sábado, 2 de dezembro de 2017

O MEU CANTO

                                                                                                       Isaac Warden Lewis
O meu canto é o canto do meu povo.
O meu povo enfrenta a diáspora.
A diáspora ensina o meu povo.
O meu povo aprende a sofrer.
 
Com o sofrer, aprende a viver.
O meu povo ri, chora, canta,
dança, samba, lamenta, trabalha,
luta, resiste, sobrevive.

Ainda assim, o meu povo é apartado, perseguido,
discriminado, vilipendiado, massacrado.
Por isso eu canto o canto do meu povo.
O canto do meu povo denuncia os males da diáspora.

O meu povo saiu da África negra
para viver a África colonial no Brasil.
Ainda assim, o meu povo ri, chora, canta,
dança, samba, lamenta, trabalha,
luta, resiste, sobrevive.
 
Esse é o canto do africano
que nasce e vive no Brasil.
É o canto da alegria e da tristeza.
É o canto da luta e da resistência.
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Do livro "Sentimento e consciência"

SAMBA E POESIA


                                                           Isaac Warden Lewis
O samba é poesia
Transforma melancolia
               em pura alegria.
 
Seu ritmo sagrado, criado
pelos negros escravizados,
         é cantado e dançado.
 
Seu canto denuncia a dor
do povo africano no Brasil.
Também destaca a luta
desse povo em prol de sua cor.
 
Sua dança tanto sublima
o dia a dia do povo negro
quanto afirma e resgata
sua dignidade africana.
 
O samba é poesia.
Seu ritmo sagrado
é um ato de libertação.
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Do livro "Um pássaro que canta"

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

VIDA E MORTE DOS MENINOS DE RUA


                                                                                        ISAAC WARDEN LEWIS

Numa manhã cinzenta,
um crime sangrento:
Meninos sonolentos
com os corações lentos
foram assassinados.
 
Viver sonhando
Sonhar dormindo
Dormir morrendo
Morrer na rua
Foram  seus  legados
 
Numa manhã cinzenta,
um crime sangrento:
Meninos sonolentos
Com os corações lentos
foram assassinados.
 
Vida com paternidade.
Crescimento com  escolaridade
Direito à justa sociedade
Usufruto de humana solidariedade
foram-lhes negado.
 
Numa manhã cinzenta,
um crime sangrento:
Meninos sonolentos
Com os corações lentos
foram assassinados.

 Meninos marginais
Meninos carentes
Meninos pivetes
Meninos de rua
Foram-se titulados.
____________________________________
Do livro "Sentimento e consciência"

 

 

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

AMAZÔNIA: O LEGADO DOS POVOS DA FLORESTA


                                                                                        Isaac Warden Lewis
Ao longo do litoral do Brasil,
há o mar de água salgada.
Há beleza no mar de água salgada
 
Em toda a Amazônia,
há mares de água doce:
Solimões, Purus, Amazonas, Negro,
Madeira, Tapajós e outros rios.
Há beleza nos mares de água doce também.

Além disso, na Amazônia,
Há mar de árvores.
É a floresta amazônica.
Há beleza no mar de árvores também.

Na Floresta Amazônica,
os povos da floresta lutam para defender e resgatar
o legado milenar de seus antepassados:
O respeito ao ecossistema da Amazônia.
Os conhecimentos de Ecologia.
A prática da economia sustentável.
O cultivo de plantas comestíveis.
O uso de plantas medicinais.
A preservação dos mares de água doce.
A conservação do mar de árvores.

