Nada em Vivi agora lembrava
outros tempos.
Recostada na grade do portão da
casa de seus donos, resumida à pele ossos e feridas, ela dava, de instante a
instante, longos suspiros como a lastimar sua sorte. Ninguém lhe dizia mais
qualquer palavra agradável. Quando se lembravam de sua incômoda presença, era
para lhe lançar um olhar de asco ou para enxotá-la a um lugar o mais distante
possível.
À noite, recolhia-se para os
fundos da casa. Ali mesmo jogavam sua comida. Ela cheirava, provava um bocado e
abandonava o restante às formigas. Nos bons tempos, a comida era recebida com
festa. Era uma comida melhor, também. Depois que ela se tornou abjeta,
reservaram-lhe a pior alimentação: restos de comida estragada e pelancas
fétidas.
A sua presença se tornou
completamente desnecessária quando chegou o novo cachorro. Viu a alegria dos
donos da casa ao recebê-lo, as crianças brincarem com ele na mais expansiva
alegria, os cuidados que recebeu, a coleira nova, o banho.
Recolheu-se definitivamente para
os fundos da casa porque a frente havia sido reservada para o novo cão. Não
poderia saber, entretanto, que os donos tinham planos de se livrarem dela o
mais rapidamente possível. Assim foi que, um dia, chegaram os homens do canil
para levá-la.
Presenciou a violência da captura
dos cães que se encontravam perambulando pela rua e quando chegou a sua vez de
entrar no carro, uivou com tanto desespero que parecia estar sendo sacrificada.
Deixava para sempre a casa onde
tinha vivido desde pequena. Nunca saíra daquela rua ou daquele bairro. Poucas
vezes transpusera o portão da casa. Era cativa, mas se acostumara a isso. Sua
vida estava ligada aos limites da casa e guardá-la era sua única tarefa.
Após a chegada ao canil, ela e os
outros foram forçados a entrarem num grande engradado. Incapaz de compreender o
que isso significava, ela aguardou resignadamente sua sorte.
Para os funcionários do canil, a
expectativa em relação à chegada dos cães era sempre a mesma.
- Mais vadios para sacrificar? –
perguntava um funcionário, apontando para um grupo de cães recém-chegados.
- Pois é. Fizemos uma limpeza na
rua, mas tem uma que veio de encomenda. Ficou imprestável e os donos queriam se
livrar dela.
Um homem que observava a chegada
dos cães se aproximou e, curioso em relação à conversa, indagou:
- Vão sacrificar todos os
cachorros?
Os funcionários se entreolharam. A
pergunta os surpreendeu e como desconheciam o interlocutor, interessaram-se em
saber quem era e o que estava fazendo ali.
É dono de algum desses cachorros?
- Não, não – esquivou-se o
desconhecido. – Sou primo do Ivan, estou esperando por ele.
- O Ivan não vem trabalhar esse
mês, está de férias – informou o funcionário.
- Ah ... – murmurou o
desconhecido, desapontado pela viagem perdida.
O funcionário, notando que o
homem não tinha aspecto de um morador da cidade, perguntou:
- Veio de muito longe para falar
com ele?
- Sim, moro num sítio longe da
cidade. Vou voltar ainda hoje, aproveitando uma carona.
- E está interessado em algum
desses cachorros?
- Um cachorro faz falta.
- Se quiser levar algum...
O homem aproximou-se do grupo de
cães, olhou-os com atenção e apontou para Vivi, dizendo:
- Posso levar essa do pelo
marrom?
O funcionário riu e duvidou:
- Essa cadela velha? Por que não
escolhe outro?
- Quero essa. Tem focinho de
caçadora. Eu não me engano.
- Mas está tão feia e magra!
- Ela vai ter muito o que comer
no mato.
- Se é assim, então, pode levar.
Vivi não fez objeção a que o
homem amarrasse uma corda em seu pescoço e assim ele a levou do canil. Viajaram
na carroceria de uma caminhonete por vários quilômetros. Por fim, a caminhonete
parou em frente a uma estrada de barro. Desceram e, a partir daí, caminharam um
longo percurso a pé. Entraram num caminho cercado por uma mata densa e foram
dar numa clareira onde se avistava uma casa pequena, de paredes de madeira e
cobertura de zinco.
Vivi estava tão cansada que se
prostrou no tapete de folhas à entrada da clareira. A língua de fora, o coração
batendo num ritmo acelerado. O som de sua respiração se destacava no silêncio
do lugar. O homem compreendeu que ela não poderia dar mais um passo e não
insistiu que o acompanhasse, desamarrou a corda de seu pescoço e seguiu sozinho
até a casa.
Todo o dia transcorrera de forma
inusitada para Vivi, a começar pela partida da casa, o transporte para o canil
até sua chegada àquele lugar. Vira tantas coisas e percebia-se num mundo
completamente diferente, olhava ao redor e não via os muros da casa, o portão.
Seu faro detectava os odores novos dos frutos adocicados caídos no chão, das
cascas das árvores, úmidas pela água da última chuva que caíra.
