segunda-feira, 24 de abril de 2023

PORCOS FELIZES

                                                                                                               Isaac Warden Lewis


Em um sítio, Leôncio Souza resolveu criar porcos. Construiu um prédio de cinco metros de comprimento, três metros de largura, com tijolos até um metro e meio de altura, com teto de dois metros e meio de altura, aberto do lado para que o vento refrescasse o ambiente. Colocou uma porta de um metro e meio de altura e um metro de largura. Colocou no meio dessa cabana três chuveiros ou duchas para que os porcos pudessem se banhar todos os dias. Também Leôncio Souza preocupou-se com a qualidade do alimento de seus porcos. Ao invés de restos de comida, ele consultou um veterinário que lhe recomendou que desse frutas e grãos saudáveis para manter boa a saúde dos porcos. Alguns vizinhos chamavam a cabana de porcos de Leôncio Souza de “Paraíso dos Porcos do Leôncio” Além disso, Leôncio Souza decidiu nomear seus porcos com nomes de seres humanos. Citaremos alguns desses nomes: Uma porca foi chanada de Elizabete; outra, de Virgínia; outra de Josefina; outra de Joana; outra, de Catarina. Um porco foi chamado de Alexandre; Outro, de César; outro, de Napoleão. Três porcos que viviam sempre juntos e matutando foram chamados de Sócrates, Buda e Confúcio..

Efetivamente, esse paraíso virou atração turística, pois muitas pessoas começaram a visitar a cabana. A maioria dos visitantes ficava perplexa porque os porcos pareciam muito felizes com o tratamento que usufruíam no sítio de Leôncio. Demonstravam gostar de sua alimentação saudável, pois comiam prazerosamente. De manhã e à tarde, Leôncio abria o chuveiro e os porcos corriam para se banharem prazerosamente.  Pareciam adorar tomar banho para se refrescarem. A cabana estava sempre limpa. Os porcos corriam uns atrás dos outros. Parecia não terem preocupações. Um porco mais velho, chamado Esopo, contava histórias estranhas. Ele dizia que a vida que os porcos levavam no “Paraíso” era determinada por um ser divino que providenciava para que os porcos tivessem uma vida prazerosa. Alguns porcos duvidavam dessa história porque era um humano que sempre trazia alimentos para os porcos e era ele que fazia a água cair do chuveiro. Para esses porcos, era mistério o lugar de onde o humano trazia alimentos e como ele fazia a água cair do chuveiro. Também se perguntavam até quando teriam alimento e água e ainda estranhavam que o humano levava alguns porcos mais gordos de vez em quando. Também não sabiam explicar o que acontecia com seus parentes mais gordos, pois sempre ouviam choros e gritos deles vindo de um galpão e, depois disso, nunca mais viam seus parentes gordos. Observavam, porém, que o humano e os seus familiares ficavam cada vez mais gordos e saudáveis. 

Os porcos Sócrates, Buda e Confúcio expressaram suas dúvidas, preocupações e desconfianças para o porco mais velho, contador de histórias. Esopo respondeu-lhes que o mundo era cheio de mistérios ininteligíveis e que eles deveriam confiar no ser divino que criou o mundo, os seres vivos e todas as coisas  e que deveríamos todos ser felizes pelo que o “Paraíso” nos dava todos os dias.

Essa resposta não contentou os três porcos descontentes e se tornaram infelizes depois disso. Entretanto os outros porcos continuaram felizes, alimentando-se com as frutas e os grâos oferecidos por Leôncio Souza, divertindo-se, não se preocupando com os problemas apresentados pelos porcos questionadores..

 

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Manaus, abril, 2023..

terça-feira, 18 de abril de 2023

TECNOLOGIA COM BARBÁRIE

 

                                                                                                 Lucilene Gomes Lima

 

 O uso particular que se faz de uma palavra, muitas vezes, esclarece a sua significação do ponto de vista de quem a enuncia. Nos tempos atuais, segundo uma política de Estado, bárbaro é um delito cometido por um refugiado, mas não é bárbara a geopolítica econômica que arrasa um país e leva seus cidadãos a se refugiarem.

A etimologia registra que a palavra bárbaro vem do grego bárbaros e significa não grego, estrangeiro. Os gregos representavam através da onomatopeia bar bar bar (aproximadamente tagarelice) toda língua que não era a língua grega, ou seja, uma língua que consideravam um amontoado de sons que nada expressavam. Desse modo, a palavra passou a designar os povos que não eram gregos, entre eles, os egípcios, os persas, os medos, os fenícios e os romanos. Semanticamente, a palavra caracteriza um uso particular que se tornou geral por extensão, significando ser sem civilização, selvagem, rude, inculto, cruel, desumano.

