Os desfiles das
escolas de samba, no Rio de Janeiro, vêm se constituindo em verdadeiras obras
de arte. E como toda obra de arte, os desfiles das escolas de samba são também
educativos. Por isso os enredos dessas escolas devem não somente ser
apreciados, mas também analisados criticamente.
Os desfiles das
escolas de samba proporcionam aos espectadores e aos telespectadores uma
oportunidade para apreender um fato da história e/ou da sociedade brasileira. E
como ato educativo, refletem uma concepção pedagógica que pode praticar a
educação a favor de uma minoria privilegiada ou da maioria desfavorecida.
As concepções
pedagógicas geralmente refletem as posições políticas dos trabalhadores e dos
administradores escolares. Do mesmo modo, em sua prática avaliativa, os
inspetores e os supervisores escolares não são neutros ou imparciais em relação
à ideologia da classe privilegiada ou da utopia da classe desfavorecida.
Os primeiros
sambistas foram perseguidos pela polícia, no Rio de Janeiro, no final do século
XIX e início do século XX. Aos ouvidos europeizados da classe privilegiada, de
então, o samba era uma música exótica, africana, que não somente ameaçava o
domínio das músicas eruditas europeias, como também agradava muito mais às
camadas populares da sociedade.
Apesar da
perseguição, o samba tornou-se a música popular brasileira, por excelência.
Tornou-se não somente a música da diversão, da festa, mas também a música do
protesto, da resistência, das camadas mais perseguidas e exploradas da
sociedade. Talvez, por isso, os temas dos desfiles das escolas de samba tenham
sido censurados, ao longo da História, principalmente, os temas que
apresentavam o sofrimento e a exploração do trabalho do negro brasileiro ou que
exaltavam os líderes e mártires negros.
Por muito tempo,
as escolas de samba fizeram desfilar na avenida negros fantasiados de reis,
imperadores, barões ou condes e negras fantasiadas de madames, condessas,
baronesas ou princesas. Personagens que nada têm a ver com as lutas e os
interesses maiores dos africanos negros, nascidos no Brasil.
O desfile da
Vila Isabel, em 1988, foi, portanto, uma verdadeira revolução, quando
apresentou um tema crítico sobre a luta da resistência negra no Brasil:
“Kizomba, festa da raça”, cantando os heróis e guerreiros negros, como Zumbi
dos Palmares e as heroínas negras como Anastácia e Clementina de Jesus, além de
ressaltar a contribuição cultural negra na sociedade brasileira.
Valeu Zumbi/O grito forte dos Palmares
(...) Zumbi valeu/Hoje a Vila é Kizomba/É batuque, canto e dança/Jongo e
Maracatu/Vem menininha pra dançar caxambu/Ôôôô negra mina/Anastácia não se
deixou escravizar/Ôôôô Clementina/O pagode é o partido popular.(1)
Também em 1988.
A Beija-Flor, com o tema: “Sou negro, do Egito à Liberdade”, procurou resgatar
a cultura negra, denunciando, ao mesmo tempo, as injustiças sociais sofridas
pela coletividade negra na sociedade brasileira:
Eu sou negro, e hoje enfrento a
realidade/E abraçado à Beija-Flor, meu amor/Reclamo a verdadeira liberdade
(...) Liberdade raiou, mas a igualdade não, não, não, não.(2)
Os desfiles das
escolas de samba do primeiro grupo, no Rio de Janeiro, em 1989, refletiram bem
as concepções políticas e ideológicas dos trabalhadores e administradores das
escolas de samba (carnavalescos e presidentes) e dos inspetores e supervisores
(julgadores dos desfiles).
Enquanto alguns
trabalhadores, administradores e julgadores entendiam que as escolas de samba
deviam apresentar tema que refletisse sobre a realidade sentida e sofrida pela
maioria do povo brasileiro, outros entendiam que as escolas de samba deviam, em
seu enredo, divertir, distrair o público, desviá-lo da sua realidade.
