sexta-feira, 2 de março de 2018

A PEDAGOGIA DAS ESCOLAS ... DE SAMBA*

                                                                                                                   Isaac Warden Lewis

Os desfiles das escolas de samba, no Rio de Janeiro, vêm se constituindo em verdadeiras obras de arte. E como toda obra de arte, os desfiles das escolas de samba são também educativos. Por isso os enredos dessas escolas devem não somente ser apreciados, mas também analisados criticamente.
Os desfiles das escolas de samba proporcionam aos espectadores e aos telespectadores uma oportunidade para apreender um fato da história e/ou da sociedade brasileira. E como ato educativo, refletem uma concepção pedagógica que pode praticar a educação a favor de uma minoria privilegiada ou da maioria desfavorecida.
As concepções pedagógicas geralmente refletem as posições políticas dos trabalhadores e dos administradores escolares. Do mesmo modo, em sua prática avaliativa, os inspetores e os supervisores escolares não são neutros ou imparciais em relação à ideologia da classe privilegiada ou da utopia da classe desfavorecida.
Os primeiros sambistas foram perseguidos pela polícia, no Rio de Janeiro, no final do século XIX e início do século XX. Aos ouvidos europeizados da classe privilegiada, de então, o samba era uma música exótica, africana, que não somente ameaçava o domínio das músicas eruditas europeias, como também agradava muito mais às camadas populares da sociedade.
Apesar da perseguição, o samba tornou-se a música popular brasileira, por excelência. Tornou-se não somente a música da diversão, da festa, mas também a música do protesto, da resistência, das camadas mais perseguidas e exploradas da sociedade. Talvez, por isso, os temas dos desfiles das escolas de samba tenham sido censurados, ao longo da História, principalmente, os temas que apresentavam o sofrimento e a exploração do trabalho do negro brasileiro ou que exaltavam os líderes e mártires negros.
Por muito tempo, as escolas de samba fizeram desfilar na avenida negros fantasiados de reis, imperadores, barões ou condes e negras fantasiadas de madames, condessas, baronesas ou princesas. Personagens que nada têm a ver com as lutas e os interesses maiores dos africanos negros, nascidos no Brasil.
O desfile da Vila Isabel, em 1988, foi, portanto, uma verdadeira revolução, quando apresentou um tema crítico sobre a luta da resistência negra no Brasil: “Kizomba, festa da raça”, cantando os heróis e guerreiros negros, como Zumbi dos Palmares e as heroínas negras como Anastácia e Clementina de Jesus, além de ressaltar a contribuição cultural negra na sociedade brasileira.
Valeu Zumbi/O grito forte dos Palmares (...) Zumbi valeu/Hoje a Vila é Kizomba/É batuque, canto e dança/Jongo e Maracatu/Vem menininha pra dançar caxambu/Ôôôô negra mina/Anastácia não se deixou escravizar/Ôôôô Clementina/O pagode é o partido popular.(1)
Também em 1988. A Beija-Flor, com o tema: “Sou negro, do Egito à Liberdade”, procurou resgatar a cultura negra, denunciando, ao mesmo tempo, as injustiças sociais sofridas pela coletividade negra na sociedade brasileira:
Eu sou negro, e hoje enfrento a realidade/E abraçado à Beija-Flor, meu amor/Reclamo a verdadeira liberdade (...) Liberdade raiou, mas a igualdade não, não, não, não.(2)
Os desfiles das escolas de samba do primeiro grupo, no Rio de Janeiro, em 1989, refletiram bem as concepções políticas e ideológicas dos trabalhadores e administradores das escolas de samba (carnavalescos e presidentes) e dos inspetores e supervisores (julgadores dos desfiles).
Enquanto alguns trabalhadores, administradores e julgadores entendiam que as escolas de samba deviam apresentar tema que refletisse sobre a realidade sentida e sofrida pela maioria do povo brasileiro, outros entendiam que as escolas de samba deviam, em seu enredo, divertir, distrair o público, desviá-lo da sua realidade.
A Imperatriz Leopoldinense, a primeira colocada, no desfile do ano de 1989, apresentou o enredo “Liberdade! Liberdade! Abras as asas sobre nós”, tratando acontecimentos da História do Brasil ingênua e superficialmente. Reviveu ainda negros fantasiados de duques e barões e negras fantasiadas de madames e princesas:    
Da guerra nunca mais/Esqueceremos do patrono, o duque imortal/A imigração floriu de cultura o Brasil/A música encanta e o povo canta assim (...)Pra Isabel, a heroína, que assinou a lei divina/Negro dançou/comemorou o fim da sina/Na noite quinze reluzente/Com a bravura, finalmente/O marechal que proclamou/Foi presidente.(3)  
A Beija-Flor, a segunda colocada, apresentou o tema “Ratos e Urubus...larguem a minha fantasia”, revolucionando a concepção de desfile das escolas de samba, ao proclamar a dialética entre a fantasia e a realidade, entre o lixo e o luxo, entre o sagrado e o profano:
Reluziu...É ouro ou lata/Formou a grande confusão/Qual areia na farofa/E o luxo e a pobreza/No meu mundo de ilusão.
Xepa de lá pra cá xepei/Sou na vida um mendigo/Da folia eu sou rei.
Sai do lixo a nobreza/Euforia que consome/Se ficar o rato pega/Se cair urubu come...(4).
A União da Ilha, a terceira colocada, apresentou o enredo “Festa Profana”, em que contou e cantou a história do carnaval, sem preocupaçôes maiores, a não ser a de promover diversão para os brincantes e para o público:
O rei mandô/Cair dentro da folia/Eh! Lá vou eu/O sol que brilha nessa noite vem da Ilha/Lindo sonho que é só meu (...) Eu vou tomar um porre de felicidade/Vou sacudir, eu vou zoar toda a cidade (5).
A Vila Isabel, a quarta colocada, apresentou o tema: “Direiro é direito”, tratando e retratando questões que precisam ser lembradas aos brasileiros todos os dias do ano, inclusive nos dias de carnaval, tais como: liberdade, igualdade, saúde, educação e moradia. Nem por isso a Vila Isabel deixou de fazer carnaval:
É hora da verdade/A liberdade ainda não raiou/Queremos o direito de igualdade.
Viver com dignidade/Não representa favor.../A Declaração Universal/Não é um sonho, temos que fazer cumprir/A justiça é cega mas enxerga quando quer...
Clareou/Despertou o amor que é fonte da vida/Vamos dar as mãos e lutar/Sempre de cabeça erguida...(6).
Pela ordem das colocações das escolas de samba, podemos dizer que as escolas classificadas em primeiro e terceiro lugares refletem a concepção tradicional e conservadora de alguns julgadores e o segundo e quarto lugares refletem a posição mais afinada e comprometida com os interesses populares de outros julgadores.
Contudo o grande juiz e educador é ainda o povo que, na hora da verdade, transforma o luxo em lixo e o lixo em luxo.
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1 – Kizomba, festa da raça, de Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila/2 – Sou negro, do Egito à Liberdade, de Ivancué, Cláudio Inspiração, Marcelo Guimarães e Aloísio Santos/3 – Liberdade! Liberdade! Abra as asas sobre nós, de Niltinho Tristeza, Preto Joia, Vicentinho e Jurandir/4 – Ratos e urubus... larguem minha fantasia, de Betinho, Glyvaldo, Zé Maria e Osmar/5 ´Festa Profana, J. Brito e Bujão/6 – Direito é direito, de Jorge King, Serginho Tonelada, Fernando Partideiro, Zé Antônio e J. C. Couto.

·         Do livro “Educação ou desvelamento".

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