No império romano, o termo barbaru passou a designar os estrangeiros que não compartilhavam das tradições gregas e romanas, na realidade, povos distintos – godos, vândalos, saxões, hunos, francos, álanos, suevos reunidos sob essa denominação devido às invasões sucessivas que minaram e ruíram o império romano do ocidente. O historiador Edward Gibbon destaca, em Declínio e queda do império romano, no entanto, que não só esses povos absorveram a língua e a cultura romana como a cultura romana os absorveu: “[...] Já nos tempos de Adriano, os naturais queixavam-se com razão de que a capital atraíra os vícios do universo e os costumes das nações mais opostas. A intemperança dos gauleses, a esperteza e a volubilidade dos gregos, a fera obstinação dos egípcios e dos judeus, a índole servil dos asiáticos, e a dissoluta efeminada prostituição dos sírios entremesclavam-se na variegada multidão que, sob a falsa denominação de romanos, se atrevia a desdenhar as nações vassalas e seus soberanos que demoravam além dos limites da cidade eterna” (1989, p. 428).

Michael Löwy, no texto “Barbárie e modernidade no século 20”, chama a atenção de que Norbert Elias, ao caracterizar o processo civilizador a partir do momento em que os indivíduos não exercem mais violência uns contra os outros, de forma irracional, mas em que o Estado atua como poder centralizador para controlar e conter a violência entre os indivíduos, desconsiderou que o próprio Estado passou a ser um agente de violência contra os indivíduos. Para Löwy, a história moderna, pós conquista das Américas, repete a barbárie da história antiga de forma muito mais extensa, massiva e sistemática. Seu texto fala justamente de um momento histórico em que barbárie e tecnologia avançada coexistem, a considerar o contexto da Primeira Guerra mundial: “[...] Jamais no passado tecnologias tão modernas – os tanques, o gás, a aviação militar – tinham sido colocadas a serviço de uma política imperialista de massacre e de agressão em uma escala tão imensa”. Löwy observa que a história do século XX obriga a refletir sobre o conceito de “barbárie civilizada” (http://www.antropomoderno.com.textos/brarbarie.shtm).

Baseando-nos nas palavras do historiador inglês Edward Gibbon de que “[...] quase todas as páginas da história estão manchadas de sangue civil [...]” (1989, p. 93), é possível afirmar que a confluência entre barbárie e civilização já ocorria nas civilizações antigas. Quando a civilização grega e a romana denominavam outras culturas de bárbaras, desconsideravam que elas mesmas haviam praticado atos bárbaros contra os povos que dominaram e que, no momento das invasões, esses povos as tinham também como bárbaras invasoras. A língua grega era o elemento indicador de civilização para os gregos e o critério para sua superioridade em relação a outros povos cujas línguas ignoravam, embora, na língua grega, as letras alpha e beta tenham sido adaptadas do alfabeto desenvolvido pelos fenícios que, por sua vez, haviam-no  desenvolvido a partir do egípcio.

A “barbárie civilizada” dos tempos modernos ocorre como política de Estado nos casos exemplificados por Löwy (o genocídio nazista contra os judeus e ciganos, a bomba atômica lançada contra Hiroshima e Nagasaki, O Goulag estalinista, a guerra norte-americana no Vietnã), apesar de os estados modernos não se considerarem bárbaros. Por outro lado, os modernos Estados de direito consideram como bárbaras muitas leis aplicadas por antigas civilizações como, por exemplo, o Código de Hamurabi que determinava que fosse cortada a orelha do escravo insubmisso e que aquele que o acoitasse em fuga fosse punido com pena capital, e bárbaros os princípios da educação espartana, modelo de rigor, considerado pelo historiador Xenofonte e pelo filósofo Platão a última perfeição, não obstante ela premiasse o delinquente. Os jovens espartanos eram autorizados a roubar para matar a fome e se fossem apanhados eram sovados, não por causa do delito propriamente, mas por terem se deixado apanhar. Em Esparta, os bebês eram examinados ao nascer e se fossem considerados débeis, eram levados às colinas onde eram abandonados para morrer à mingua. Séculos mais tarde, a civilização ocidental moderna considera bárbaros os habitantes autóctones do Novo Mundo por praticarem o infanticídio pelos mesmos motivos praticados pelos espartanos. Os jovens espartanos também passavam por ritos tão duros, cruéis, quanto os jovens indígenas do Novo Mundo em seus ritos de passagem.

Certamente, as antigas civilizações e as modernas divergem quanto às condições de se assumirem como civilizadas.  Em Declínio e queda do império romano, Gibbon refere o assassinato, a execução como comuns no império, atos que não eram nem encobertos nem negados. As palavras do historiador romano Amiano Marcelino, citadas por Gibbon, ilustram a noção de civilidade e justiça de nobres romanos: “[...] Quando pedem água quente e um escravo demora a obedecer, este é imediatamente castigado com trezentas chibatadas; no entanto, se o mesmo escravo cometer um assassínio deliberado, o amo se limitará a observar benignamente que se trata de um sujeito imprestável, e que, se ele repetir o delito não escapará da punição [...]” (1989, p. 425).

