Na Antiguidade,
sacerdotes, escribas, letrados e legisladores concentraram-se em destacar
palavras como alma, espírito, fantasma, destino, acidente, contingência, incidente, sorte, fortuna, mistério para
explicar fenômenos e acontecimentos supostamente incompreensíveis. Tais
palavras passaram a representar seres mágicos poderosos. Depois, foi acrescentada
a ideia de que esses seres seriam capazes de propiciar felicidade ou
infelicidade aos seres humanos. Para tanto, sacerdotes, letrados, e
legisladores declararam ser os
mediadores, para o bem ou para o mal, entre esses seres e os pobres seres
humanos, destituídos de saberes e poderes mágicos. Iniciou-se,
desse modo, a justificativa para explicar fenômenos e acontecimentos que não
poderiam ou não deveriam ser investigados a fundo pelas autoridades
competentes, ou seja, os próprios sacerdotes, escribas, letrados, legisladores.
Há mais de dois mil anos, incompetência profissional, crimes contra humanidade,
genocídios, massacres foram justificados como acidentes, incidentes, contingências ou explicados como
fatalidades do destino ou da vontade
do espírito, da alma ou de algum fantasma
ou fazendo parte de algum mistério,
de alguma sorte ou fortuna.
Até a Idade
Média, podemos entender que explicações metafísicas fossem aceitas pela maioria
da população (incluindo acadêmicos e letrados), pois os conhecimentos sobre a
realidade natural e humana eram bem precários. É surpreendente que alguns
cientistas, estudiosos, acadêmicos, legisladores, médicos, professores, em
pleno século XXI, insistam em justapor seres inexistentes ou abstratos a certos
acontecimentos, fenômenos ou a certas incompetências profissionais reais que
ocorrem na realidade natural, social ou humana. Por que essa insistência? Será
que tais estudiosos não conseguiram se libertar das ideias inventadas por
sacerdotes comprometidos com os interesses patriarcais, patrimoniais ou
políticos das classes privilegiadas do mundo antigo e do mundo contemporâneo? Um exemplo de
coragem e honestidade intelectual nos é dado pelo cientista Pierre-Simon
Laplace (1749-1827), ao responder à indagação feita por Napoleão Bonaparte pelo
fato de esse cientista não ter se referido ao construtor do universo em seu
livro, o qual versava sobre o sistema do universo:
Napoleão: “Me
disseram que você escreveu [...] sobre o sistema do universo e jamais sequer mencionou
seu criador”.
Laplace: “Eu não
precisei fazer tal suposição.”
É preciso
honestidade e competência intelectual para que estudiosos, legisladores e
políticos brasileiros se manifestem vigorosamente e indignados contra o
episódio em que soldados dispararam mais
de oitenta tiros contra uma família que viajava em um carro. Para a História,
isso não foi um “incidente”, nem um “mistério”. Esse episódio exige um estudo sério e rigoroso
sobre o curso de formação de oficiais, sargentos e cabos das Forças Armadas
brasileiras e sobre o treinamento técnico e intelectual dos soldados, de modo
geral. Afinal de contas, é papel das Forças Armadas de países do Terceiro Mundo
combater os naturais de suas próprias nações e manter a ordem na periferia do
capitalismo através da mediação da Organização
das Nações Unidas em prol de países do Primeiro Mundo? Se houvesse a predominância de honestidade
intelectual entre os estudiosos e os legisladores brasileiros, os crimes
perpetrados por policiais e militares covardemente contra civis seriam
investigados a fundo, punidos seus autores (executores e comandantes), obrigado
o estado brasileiro a indenizar suas vítimas dignamente. Então, poderíamos
concordar, com estudiosos, legisladores e políticos, que vivemos em um estado democrático de direito.
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