Na Floresta Amazônica,
a beleza maior está na luta e resistência
dos povos da floresta para defender  sua dignidade.
______________
Do livro "Um pássaro que canta".

domingo, 3 de setembro de 2017

ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS DE UM PAÍS COLONIZADO


                                                         Isaac Warden Lewis
No século XIX, Karl Marx sugeriu que a humanidade contemporânea ainda vivia na pré-história. Hoje estamos no século XXI, que é um tempo convencional, estabelecido pelos papas da Igreja Católica Apostólica Romana.
A cada dia que passa, penso que Marx estava absolutamente certo, pois acredito que a discussão sobre se o ensino religioso deve ser ministrado por um sacerdote (padre, pastor, rabino, imã, pai de santo ou mãe de santo) ou um professor ou cientista é uma discussão medieval, feudal, inquisitorial.
Infelizmente muitos crentes e sacerdotes insistem em interferir nas ações políticas do estado laico, não se dando conta de que há muito tempo foi deliberada a separação entre o estado e a igreja, entre o profano e o religioso. Esquecem que a luta histórica das igrejas e das seitas religiosas, em geral, foi contra a interferência do estado nas ações de suas organizações.  Esquecem também que historicamente condenavam práticas profanas e, depois, passaram a praticar ritualisticamente ações profanas.
No Brasil, colonizado pelos portugueses, os padres católicos em suas escolas e igrejas, não discutiam os conhecimentos científicos desenvolvidos após a Renascença e somente, a partir de 1930, a muito custo e com muita luta, os pedagogos, professores, cientistas e escritores, comprometidos com a renovação da educação nacional, começaram a propor o ensino de ciências nas escolas. Graças aos educadores da Escola Nova, o Brasil tem seus institutos de pesquisa, suas universidades, onde muitos alunos e professores estão comprometidos com a ciência, com a verdade.
Se tivéssemos assumido as ideias e as críticas negativas dos setores religiosos, nunca saberíamos que os vírus e as bactérias provocam doenças, as quais são combatidas através de medidas profiláticas, higiênicas e medicinais propostas pelos cientistas.
Marx declarou que “a religião é o ópio do povo”. Penso também que Marx estava certo, pois o currículo escolar prevê o ensino de História e de Geografia. Numa educação de qualidade, os educandos podem e devem aprender sobre a história das religiões quando estudam História Geral e podem e devem aprender sobre as religiões de uma país, de uma região quando estudam Geografia.
Entendo que educação de qualidade é aquela que propicia práticas de ensino-aprendizagem  para que os educandos aprendam a ler e a escrever, a refletir criticamente sobre o que leem e escrevem, aprendam a aprender, metódica e sistematicamente, os conteúdos curriculares e, por fim aprendam a relacionar os conteúdos com  a realidade natural e social em que vivem.
Não acredito que a maioria dos sacerdotes esteja disposta ou tenha competência para proporcionar um ensino pleno do desenvolvimento das religiões ao longo da História da Humanidade e, em especial, a história de sua própria religião.  

