaram para se instalarem nos seus territórios e nem os africanos saíram da África voluntariamente para serem explorados como escravos na América. No Brasil, as classes favorecidas apresentam o país como uma democracia racial, isso porque suas legislações não mencionam algum tipo de segregação ou de discriminação, porém suas instituições (principalmente as jurídicas, militares e policiais) praticam ações semelhantes às do sistema de apartheid que vigorou na África do Sul de 1948 a 1994. Pode-se concluir, então, que o Brasil tem sido um país de apartheid não declarado, enquanto que a África do Sul foi um país de apartheid declarado.
A melhor maneira de os povos colonizados (brancos, negros, índios, mestiços) lutarem contra o racismo, o preconceito, a intolerância religiosa é aprofundarem o conhecimento das práticas ideológicas que orientaram e orientam a invasão dos continentes asiáticos, africanos e americanos para a exploração de seus recursos naturais e humanos.   


sexta-feira, 17 de julho de 2020

A DESSACRALIZAÇÃO DO MISTÉRIO

                                                                                           Isaac Warden Lewis

É fato que a sacralização do mistério, do desconhecido, se constituiu na Antiguidade através da fundação de templos religiosos. Os sacerdotes, os letrados, os legisladores tornam-se funcionários essenciais a serviço das classes favorecidas em várias sociedades antigas e medievais, principalmente, tanto no Oriente como no Ocidente, graças à falta de conhecimentos precisos sobre a realidade natural e social.  De acordo com os sacerdotes, os letrados e os legisladores dessas sociedades, o universo seria obra divina, misteriosa. A Terra seria o centro do universo, o homem seria um ser privilegiado entre os animais, a vida seria uma dádiva divina, misteriosa. Tudo giraria em torno da Terra: o sol, os planetas, as estrelas. Uma divindade ou algum ser misterioso dirigia o movimento dos astros, a existência, a vida, os seres humanos, a sociedade.
É fato também que a dessacralização do mistério, do desconhecido, começou a constituir-se na Antiguidade. No século VI a. C., Sidarta Gautama, o Buda (c563-c483 a. c.), rompe com a doutrina mística e religiosa do bramanismo, o qual ensinava que os seres humanos passavam por várias reencarnações e, por isso, dividiam-se em castas superiores, intermediárias e inferiores. Insatisfeito com as desigualdades e injustiças sociais da sociedade hindu e depois de longas peregrinações e meditações, Sidarta Gautama declarou que todos os seres humanos eram iguais e que a felicidade humana era alcançável por cada ser humano através de seu esforço de busca pela compreensão.  Aristarco de Samos (cerca de 270 a. C.) postulou que a Terra e os planetas giravam em torno do sol. Eratóstenes (276-194 a.C.) mediu, com relativa precisão, a distância da Terra em relação ao sol. Nicolau Copérnico (1473-1543) realizou estudos, constatando que os planetas giravam em torno do sol. Galileu Galilei (1564-1642), Johannes Kepler (1571-1630) e Isaac Newton (1643-1727) aprofundaram os conhecimentos e as descobertas realizadas por Copérnico. O sol passa a ser considerado o centro do sistema solar e, não, do universo.
A partir disso, várias áreas do conhecimento serão dessacralizadas, principalmente com a chegada de muçulmanos à Europa no século XII. Seus estudiosos levaram manuscritos de filósofos e estudiosos gregos da Antiguidade, de ciência médica dos árabes. Vários estudiosos europeus dedicam-se, então, ao estudo do corpo humano. Realizam dissecações e revelam a anatomia do ser humano através de desenhos e diagramas, como, por exemplo, Andreas Vesalio (1514-1564), em seu livro, “A organização do corpo humano”, publicado em 1543.