O antigo código babilônico de leis de Hamurabi é classificado em alguns livros de história como exemplo de leis justas e humanas, embora sua justiça não fosse a mesma para todos os indivíduos. O código expressa a hierarquia de poder, estabelecendo claramente a diferença entre os sujeitos que nomina. O julgamento “Olho por olho, dente por dente” só era aplicado aos ditos  homens superiores: “Se um homem superior arrancar o olho de outro homem superior, deverá ter seu olho arrancado” (Apud Harari, 2017, p. 114). Os homens comuns não pagavam com a parte de seu corpo a parte do corpo de outro homem comum que houvessem destruído, mas com moeda, sobre a qual recaíam impostos para o governo. Se fosse destruída parte do corpo de um escravo, só o escravo ficava prejudicado e inutilizado, pois seu senhor recebia pelo delito a metade do valor do escravo em prata. Se um homem superior batesse em uma mulher superior e a fizesse abortar, ele deveria pagar dez siclos de prata pelo feto. O delito contra a mulher propriamente ficava sem punição, mesmo sendo ela uma mulher superior. Caso a mulher superior morresse, a filha do delinquente deveria ser morta, não o filho.  As filhas de quem delinquisse, mesmo sem culpa, deveriam pagar na “justa medida”. Por esse julgamento, percebe-se o quanto os judeus incorporaram leis sumérias e babilônicas, uma vez que, na lei judaica (halachá), a mulher que não tinha filhos era destituída de direitos e desprezada.  No código de lei babilônico, se o delinquente batesse em uma mulher comum e a fizesse abortar, deveria pagar cinco siclos de prata; se ela morresse, trinta siclos. Nesse julgamento, novamente esclarece-se que a perda ou a morte para os membros comuns da sociedade babilônica deveria ser reparada em valor pecuniário menor do que o valor de um membro superior, e que a vida de um membro comum não valia a vida de outro membro comum. Tanto a vida quanto a morte estavam sujeitas a hierarquias nesse código. A mulher era duplamente punida, pelo gênero e pela hierarquia social. A vida da mulher superior valia mais que a vida da mulher comum e a vida da mulher comum valia menos do que a vida do filho da mulher superior e menos do que a vida do filho de quem a agravasse ou a matasse. A vida do filho da mulher comum valia menos que a vida do filho da mulher superior e a vida da mulher comum não valia a vida da filha do seu agressor e assassino e, sim, um valor monetário de trinta siclos de prata. A vida do filho de uma escrava valia um valor de dois siclos de prata e a vida da escrava, vinte siclos de prata pagos ao seu senhor.

Na antiguidade, todos os impérios praticaram atos bárbaros, assim como na era moderna os estados imperialistas: Grã-Bretanha, França, Alemanha, Estados Unidos, mas o texto de Michael Löwy nos chama a atenção para uma evidência fundamental: em massacres como os de Hiroshima e Nagasaki, o objetivo técnico burocrático do experimento se sobrepõe a motivos de natureza religiosa ou baseada numa tradição.

Muitos casos contemporâneos de violência de indivíduos contra indivíduos, por outro lado, têm relação com a violência institucionalizada, técnico-burocrática, tutelada pelo “Estado de direito democrático”. As políticas de Estado também fazem o indivíduo. Um Estado que pune os que não podem pagar pelos trâmites da justiça e não pune, ou não pune da mesma maneira, os que podem é um Estado violento, bárbaro.

A barbárie moderna desnuda a contradição de um sistema. Na antiguidade, não se proclamou igualdade, liberdade, fraternidade entre os membros de uma sociedade, como se proclamou na Revolução francesa burguesa de 1789, ou os princípios universais e eternos de justiça na Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 1776 e, ao mesmo tempo, matou-se, perseguiu-se, segregou-se. Os senhores do passado proclamavam a inferioridade, a insignificância daqueles que eram vítimas de sua barbárie, não escondiam sua arrogância sob a máscara da democracia. A democracia, registra a história, tem seu berço na Grécia, no entanto, os gregos não proclamavam a igualdade entre todos aqueles que habitavam o seu império. Os gregos não criaram uma declaração universal de direitos, a cidadania grega era reconhecida aos cidadãos gregos e não aos estrangeiros (no governo de Sólon foi concedida a cidadania apenas aos estrangeiros artífices). Essa cidadania também excluía tacitamente as mulheres e os escravos, sem meias palavras. No tempo da política romana do pão e circo, o populismo não se confundia com o direito dos pobres e escravos.