sábado, 5 de agosto de 2017

QUESTÃO DE SEGURANÇA

                                                                                         LUCILENE GOMES LIMA
Oito horas da manhã.
O bairro do Sossego inicia o seu formigar diário. Moradores descem e sobem  as ladeiras tortuosas e esburacadas. Vendedores ambulantes fazem pregões em busca de vender alimentos de consumo rápido. Do interior das moradias, emana o odor do café da manhã. Algumas crianças brincam à porta das casas. Uma das ruas do bairro ostenta sobre o chão uma grande mancha vermelha. Uma mancha banal, incapaz de sensibilizar, de expressar qualquer angústia da morte. Uma mancha que denuncia a lembrança de um crime ocorrido ali. No entanto, nada diz aos transeuntes que passam apressados. Manchas como essa aparecem com certa frequência nas ruas do bairro do Sossego. De vez em quando, as ocorrências criminais ainda fazem parte dos assuntos do dia dos moradores, que as comentam com  naturalidade.  Numa casa desse bairro, mora Louro, que chegou há pouco do distante condomínio residencial em que trabalha como segurança. Fatigado, espera a chegada do pão, que seu filho foi comprar num quiosque próximo. Comer alguma coisa, deitar-se e recuperar algumas horas de sono é tudo o que deseja no momento.  A sua companheira dissolve  numa vasilha com água morna umas poucas colheres de leite em pó. Louro fixa seu olhar no conteúdo da vasilha. Aquele líquido triste está ali todas as manhãs. “Isso é uma vantagem” – pensa ele. Entretanto a consistência do líquido não respalda esse pensamento. O filho traz o pão. Louro molha-o no café com leite e mastiga-o devagar. A manteiga acabou. O pão teria outro sabor se houvesse a manteiga. Mas Louro pensa que pode passar sem ela. É um homem resignado, está acostumado a privações. O diabo do pão é que insiste em pedir  a manteiga: teima em  não ter sabor: faz bolo na garganta. Um pão cheio de caprichos.
Nove horas da manhã.
Através das grandes luminárias externas que vão-se apagando pouco a pouca, as casas do Boulevard La Paix dão os primeiros sinais do seu despertar. Nas extensas alamedas do condomínio, o amanhecer já se anunciou há muito pelo canto mavioso dos pássaros e pelo fulgor dos raios do sol que banham as copas de exuberantes árvores. O Boulevard La Paix é um admirável exemplo de um paraíso particular. Tem o silêncio, o ar puro e o isolamento. Aqui se situa a casa do patrão do Louro, senhor Afonso Hilário Gonçalves. Como atividade rotineira de todas as manhãs, a governanta liga para o quarto do senhor e senhora Gonçalves e anuncia que o café está servido. O senhor Gonçalves desce. A senhora Gonçalves costuma acordar mais tarde. À mesa, estão dispostos queijos, pães finos, geleias, frutas, sucos e os tradicionais café e leite. O senhor Gonçalves seleciona num sofisticado prato de porcelana um tenro pedaço de queijo. Ao ser degustado, o queijinho derrete-se todo meloso. Após o café, o senhor Gonçalves, acompanhado do seu segurança pessoal, dirige-se a “Gonçalves & Malheiros Financiamentos S/A” para mais um dia de trabalho na vice-presidência.
Dez horas da manhã.
A companheira de Louro faz a faxina diária na sua casa. Inconscientemente, detém-se mais na limpeza da televisão comprada recentemente, um tesouro que ela lustra para que nunca perca a magia do novo.
Onze horas da manhã.
A senhora Gonçalves informa à governanta que se sente indisposta e não descerá à sala de refeições. Manda que seja servido o  breakfast em seu quarto. O breakfast chega em dez minutos, mas ela manda que seja levado de volta. Lembra-se que está de dieta.
Quatro horas da tarde.
A companheira de Louro lava roupa numa tina que fica na parte externa da casa, enquanto ele se prepara para voltar ao trabalho. Na rua, dois homens observam discretamente, conversam algo entre si e se separam. Poucos minutos depois da saída de Louro, um dos homens se aproxima e, dizendo estar à procura de um endereço, pede um copo de água à companheira de Louro. Aproveitando o momento em que ela entra para pegar a água, o homem observa, pela porta semiaberta, os objetos da casa. Nota, também, as portas e as janelas em mau estado e as fragilidades das trancas. Bebe a água, agradece e vai embora. A companheira de Louro volta à lavagem de roupa.
Cinco horas da tarde.
Louro está pronto para recomeçar mais um turno de trabalho na residência dos Gonçalves. Na entrada do condomínio, é revistado pelo segurança da guarita. Faz parte do sofisticado sistema de segurança do condomínio a revista de todos que entrem como visita ou empregado. Ao entrar na mansão, Louro assume seu posto. Inicia uma inspeção rotineira no sistema de segurança da casa. Entre outras coisas, verifica se os alarmes estão em perfeito funcionamento, faz uma limpeza no rifle automático. Depois, se coloca em seu posto de observação na sala equipada com  circuito interno de televisão.
Dez horas da noite.
A companheira de Louro cochila enquanto assiste à televisão. Os filhos já estão dormindo profundamente. Na porta do fundo, as frágeis dobradiças cedem à pressão de um pé-de-cabra. O barulho atrai a atenção da mulher, que se levanta e caminha até a cozinha. Ao sentir a aproximação, o invasor se esconde por trás de um armário. A mulher ouve um outro barulho na direção da sala, retorna e depara-se com um homem de arma em punho, apontada para as crianças. Ela tenta gritar, mas o homem que se escondera na cozinha chega, domina-a a abafa seu grito. Ela luta e tenta inutilmente desvencilhar-se. Uma das crianças que ainda dormia, acorda assustada e grita. O assaltante desnorteia-se e a alveja. Vendo o filho ser atingido, a mulher ganha uma força inesperada e consegue se soltar dos braços que a retém. Corre em direção ao filho baleado, mas os outros filhos  também se precipitam em direção a ela. Os dois assaltantes atiram. A mulher e as crianças são atingidas. Os assaltantes ainda têm tempo de colocar numa bolsa algumas coisas de pouco valor e fogem pela porta da frente.
Onze horas da noite.
A fortaleza dos Gonçalves descansa em paz a muitos quilômetros do barulho das sirenes e das luzes intermitentes que rasgam a escuridão da noite, cheia de sobressaltos e medos.
Onze e meia da noite.
A governanta atende ao telefone na residência dos Gonçalves. Uma voz pede para falar com alguém chamado “Louro”, identificando-se como sua vizinha. É caso de morte, explica. A governanta, com a voz claramente irritada, informa que se trata de um engano. Ali não reside ninguém com tal nome. E desliga.   ]
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Do livro “O mestre e o discípulo”