Depois que se sentiu mais aliviada
do cansaço da viagem, ela matou a sede numa poça d’água. Em pouco tempo,
escureceu e o lugar transformou-se em uma algazarra de sons.
Ela nunca havia estado numa tal
escuridão, via apenas pequenos pontos de luz que acendiam e apagavam. Essa
dança dos vaga-lumes a deixou temerosa. Foi- se esconder embaixo da casa. Pelas
frestas das tábuas do assoalho, apareceram outros pontos de luz. Ela percebeu
que ali estaria mais segura e se manteve quieta, esperando.
Estava faminta e à exata hora em
que costumavam lhe trazer o alimento já guardava ansiosamente. Passaram-se
horas e nada veio, mas ela continuou esperando. E esperou a noite toda.
Somente quando amanheceu, o homem
saiu de casa. Ela acompanhou atentamente todos os movimentos dele. Tentando
atrair sua atenção, passou a segui-lo.
Chegando até um riacho, ele
arregaçou as pernas da calça, molhou os pés na água, depois apanhou um pouco de
água numa cuia e lavou o rosto.
Vivi não ousou se aproximar,
estava com sede, mas a visão de tanta água lhe causava temor.
O homem continuou ignorando-a.
Sentou-se à beira do riacho e começou a pescar. Fisgou alguns peixes, fez um
fogo e começou a assá-los.
O cheiro do peixe assado
impacientou-a. Seus olhos, fixos no homem, tinham uma expressão suplicante.
O homem, que parecera indiferente
até aquele momento, compadeceu-se em vê-la tão aflita por um alimento e atirou
um pedaço de peixe para junto dela. Ela engoliu tudo de uma só vez. O alimento
compartilhado foi o primeiro elo de comunicação entre os dois. Grata, ela veio
se deitar quase aos pés do homem. Ele deu três leves batidas em sua cabeça e
começou a falar com a cadela como se ela fosse capaz de entender suas palavras.
- Você estava esperando que eu
lhe desse comida? Então não é uma caçadora como eu pensava?
Vivi fez um movimento de cabeça,
projetando o focinho para cima e ele interpretou o gesto como uma resposta.
- Você é mesmo uma caçadora? É
isso que quer me dizer? Pois vamos ver, vamos ver. Mas, agora, quer que eu
divida minha comida com você?
Quando ela viu o pedaço de peixe
balançando entre os dedos do homem, deu a resposta mais convincente possível,
agitando o rabo e salivando abundantemente.
No caminho de volta a casa, Vivi
acompanhou o homem lado a lado. Seu andar e seu ar de altivez demonstravam que
sentia satisfação de estar na companhia do novo dono. Às vezes, ela se
adiantava a frente dele, atraída por algum movimento entre as folhagens, mas
retrocedia quando se deparava com a mata cerrada e voltava a acompanhá-lo pela
picada.
O homem voltou muitas vezes a
pescar no riacho em sua companhia. Ela perdeu o medo de se aproximar da água.
Saciava a sede tranquilamente e a confiança que adquirira de andar dentro da
água lhe deu também a presteza de capturar vez por outra um peixe.
No sítio, Vivi passou a ter uma
vida independente. Descondicionou-se de esperar a alimentação sempre à mesma
hora e aprendeu a ir além dos limites da casa.
Passava todo o dia num trabalho
incansável de farejar os esconderijos de pequenos lagartos e quase sempre seu
esforço era recompensado com a captura de algum deles. Nessa atividade,
descobrira os segredos da sobrevivência: mantinha-se longe das cobras e dos
sapos venenosos.
Certo dia, chegou com um tatu que
havia caçado e abatido. Largou-o no terreiro em frente da casa e ficou olhando
para o homem com a língua de fora, ofegante. Ele deu uma batidinha em sua
cabeça, chamou-a de grande caçadora e logo em seguida começou a cortar a caça,
e não esqueceu de recompensá-la com uma
farta porção. Desse dia em diante, ela passou a trazer sempre os produtos de
suas maiores calçadas e a fazer o mesmo gesto de depositá-los aos pés do homem
e ele sempre a recompensava com justiça. Sua sobrevivência não dependia dessa
alimentação que ele lhe dava, mas ela cumpria o ritual de partilha como se isso
representasse o seu ato de gratidão para com ele.
Passaram-se meses em que os dias
nasciam abrasados pelos raios do sol. Dias de atividades e cansaços. Depois,
chegou a temporada das chuvas. As folhas das árvores se renovaram e ganharam um
matiz verde-claro. Flores desabrocharam em todo o seu esplendor de cores e
formas. Nas árvores frutíferas, despontaram frutos azedos e adocicados que
cresceram e caíram no chão, formando pastas escorregadias. O capim cresceu
viçoso, alastrando-se por toda parte.
A cadela Vivi adaptou-se às
extremas temperaturas do verão e ao aguaceiro do inverno. Seu pelo se renovou,
crescendo mais espesso e brilhante. O corpo ganhou carne e alguma reserva de
gordura. Os olhos adquiriram vivacidade e perscrutavam tudo ao seu redor.
*Do livro O julgamento e outras
histórias