A partir do século XIV, vários teólogos europeus propuseram a reforma da religião, como John Wycliffe (1328-1384), John Huss (1369-1415), Martinho Lutero (1483-1546), Thomas Müntzer  (1490-1525), João Calvino (1509-1564), John Knox (1513-1572). Os reformadores assinalaram que, na Europa, grassava a ignorância entre a população e, por isso, ela era sufocada pela religião. Contestaram a infalibilidade do papa e criticaram o autoritarismo e a arbitrariedade do clero católico. Condenaram os rituais pagãos, a idolatria e as superstições adotados pela Igreja Católica Apostólica Romana.  
Do século XVI ao século XIX, os cientistas desvelam os conhecimentos em várias áreas. A Biologia, a Botânica, a Zoologia, a Geografia, a História Natural, a História das sociedades, a Antropologia dessacralizam mistérios e mitos, sugerindo aos seres humanos reformularem suas ideias, seus pensamentos sobre a vida, a sociedade, o mundo e os seus comportamentos. Louis Pasteur (1822-1895) revela que as doenças são geralmente produzidas por vírus e bactérias e, não, por seres malignos ou misteriosos.
Nesse período, vários estudiosos, educadores e teólogos criticaram a educação e as práticas de ensino nas escolas dirigidas por igrejas. Eles propõem a reforma da educação. Pedagogos desenvolvem a concepção de que todos os seres humanos (homens e mulheres) devem ter acesso ao conhecimento científico, técnico e artístico independentemente de suas crenças religiosas e de suas condições de vida, sugerem que a educação científica, técnica e artística deve ser propiciada por um estado laico e que o ensino religioso deve ser realizado pelas igrejas em seus respectivos templos. Em resumo, os educadores propõem uma educação universal, laica, comprometida com a popularização dos conhecimentos científicos, técnicos e artísticos que vinham sendo desenvolvidos desde a Renascença na Europa.
No Brasil, a partir do século XVI, os jesuítas e os letrados, a serviço da corte portuguesa medieval, insistem no monopólio da catequese e da educação para manter a dominação e a espoliação dos nativos, dos africanos e dos trabalhadores livres por parte dos colonizadores portugueses. Mesmo depois da proclamação da independência (1822), da proclamação da abolição (1888) e da proclamação da república (1889), os setores conservadores católicos continuaram mantendo uma educação fundamentalmente teológico-catequética mística em favor da organização político-social feudal colonizada da sociedade brasileira. Essa organização favorecia os latifundiários nacionais e os empresários de países colonizadores, como, por exemplo, a Inglaterra. Desse modo, a propriedade da terra, como meio de produção, é monopolizada legalmente (e não legitimamente) por esses dois setores. A classe desfavorecida (os índios, os negros, os trabalhadores livres) é destituída legalmente do direito à propriedade da terra como meio de produção. O Brasil tem sido um país de apartheid  não declarado. Na verdade, todos os países da América Latina são sociedades de apartação não declaradas, distinguindo-se do sistema da África do Sul que era uma sociedade de apartheid  legalmente declarado. Porém tal como a África do Sul, o Brasil teve e tem seus genocídios, tem tido suas prisões arbitrárias, ilegais, direitos humanos negados à grande maioria da população e a liberdade de expressão cerceada.
Os dois golpes político-militares de 1930 e de 1964, rotulados erroneamente de “revoluções”,  mantiveram a sociedade brasileira como uma organização político-social feudal colonizada. Os dois golpes tiveram o apoio de setores católicos conservadores. A partir da década de 1970, os setores conservadores brasileiros passaram a contar com o apoio político e ideológico de igrejas “evangélicas”, patrocinadas pelo Complexo Industrial-Militar dos Estados Unidos. As igrejas evangélicas resgataram e adotaram princípios e práticas religiosas medievais do catolicismo romano. Adotaram principalmente rituais pagãos, idolatria e superstições. Insistem ainda em entrelaçar anacronicamente práticas religiosas com as atividades políticas e profissionais inerentes ao estado laico moderno.