quarta-feira, 28 de junho de 2017

O MENINO QUE ERA VICIADO EM VIDEOGAMES


                                                                                      ISAAC WARDEN LEWIS
Num bairro de uma cidade moderna, vivia uma família constituída do pai, Coriolano; da mãe, Carolina, e de um menino, Paulino.
O menino vivia muito feliz com seus pais. Conversava, ria, chorava e se divertia como todos os meninos de sua cidade. Ele tinha um aparelho de televisão em seu quarto. Todos os dias, ele via seus programas favoritos. Tudo parecia ir muito bem para o Paulino.
Entretanto, um dia, seu pai lhe deu um aparelho de videogame. A partir de então, Paulino passou a viver em seu quarto. Saía somente para ir à escola. Brincava com o videogame de manhã à noite.
Desse modo, quase ninguém o via. Dona Carolina o via todos os dias. Ela lhe levava o café da manhã, as merendas, o almoço e a janta. De vez em quando, o Seu Coriolano costumava passar no quarto para brincar com o filho.
E, assim, passaram-se muitos dias, muitos meses, muitos anos. Paulino não deixava de brincar  com o videogame. Dona Carolina e o Seu Coriolano quase não falavam mais com ele. Por  isso, Dona Carolina e o Seu Coriolano não perceberam que o Paulino já não crescia há algum tempo. Também não perceberam que ele tinha desaprendido a falar, a expressar-se por meio das palavras como a maioria dos seres humanos. Além disso, Paulino deixou de relacionar-se normalmente com as pessoas do mundo real. Seu cérebro estava povoado de personagens e de suas ações nos jogos do vídeo. Dir-se-ia que Paulino estava-se tornando um daqueles personagens. Quando sua mãe falava com ele, Paulino resumia-se a grunhir um sim ou um não. Quando andava, ria ou gesticulava, parecia um boneco mecânico.
Também, na escola, Paulino comportava-se estranhamente. Entrava na sala de aula, não conversava com ninguém. Não entendia o que os professores lhe ensinavam. Não acompanhava as explicações que eram dadas em sala de aula. Como ele se comportava indiferente e passivamente a tudo o que ocorria a sua volta, os professores qualificaram o seu comportamento como exemplar. Daí, todos os anos, ele era promovido para a série seguinte. 
E, assim, foram-se passando os anos, sem que a família, os professores e os vizinhos se dessem conta do que estava realmente acontecendo com o menino.
Paulino, agora, estava-se tornando adolescente. Ocorreu ao Seu Coriolano fazer uma festa de aniversário para seu filho. No dia da festa, havia muitas pessoas e muitas crianças na casa do Paulino. Mais uma vez, ocorreu um fato estranho. Falava-se do aniversariante, comemorava-se seu aniversário, mas Paulino permanecia em seu quarto, brincando com seu videogame, indiferente a tudo e a todos.
Em face disso, o Seu Coriolano começou a perceber que alguma coisa estava errada. Deu-se conta de que aquele menino era um estranho em sua casa. Correu até o quarto do filho. Lá estava ele absorto, brincando com o videogame. Não ouvia nada e ninguém. Seu Coriolano compreendeu tudo imediatamente. Foi à cozinha rapidamente, pegou um machado e voltou ao quarto do menino. Desfechou vários golpes no aparelho de videogame. Choveram faíscas para todos os lados. Paulino levou um susto. Gritou por socorro, chorou, adoeceu, mas já está-se recuperando.
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Do livro, A ILHA DA FANTASIA E OUTRAS HISTÓRIAS 