Há um grande otimismo e euforia com as possibilidades da sociedade futura, comunicação, transporte, educação, medicina avançados, apesar disso, muitos seres humanos que já têm acesso a alguns desses avanços continuam comprometidos com a barbárie.

A semântica dos tempos democráticos e hipermodernos expressa uma cultura da violência. Diz-se “balada” para festa, divertimento; “bomba” para suplementos que prometem acelerar o metabolismo; “detonar” para algo que desagrada; “irado” para algo que agrada. Acostumamo-nos a ver e ouvir sobre violência no café da manhã, no almoço e no jantar. Que fazer? Os fatos acontecem, é a realidade. Em seu romance Isaias Caminha, Lima Barreto representa um jornal que forja notícias. Diz o narrador sobre um personagem desse jornal: “Se havia um atentado anarquista ou um terremoto na Europa e o telegrama era por demais conciso, Adelermo tinha o encargo de desenvolvê-lo, de explicá-lo, de reconstruir a cena para o gosto público [...]” (1990, p. 163). Nos nossos dias, com sistemas de captação e transmissão tão avançados, não se pode dizer que há escassez de informações, o “preenchimento” se dá de outra forma. Como se se tratasse de telenovela, acompanham-se as tragédias da realidade através de episódios formatados em série, com direito à exclusividade, novidade, momentos de clímax repetidos à exaustão, remissíveis a outros tantos casos. Como justificativa, diz-se que a violência existe e que precisamos tomar conhecimento dela e, ao mesmo tempo, abre-se a possibilidade para que ela se torne uma informação que entretenha. Diz-se que as execuções sumárias, especialmente as relacionadas ao tráfico de drogas, são acertos de contas, punição, exemplificação, demonstração de poder. No dia seguinte a um crime ocorrido, já existem recalcitrantes e a punição e demonstração de poder transformam-se em poder insano.

Temos evoluído tecnologicamente e, no entanto, muitas evidências provam que temos involuído humanamente. Perdemos a conta dos crimes repletos de versões desencontradas e de irracionalidade nos motivos, seja quando se trata de indivíduos uns contra os outros, seja de terrorismo de estado. Como apontou Löwy, a tortura não deixou de ser um instrumento nos tempos atuais. Os crimes em que o ser humano exercita o componente reptiliano de seu cérebro, em horror, não são diferentes dos crimes de acerto de contas praticados por pessoas envolvidas com venda e uso de entorpecentes nem da mortandade nos presídios praticada pelos detentos entre si, quando de uma rebelião nem da mortandade praticada por autoridades constituídas do estado, como ocorreu no massacre do Carandiru. Como não há bondade humana inata, só a capacidade reflexiva desenvolvida pelos seres humanos através dos séculos possibilita agir com    bom senso.

Nos tempos hiperviolentos, o prazer não é só matar, é também se mostrar matando, exibir a violência em rede, como demonstram filmes do cineasta Pedro Almodóvar e como demonstra a realidade em que presos filmam sua própria carnificina em rebeliões nos presídios ou, no caso das execuções tipo “acertos de contas” em que duas mulheres são esfaqueadas e tudo é visto ao vivo. As câmeras estão por trás de todos os casos, são as imagens que tanto trazem esclarecimentos quanto lançam mais dúvidas. Nada tão fundamentalmente diferente, nesses crimes, das loucuras praticadas por nobres senhores nos tempos do império romano, exceto por um detalhe que destoa daqueles tempos – o vedetismo das câmeras. São elas que põem em dúvida versões possivelmente falsas para os crimes. Muitos assassinos estiveram à mercê desse instrumento que parecem não compreender bem o alcance. Não pararam para pensar que as imagens os denunciariam. Os assassinos parecem não ter problema de consciência em relação a seus crimes, como teve o personagem Raskólhnicov, do romance Crime e castigo, de Fiódor Dostoievski. Matam e, despreocupadamente, vão ao shopping tomar um sorvete ou combinar uma versão para o crime ou matam num cargo governamental e o governo diz não ser responsável por essa ação. A tecnologia talvez torne mais fácil cometer os crimes, mas também torna mais fácil investigá-los.

Quando o escritor Isaac Asimov idealizou uma sociedade robotizada, os seus robôs eram exemplos de comportamento ético. Mesmo sendo máquinas não agiam sem escrúpulos e na mais completa indiferença à vida e ao sentimento dos outros. Para isso, ele planejou que os robôs seriam programados para obedecer a três leis que, na verdade, correspondiam às leis sobre as ferramentas. A primeira lei dizia que um robô não poderia fazer mal a um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofresse algum mal. A segunda, que um robô deveria obedecer às ordens dos seres humanos, a não ser que entrassem em conflito com a primeira lei. E a terceira, por fim, que um robô deveria proteger a própria existência, a menos que essa proteção conflitasse com a primeira ou a segunda lei.