A Imperatriz Leopoldinense,
a primeira colocada, no desfile do ano de 1989, apresentou o enredo “Liberdade!
Liberdade! Abras as asas sobre nós”, tratando acontecimentos da História do
Brasil ingênua e superficialmente. Reviveu ainda negros fantasiados de duques e
barões e negras fantasiadas de madames e princesas:
Da guerra nunca mais/Esqueceremos do
patrono, o duque imortal/A imigração floriu de cultura o Brasil/A música
encanta e o povo canta assim (...)Pra Isabel, a heroína, que assinou a lei
divina/Negro dançou/comemorou o fim da sina/Na noite quinze reluzente/Com a
bravura, finalmente/O marechal que proclamou/Foi presidente.(3)
A Beija-Flor, a
segunda colocada, apresentou o tema “Ratos e Urubus...larguem a minha
fantasia”, revolucionando a concepção de desfile das escolas de samba, ao
proclamar a dialética entre a fantasia e a realidade, entre o lixo e o luxo,
entre o sagrado e o profano:
Reluziu...É ouro ou lata/Formou a grande
confusão/Qual areia na farofa/E o luxo e a pobreza/No meu mundo de ilusão.
Xepa de lá pra cá xepei/Sou na vida um
mendigo/Da folia eu sou rei.
Sai do lixo a nobreza/Euforia que
consome/Se ficar o rato pega/Se cair urubu come...(4).
A União da Ilha,
a terceira colocada, apresentou o enredo “Festa Profana”, em que contou e
cantou a história do carnaval, sem preocupaçôes maiores, a não ser a de
promover diversão para os brincantes e para o público:
O rei mandô/Cair dentro da folia/Eh! Lá
vou eu/O sol que brilha nessa noite vem da Ilha/Lindo sonho que é só meu (...)
Eu vou tomar um porre de felicidade/Vou sacudir, eu vou zoar toda a cidade (5).
A Vila Isabel, a
quarta colocada, apresentou o tema: “Direiro é direito”, tratando e retratando
questões que precisam ser lembradas aos brasileiros todos os dias do ano,
inclusive nos dias de carnaval, tais como: liberdade, igualdade, saúde,
educação e moradia. Nem por isso a Vila Isabel deixou de fazer carnaval:
É hora da verdade/A liberdade ainda não
raiou/Queremos o direito de igualdade.
Viver com dignidade/Não representa
favor.../A Declaração Universal/Não é um sonho, temos que fazer cumprir/A
justiça é cega mas enxerga quando quer...
Clareou/Despertou o amor que é fonte da
vida/Vamos dar as mãos e lutar/Sempre de cabeça erguida...(6).
Pela ordem das
colocações das escolas de samba, podemos dizer que as escolas classificadas em
primeiro e terceiro lugares refletem a concepção tradicional e conservadora de
alguns julgadores e o segundo e quarto lugares refletem a posição mais afinada
e comprometida com os interesses populares de outros julgadores.
Contudo o grande
juiz e educador é ainda o povo que, na hora da verdade, transforma o luxo em
lixo e o lixo em luxo.
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1 – Kizomba,
festa da raça, de Rodolpho, Jonas e Luiz Carlos da Vila/2 – Sou negro, do Egito
à Liberdade, de Ivancué, Cláudio Inspiração, Marcelo Guimarães e Aloísio
Santos/3 – Liberdade! Liberdade! Abra as asas sobre nós, de Niltinho Tristeza,
Preto Joia, Vicentinho e Jurandir/4 – Ratos e urubus... larguem minha fantasia,
de Betinho, Glyvaldo, Zé Maria e Osmar/5 ´Festa Profana, J. Brito e Bujão/6 –
Direito é direito, de Jorge King, Serginho Tonelada, Fernando Partideiro, Zé
Antônio e J. C. Couto.
·
Do
livro “Educação ou desvelamento".