 

sexta-feira, 2 de junho de 2017

BRASIL E SUA CULTURA POLÍTICA COLONIZADA


                                                                        Isaac Warden Lewis
O colonialismo, de modo geral, legou às populações dos territórios invadidos na Ásia, África e América ideias e práticas difíceis de serem abolidas, se essas populações não se derem conta de que tais ideias e práticas herdadas precisam ser radicalmente abolidas e superadas.
No cotidiano, podemos perceber que filhos e filhas de pais e mães mal educados também podem ser mal educados e eles e elas não se dão conta de que precisam abolir e superar radicalmente a educação, as atitudes, as visões de mundo herdadas de seus pais e avós.
Os colonizadores portugueses, por exemplo, aportaram em terras da Ásia, África e América, dizendo-se cristãos, civilizados e seres humanos superiores. Mas, no cotidiano, suas ideias de cristianismo eram distorcidas, enviesadas, nada tinham a ver com possíveis ideias pregadas por algum sujeito que, por acaso, tivesse vivido, em algum momento, na Palestina ou na Galileia. Em nome de deus, os colonizadores portugueses massacraram e escravizaram povos asiáticos, africanos e americanos. Muitos nativos desses continentes morreram graças às bactérias e aos vírus transportados por tais civilizados.
No Brasil, os colonizadores trouxeram leis, decretos, códigos que os beneficiavam e discriminavam negativamente as populações nativas. Desse modo, os invasores portugueses tornaram-se latifundiários, traficantes e senhores de escravos, governantes, enfim, os mandatários da colônia.
Para se protegerem de possíveis rebeliões das populações nativas, os colonizadores estabeleceram um sistema político, jurídico, militar e policial que conceituava os nativos como perigosos, preguiçosos e primitivos. Esse sistema tinha, portanto, funções pedagógicas: Estabelecia os direitos e privilégios dos colonizadores e os deveres dos colonizados através da violência.
Como coadjuvante do sistema político, jurídico, militar e policial, o sistema educacional preparava alguns estudantes (os filhos dos colonizadores) para estudos maiores, superiores, para terem acesso a cargos privilegiados, e instruía a maioria (os nativos) para os trabalhos produtivos ou artesanais.
Essa estrutura política vigorou na sociedade brasileira, no período colonial, privilegiando senhores de escravos, governantes, padres, políticos, funcionários públicos, juízes, policiais e agregados que, a serviço da metrópole portuguesa, cometiam abusos, arbitrariedades, ações corruptas sem serem jamais julgados ou condenados pelas leis, decretos e códigos do reino português.
No período imperial, a proclamação da independência não mudou a estrutura política vigente no período colonial porque a sociedade monárquica era estruturada e sustentada pelas mesmas classes favorecidas que sustentaram os reis e as cortes portuguesas durante o período colonial.
Para se manterem como classe favorecida, os traficantes e os senhores de escravos assumiram-se como feitores a serviço das classes privilegiadas inglesas que patrocinaram e apadrinharam a independência do Brasil de Portugal, apesar dos interesses conflitantes entre a sociedade agrária escravagista e atrasada dos senhores e traficantes de escravos e a sociedade que se afirmava industrial , moderna, capitalista e antiescravagista das classes privilegiadas inglesas.
Entretanto os mamelucos luso-brasileiros continuavam, em teoria, a se proclamarem europeus, civilizados e cristãos na época em que os europeus começavam a mudar sua compreensão sobre a escravização de seres humanos, a sua visão dos povos não europeus, além de questionarem os dogmas do catolicismo. Portugal, por exemplo, aboliu a escravidão em 1854, porém os lusodescendentes do Brasil (já independente), de Angola, Moçambique, Guiné-Bissau aferravam-se às práticas escravagistas em seus territórios.
A elite brasileira e seus agregados proclamavam-se classe privilegiada, embora, política e economicamente, subordinassem seus interesses aos interesses das classes privilegiadas europeias. Essa elite brasileira não era, na verdade, uma classe privilegiada e sim uma classe favorecida. Essa dicotomia entre o que a elite política brasileira se proclamava e a sua realidade de subordinação a elites de países avançados explica as atitudes hipócritas, falsas, corruptas, conservadoras não só de políticos e empresários brasileiros, mas também das classes favorecidas de países que emergiram da condição de colônias na Ásia, África e na América (incluindo os Estados Unidos).
É por isso que as teorias e as práticas de políticos dos países periféricos são tão parecidas. Sua preocupação política fundamental é garantir condições de desenvolvimento, segundo os projetos políticos dos países desenvolvidos, permitindo aos empresários desses países o controle e a exploração dos recursos materiais e humanos de seus países periféricos, o que leva a se preocuparem em manter a ordem e o progresso nesses países.
Para execução dos projetos políticos mencionados acima, os políticos dos países periféricos que se tornaram repúblicas, através da instalação de estados burocráticos de direito, reconhecidos e apoiados por estados desenvolvidos – sedes das classes privilegiadas capitalistas internacionais – estabeleceram sistemas políticos, jurídicos, militares e policiais que mantêm privilégios e direitos para as classes favorecidas e negam esses privilégios e direitos para a maioria da população.
Tais sistemas permitem, na realidade, que os indivíduos das classes favorecidas cometam crimes impunemente. Não se constitui surpresa, portanto, que, entre os países mais corruptos do mundo, o Brasil esteja em quarto lugar, precedido pela Venezuela, Bolívia e o Tchad, segundo a pesquisa do Fórum Econômico Mundial.   