Asimov especula um impasse para a convivência entre seres humanos e robôs. Se as três leis da robótica implicam que um robô não deve fazer mal a um ser humano, deve protegê-lo e obedecê-lo, além de que o robô deve proteger a própria existência, o robô não terá liberdade de agir quando o mal a um ser humano vier de outro ser humano ou de um robô. Essa é uma questão não somente de funcionamento de máquinas, mas, sobretudo, uma questão ética. Asimov propõe para solução desse impasse as “leis da humânica” que consistem em o ser humano não fazer mal a outro ser humano, dar ordens a um robô que preservem a existência desse robô, a menos que essas ordens não ponham em risco os seres humanos, e não fazer mal a um robô ou permitir que ele sofra algum mal, a menos que seja para salvar um ser humano. Em resumo: com as leis da robótica e da humânica, os conflitos seriam resolvidos. Isso também permite deduzir que a diferença entre robôs, os quais para Asimov não passam de ferramentas, e seres humanos está na consciência e na ética. A consciência é o que atrapalha Raskólhnkov em seu plano do crime perfeito. Seria possível programar um robô com consciência e, em caso positivo, qual a utilidade disso, se um robô deve ser uma ferramenta que otimiza os resultados e não um ser humano sujeito a impasses e imprevisões?

 Instrumentos de comunicação mais avançados, sistemas de educação virtual, carros que se autodirigem, carros que voam, robôs que fazem e comandam robôs não tornam, necessariamente, seres humanos melhores. Morria-se cedo em tempos passados pela não existência de antibióticos para curar uma infecção, mas hoje também se morre cedo pelo uso excessivo de antibióticos.  No artigo “A máquina e o robô”, publicado em 1978, Isaac Asimov lembra que toda descoberta e invenção humanas trazem a possibilidade do bem e do mal: “[...] qualquer avanço tecnológico, por mais fundamental que seja, tem esse aspecto duplo de bem e mal e, em consequência, é encarado com um misto de amor e de ódio” (s.d, p. 384) É conveniente outra observação no mesmo artigo de Asimov: “[...] Você pode usar uma faca para matar os inimigos, mas quando ela está fora do seu controle, pode ser usada pelos inimigos para matá-lo [...]” (s.d., p. 384). Essa observação pode servir para avaliar a ação daqueles que manipulam tecnologias, sejam em políticas de Estado de higienização étnica, sejam em ações de razão puramente instrumental, como pode servir para os casos individuais de apatia moral. Se os instrumentos avançam e muitos seres humanos regridem, como temos visto, que se pode esperar da vida humana na Terra? Apenas seres humanos melhores formam seres humanos melhores.


*Publicado originalmente em 2019

domingo, 9 de abril de 2023

A GREVE DOS OUTROS

                                                                                                    Lucilene Gomes Lima

 

 

Muitos daqueles que não estão participando de uma greve veem-na como um prejuízo certo para suas vidas. Por exemplo, greve dos profissionais de transportes coletivos que impede de ir ao trabalho, greve de professores que impede os alunos de estudarem e se formarem, de profissionais médicos que impede o acesso aos serviços de saúde.

Repetem-se os pensamentos e julgamentos banais sobre a greve apregoados pelos meios de informação, entretenimento e consumo – a greve não muda nada, os grevistas são preguiçosos, podemos viver sem a greve, buscar meios de reivindicação mais criativos, mais “produtivos”, mais úteis. No editorial do telejornal do grupo Bandeirantes, levado ao ar em 16 de outubro de 2013, destacou-se, sobre a greve dos professores no Rio de Janeiro, no mesmo ano, que ela prejudicou milhares de alunos, que “deixou os alunos sem educação alguma, liquidou o ano letivo de milhares de jovens”, que os alunos “passarão em branco por 2013, sofrendo prejuízos por toda a vida”. A “boa intenção” que justifica a greve – melhorar a educação – é boa, mas não é legítima porque “a causa se perde na longa duração”. O questionamento no editorial é: “A perda (de tempo) é um preço justo?” Em editorial anterior do mesmo grupo, de 07 de outubro de 2011, sobre a greve dos Correios (nesse caso, a greve se denomina como do órgão, não dos profissionais) a pauta é construída em torno do descrédito e da falta de autoridade do poder público para reprimi-la. A atuação das autoridades não é criticada pelo estado de coisas que permitiu serem produzidas para os trabalhadores (sucateamento, aumento da carga de trabalho, achatamento salarial, desvio de recursos), mas por não reprimir os grevistas. Pontuam-se a falta de ação das autoridades diante de uma greve e a “covardia do governo porque não toma providências”. A greve, sentencia o referido grupo no editorial, “significou 23 dias seguidos de desrespeito à população brasileira”. O comentário de Alexandre Garcia (no grupo Globo) sobre a greve dos Correios é mais dúbio, diz que “o público sai perdendo sempre na greve”, cantilena usual dos editoriais, mas, também, acrescenta a informação de que os carteiros vão ter de trabalhar no sábado e domingo para por a correspondência em dia. O discurso dos meios de informação, entretenimento e consumo ecoa o discurso dos empregadores, dos patrões, é unilateral.