quinta-feira, 16 de julho de 2020

OS CURANDEIROS



                                                                              Isaac Warden Lewis

Certo dia, Pedro Pinheiro, dirigiu-se a uma loja de um pajé de uma renomada tribo indígena para solicitar um remédio para curar dores que vinha sentindo há algum tempo. O pajé recebeu Pedro Pinheiro, com respeito e delicadeza, e sugeriu-lhe uma poção para massagear os músculos doloridos, mas disse-lhe que seria preciso que Pedro Pinheiro se submetesse a um ritual de bendição que ele realizaria para que a poção funcionasse.
Pedro Pinheiro perguntou ao pajé se ele poderia adquirir a poção para começar imediatamente o tratamento e que gostaria de voltar outro dia para o ritual de bendição, pois, naquele momento, ele não poderia demorar porque tinha um compromisso urgente e inadiável. A contragosto, o pajé concordou em marcar outro dia para a referida bendição e Pedro Pinheiro pagou pela poção e se retirou da loja do pajé, que ficava na cidade de Manaus.
Dias depois, Pedro Pinheiro passava por uma casa de um babalorixá famoso e resolveu conversar com ele sobre suas dores. O babalorixá recebeu Pedro Pinheiro atenciosamente, ouviu pacientemente o relato dos males que Pedro Pinheiro dizia sofrer e disse-lhe que ele poderia preparar uma infusão que o curaria totalmente dos males de que ele padecia, porém recomendou que Pedro Pinheiro voltasse à noite para participar de um ritual quando o babalorixá incorporaria a entidade de um mestre que expulsaria os demônios que viviam ao redor dele, produzindo aquelas dores. Desse modo, a infusão funcionaria melhor.
Pedro Pinheiro perguntou ao babalorixá se ele poderia levar a infusão, assim que estivesse pronto para começar o tratamento imediatamente e voltar outra noite para participar do ritual, pois, naquela noite, ele tinha uma viagem para uma cidade do interior, onde ele teria um compromisso urgente e inadiável. A contragosto, o babalorixá concordou em providenciar a infusão e propôs que Pedro Pinheiro voltasse na outra semana para participar do ritual de incorporação da entidade. Pedro Pinheiro pagou pela infusão, agradeceu ao babalorixá pela sua atenção e se retirou.
Duas semanas depois, Pedro Pinheiro passava por uma rua onde havia uma clínica de um médico especialista. Pedro Pinheiro resolveu fazer uma consulta com o especialista. Ao entrar no consultório, Pedro Pinheiro pagou antecipadamente a consulta a uma recepcionista. Meia hora depois, Pedro Pinheiro foi atendido pelo médico especialista que lhe perguntou qual era seu problema. Pedro Pinheiro explicou sobre as dores que sentia. O médico especialista disse que era preciso fazer alguns exames e, talvez, fazer, depois, uma operação cirúrgica. Pedro Pinheiro perguntou ao médico especialista se os exames e a operação resolveriam seu problema. O médico respondeu que ele poderia fazer o melhor, mas a cura perfeita dependeria do maior de todos os médicos , o divino deus.
Nesse momento, Pedro Pinheiro lembrou-se do pajé e do babalorixá e pensou: “Afinal de contas, são todos curandeiros.”.


Manaus, julho 2020

PAÍS DE AGREGADOS



                                                          Isaac Warden Lewis

De Portugal vieram para o Brasil
prisioneiros e aventureiros.
Todos viveram como degredados
E, nesta terra, tornaram-se agregados.

Nesta terra, viviam povos livres
em harmonia com o ambiente.
Foram forçados a viverem como degredados
                                         em sua própria terra.
E, pouco a pouco, tornaram-se também agregados.

Da África, negros foram sequestrados.
Nesta terra, foram recebidos como escravos degredados.
E, pouco a pouco, tornaram-se também agregados.

Neste país, fundado e inventado por degredados,
        todos ainda vivem como simples agregados.