quarta-feira, 26 de abril de 2017

R E - C E N S O

                                                                                                   Lucilene Gomes Lima
I
Um recenseador bate palmas e a mulher vem atender. Ela mantém a porta semiaberta, tencionando mais se ocultar do que aparecer e permanece calada, olhando-o. O recenseador toma a iniciativa de falar algo.
– Bom dia, senhora. Estou fazendo o censo.
A mulher continua calada, mas esboça no rosto um estranhamento, ao ouvi-lo pronunciar a palavra e meneia a cabeça em sinal de incompreensão. Imediatamente, ele recorre ao manual do recenseador e lê em voz alta:
– O censo é o “arrolamento por enumeração direta, nominativa, simultânea e periódica de toda a população existente num determinado território, a fim de verificar o seu estado num dado momento”.
A mulher ri simploriamente. Ele fica desconsertado, sem conseguir explicar o que leu, e opta por uma solução prática.
– Trabalho  para o governo. Quero falar com os donos da casa. A senhora é a dona da casa?
– Não. O dono é  meu marido.
– Posso falar com ele?
– Pode.
A casa, uma construção de madeira, revela o efeito do tempo nas suas paredes. Aqui e acolá tábuas apodrecem. Logo que entra, o recenseador se depara com uma grande família e essa família numerosa reúne-se a sua volta para vê-lo realizar o ato de recensear. Para ele, um ato comum e repetitivo, para a família: um ato marcado por uma certa indeterminação. Por que sua existência tornou-se objeto de curiosidade, para que lhe servirá responder às perguntas do recenseador?
A primeira pergunta refere-se ao nome do dono da casa.
Agenor Silva - o homem responde prontamente.
E o nome da cônjuge? – indaga o recenseador.
– Nome de quê?
– Da sua mulher – esclarece o recenseador.
– Ah, é Iolanda Silva.
Antes de responder as outras perguntas, o homem se lembra de convidar o recenseador a sentar. Oferece um cafezinho, mas o recenseador recusa com um agradecimento. Sentam-se primeiramente a mulher e o marido e, aos poucos, as crianças se amontoam próximo a eles. O sofá, visivelmente danificado, começa a ranger as molas. O recenseador procura ter cautela. Senta-se numa posição incômoda, evitando forçar o assento. Nota que a mulher e o marido estão embaraçados. É como se sua pobreza se estampasse naquele sofá. As perguntas continuam sendo feitas ao marido, De repente, o recenseador sente uma cãibra, devido à posição em que se encontra e não tem outra saída senão deixar-se cair no sofá. Devido ao peso, o assento afunda e ele tem a impressão de estar sendo tragado. Fica numa posição vexatória, meio absorvido pelo sofá. Mesmo assim, tenta completar as perguntas do questionário.
Sucedem-se perguntas sobre as condições financeiras, a religiosidade e o nível de instrução do recenseado. Concluído o preenchimento do questionário, o recenseador se dá conta de que afundou de tal maneira no sofá que será necessário fazer um grande esforço para se levantar. Como não há braços laterais para apoio, ele se vê em apuros. Não pode pedir aos donos da casa que o icem da armadilha sem causar-lhes embaraço. Aflige-se; precisa raciocinar rapidamente. Enquanto o homem afasta-se para assinar o questionário numa mesa, ele olha para a mulher e tem uma ideia:
– Aceitaria aquele cafezinho agora, senhora – pede, fingindo-se à vontade.
Livre dos olhares dos dois, encontra uma maneira de levantar-se.
Ao terminar seu trabalho, o recenseador parte com mais um questionário preenchido. A família Silva torna-se um dado estatístico, válido por dez anos.