Os trabalhadores desses meios são trabalhadores assalariados, como outros, apesar de serem porta-vozes dos patrões. Quando narram a opinião do grupo em que trabalham, alguns pensam como o grupo, outros endossam seu posicionamento por temerem expressar sua opinião e perderem o emprego. Ao se desligarem desses grupos por alguma obrigação empregatícia que o empregador não cumpriu, por um reajuste salarial não obtido, reivindicam na justiça seus direitos e enquanto os direitos não são reconhecidos judicialmente e o contrato de trabalho que assinaram continua em vigência, recusam-se a trabalhar. Não acontece situação análoga quando um empregador de outro setor promete um reajuste para uma categoria de trabalhadores e não cumpre, quando oferece um reajuste abaixo das perdas salariais, quando retira paulatinamente direitos e precariza as condições de trabalho de categorias de trabalhadores e esses trabalhadores reivindicam seus direitos?

Trabalhadores se acostumam a apanhar o ônibus todos os dias e a não se perguntarem como esse ônibus trafega, em que condições o motorista dirige e por isso se surpreendem quando a categoria de motoristas de repente faz greve. As condições de trabalho dos motoristas e cobradores afetam diariamente os passageiros também, pois a precarização das condições de trabalho de trabalhadores de um determinado setor público ou privado, como os bancos e as empresas de transporte coletivo, por exemplo, atinge os usuários, num efeito cascata. Um conto exemplar de Antônio Alcântara Machado. “Apólogo brasileiro sem véu de alegoria” sequencia em seu enredo essa letargia cotidiana, o desaperceber da precariedade em que se vive, através da história de uma viagem de trem de Maguari para Belém, levando trabalhadores de um matadouro. Os vagões do trem estão todos sem luz, mas os passageiros parecem não se importar, encaram normalmente a viagem. Por força do hábito de sempre assim viajarem, conversam, cantam, assobiam. Somente um passageiro, um velho flautista cego, estranha a falta de luz, quando o seu guia lhe informa que o trem trafega no escuro. Ele estranha e se inquieta, indigna-se, incitando os outros passageiros a protestar. Só então é que os passageiros percebem o tratamento aviltante que lhes é dado, apesar de pagarem a passagem, e o coro de reivindicações engrossa, cobrando o direito que é usurpado. A revolta dos passageiros magarefes faz com que eles iniciem uma ação de protesto, cortando os assentos dos vagões como se estivessem extirpando a carne no matadouro. Depois que o trem chega à estação em Belém, a polícia é informada do acontecimento e abre-se um inquérito para investigar o ato dos revoltosos, mas a maioria nega participação no evento e a dar informações. Somente um passageiro relata que o episódio da revolta se deu por causa da falta de luz nos vagões e que quem começou o protesto foi um velho cego.  O delegado não acredita em suas palavras, toma-as como mentira e desrespeito e o prende.

Do outro lado da greve do trabalhador, há o consumidor, que não é uma ilha como ilusoriamente nos querem fazer acreditar os meios de informação, entretenimento e consumo, mas também um trabalhador. O pensamento de que reivindicar não resulta em  nada pode ser aplicado a esse consumidor/usuário quando ele for comprar um produto com um preço na etiqueta e o produto estiver com um preço superior no caixa, quando um produto estiver com a data de validade adulterada em relação a sua conservação e condição de ser consumido, quando houver majoração de serviços ou mudança de qualidade e quantidade sem o consumidor contratante desse serviço ser consultado, quando um serviço for prometido e não prestado, quando se comprar um produto com defeito ou quando um conserto de um produto for mal realizado ou nem realizado? 

Assim como os empregados reivindicam direitos aos empregadores, empregadores fazem valer seus direitos em relação aos seus empregados. O empregador diz o que é melhor para ele (empregador) quando precariza o trabalho do empregado, contratando-o temporariamente, reduzindo seus direitos e garantias trabalhistas; quando reduz o salário do empregado; quando aumenta a jornada de trabalho etc. Desse modo, o empregado é aviltado em seus direitos com prejuízos para toda a vida.

O detentor dos meios de produção que pode expressar seus interesses através dos salários que paga aos seus empregados, da jornada de trabalho que acorda com eles, da demissão com ou sem justa causa no setor privado, da exoneração no setor público, dos benefícios que oferece/cumpre, segundo as leis trabalhistas, tem vários direitos. O empregado tem o direito de se recusar a trabalhar, dizer não a uma condição injusta e, fazendo isso, ele corre o risco de ser demitido. O empregador não corre riscos por reduzir salários, demitir, o sistema o protege, ele pode fazer tudo isso apoiado por associações, federações da indústria, do comércio e por instituições do Estado. Capital e trabalho não estão, portanto, em igualdade de condições. Diz Alexandre Garcia que “o público sai perdendo sempre numa greve”, que a greve dos Correios prejudica a população. Se a greve do funcionalismo público, como ressalta Garcia, é também contra o patrão e, por isso, lembra o jornalista, torna-se despropositada por ser o patrão o próprio público, o público, como patrão, ainda que seja pelo sistema de representação democrática, no qual não é ele que gerencia diretamente os recursos, tem o direito de requerer os lucros do seu investimento em impostos, taxas.

A maioria da população sofre com a espera para ser atendida nos postos de saúde e nos hospitais, com o tratamento ou não tratamento que lhe é dado. Sofre como correntista/consumidora com os juros escorchantes, com as facilidades enganosas dos cartões de crédito, dos empréstimos financeiros e não somente quando a greve dos transportes lhe deixa sem meios de ir ao trabalho ou ao lazer, nem somente quando a greve dos bancários dificulta as operações financeiras e de solvência de seus débitos, nem só quando os médicos, técnicos, profissionais da área de saúde cruzam os braços numa greve.

A crítica negativa à greve dos outros é a expressão para a falta de solidariedade humana. O empregado não grevista de hoje poderá ser o empregado grevista de amanhã, conforme aquela reflexão maiakoviskiana que prevê as consequências de não nos importarmos ou não nos incluirmos entre os outros. A principal mensagem dessa reflexão é que se não nos importarmos com o problema dos outros por ele não nos atingir, endossando, no caso da greve, o pensamento banal de que nada muda, então, quando quisermos, e precisarmos, já não poderemos mais fazer a greve porque a deslegitimamos.    

quarta-feira, 5 de abril de 2023

O ATO DE VER

                                                               Isaac Warden Lewis 

Ver a árvore

é ver as folhas.

Ver as folhas

é ver os ramos.

Ver os ramos

é ver o tronco.

Ver o tronco

é ver a raiz.

Ver a raiz

é ver o solo.

Ver o solo

é ver a água.

 

Ver o solo e a água

é ver a Terra e o sol.

Ver a Terra e o sol

é ver a galáxia e o universo.

Ver a galáxia e o universo

é ver o ser humano e o telescópio.

Ver o ser humano e o telescópio

é ver a vida e o trabalho.

Ver a vida e o trabalho

é ver a consciência e a luta


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Do livro "Sentimento e consciência"..

A PRESSA É A ALMA DOS NOSSOS NEGÓCIOS

                                                                                                      Lucilene Gomes Lima


A música “Sinal fechado”, de Paulinho da Viola, é uma síntese criativa sobre o tempo e a vida na era em que vivemos. O conteúdo dos versos não é mais que um diálogo banal de qualquer dia, de todos os dias: Olá, como vai? /Eu vou indo e você, tudo bem? /Tudo bem eu vou indo correndo /Pegar meu lugar no futuro, e você? /Tudo bem, eu vou indo em busca /De um sono tranquilo, quem sabe... /Quanto tempo... pois é... /Quanto tempo /Me perdoe a pressa /É a alma dos nossos negócios /Oh! Não tem de quê /Eu também só ando a cem /Quando é que você telefona? /Precisamos nos ver por aí /Pra semana, prometo talvez nos vejamos /Quem sabe? /Quanto tempo... pois é... (pois é... quanto tempo...) /Tanta coisa eu tinha a dizer /Mas eu sumi na poeira das ruas/ Eu também tenho algo a dizer /Mas me foge a lembrança /Por favor, telefone, eu preciso, /Beber alguma coisa, rapidamente /Pra semana /O sinal... /Eu espero você /vai abrir... /Por favor, não esqueça, /Adeus...

Esses versos caracterizam a vida cotidiana em aspectos fundamentais, sobretudo, como se processa o seu compasso. Quando os personagens se falam sem tempo de realmente conversar ou dialogar expressam o ritmo acelerado que comanda o viver. A leitura da ambiguidade transmitida nos versos Me perdoe a pressa /É a alma dos nossos negócios revela que os falantes estão com pressa não somente porque alguma atividade os força a isso, mas porque a própria pressa se faz a razão principal de seu viver.

Se o passado parece ter sido posto de lado na vida contemporânea, não é no presente que se vive, é o futuro que comanda a vida. Para o personagem que “vai indo” de modo algum estão apenas transcorrendo os dias de sua vida. Os gerúndios que se desdobram “vou indo correndo” expressam a ideia do movimento contínuo que se caracteriza no verso seguinte: “Pegar meu lugar no futuro, e você?” Na resposta proferida pelo outro interlocutor, apresenta-se o estado de constante vigília e agonia, também característico da vida contemporânea: “Tudo bem, eu vou indo em busca/De um sono tranquilo, quem sabe...”

A vida dinâmica, que não se prende ao passado nem se detém no presente, carece de motivação para uma conversa: “Quanto tempo... pois é... quanto tempo...”. É veloz: “Eu também só ando a cem” e sem nexo de causalidade, como os versos do diálogo desconcertado: “Quando é que você telefona? /Precisamos nos ver por aí /Pra semana, prometo, talvez nos vejamos /Quem sabe?”. De tão abarrotada, a vida também se perde no vácuo da memória na fala dos interlocutores: “Tanta coisa eu tinha a dizer”/ Mas eu sumi na poeira das ruas/ Eu também tenho algo a dizer/ Mas me foge a lembrança” e as falas voltam a se embaralhar: “Por favor, telefone, eu preciso /Beber alguma coisa, rapidamente /Pra semana /O sinal /Eu espero você /vai abrir.../Por favor, não esqueça, /Adeus...”.

Quem pode deixar de sentir alguma afinidade com o conteúdo desses versos? Mesmo quem se sinta emparedado pela vida contemporânea e não compactue com seus valores, não pode deixar de experimentar seu turbilhão. Vive-se sob estresse e estresse e velocidade combinam. Quer-se tudo mais rapidamente, a conexão de rede mais rápida, o relacionamento amoroso mais rápido, o sexo mais rápido, sem preliminares, a comida mais rápida, atropelando, inclusive, o metabolismo animal e vegetal, o entorpecente mais rápido, que faça efeito instantâneo, o dinheiro mais rápido que compre tudo a toda hora, o desaparecimento do corpo mais rápido após a morte, através da cremação, a educação mais rápida, para ir direto ao ponto, ao que interessa, ao invés do conhecimento profundo, o conhecimento aplicado ao mercado. Rapidez engloba quantidade. Mais rápido, mais. Querer tudo, fazer tudo, acumular tudo. Fazer vários cursos, fazer um curso em menos tempo, experimentar tudo, sem ter tempo de saber o porquê de se experimentar. A ânsia, a angústia de experimentar tudo está em tudo. O marketing proclama “tudo tem importância”, as mídias determinam “Tudo agora”. A velocidade está em tudo. Tudo o que levava tempo para se desenvolver e que demorava a se acabar, vivo ou artificial, tem seu começo e seu fim acelerados. “Tudo o que é sólido desmancha no ar”, conforme se lê em O capital: “[...] Todos os limites da moral e da natureza, de idade e sexo, de dia e noite, foram rompidos. O capital celebrou suas orgias” (Marx, apud Berman, 1986). E o que é a letra de outra música, também composta por Paulinho da Viola, “Pecado capital” se não outra síntese dessa vida comandada pelo capital: “Dinheiro na mão é vendaval /É vendaval! /Na vida de um sonhador /De um sonhador! /Quanta gente aí se engana /E cai da cama/ Com toda a ilusão que sonhou /E a grandeza se desfaz /Quando a solidão é mais /Alguém já falou... /Mas é preciso viver /E viver não é brincadeira não /Quando o jeito é se virar  /Cada um trata de si /Irmão desconhece irmão /E aí! /Dinheiro na mão é vendaval /Dinheiro na mão é solução /E solidão! [...]”

Mas, voltemos ao título da letra “Sinal fechado” – por que ela assim se intitula, se fala de um tempo consumido, da celeridade voraz dos tempos contemporâneos? Em primeiro lugar, porque o sinal está fechado para a vida lenta, gradativa e, realmente, progressiva; em segundo, porque somente num breve momento, como o de um sinal fechado, é possível conversar, é possível sair de uma rede que não socializa e, sim, individualiza, e realizar uma comunicação ainda que fragmentada. Como o tempo contemporâneo e suas antinomias, a letra e a realização musical são representadas por descompassos.  A letra fala de uma correria crônica num tempo em que o que mais se perde é tempo e é cantada na voz pausada, tranquila de seu compositor num ritmo lento, elegíaco, entre as pausas das estrofes.

Mestre Paulinho (mais um mestre na periferia do capitalismo) adaptou com sabedoria o plano de expressão de sua letra ao plano de conteúdo. Enquanto o conteúdo dos versos é aparentemente simples, a forma como esses versos se organizam demonstra um acurado senso de reflexão.


*Publicado originalmente no blog em 02.11.2018