II
Dez anos mais tarde, outro recenseador bate palmas em frente a um barraco precariamente construído de isopor e papelão. Mora nele apenas Iolanda Silva. As investigações censitárias mudaram.  O questionário reduziu-se à metade do que era. Tornou-se mais objetivo, mais estatístico.
O barraco não tem porta; está sempre aberta aos visitantes. O sorriso sem dentes de Iolanda Silva também é aberto e hospitaleiro. Ela diz que se lembra da visita do recenseador, há dez anos, quando o marido ainda não a abandonara, os filhos eram pequenos e estavam em sua companhia. Começa a contar todas as desventuras de sua vida ao recenseador. A ele, todavia, só interessam dados que respondam às perguntas do questionário.
– Quantos cômodos sua casa possui? A senhora possui televisão? Quantas televisões possui? – indaga apressado, pensando no tempo que a mulher o fez perder, contando seus problemas. Quantas outras entrevistas poderia fazer, quanta comissão por questionário preenchido poderia ganhar?
O barraco tem um buraco na cobertura e olhando para cima dá para ver o céu. “O céu é minha televisão” – pensa Iolanda.
O recenseador prossegue a entrevista:
– Possui carro? Quantos carros possui? Possui aparelho de ar condicionado?
– O clima aqui é muito fresco – ela comenta pacientemente, sem se mostrar ultrajada.
– Prefere morar em apartamento ou casa? – ele continua.
Na saída, ela pede desculpas:
– O senhor não fique aborrecido. Eu não tenho quase nada mesmo.
– Não se preocupe, ele a tranquiliza, as perguntas são de rotina.  

III
Passados mais dez anos, os processos censitários sofrem uma revolução. Não há mais recenseadores nem questionários. O censo é feito através de computadores móveis que percorrem a cidade recenseando os habitantes através de suas impressões digitais. Ao invés do som de palmas, os recenseados são chamados por um agudo som eletrônico. É com esse som que Iolanda Silva desperta numa madrugada fria, embaixo da ponte onde busca abrigo toda noite. De dentro da máquina uma voz mecânica ordena:
– “Coloque sua mão no visor magnético”
Iolanda estica os dedos compridos e sujos e toca o visor. O som da voz mecânica novamente quebra o silêncio da madrugada:
– Ao ouvir o sinal eletrônico, o seu recenseamento foi efetuado. Obrigado pela colaboração.
Iolanda vira-se de lado, indiferente, encolhe o corpo e retesa os músculos para se defender do frio. O seu coração reduz o ritmo dos batimentos. Bate devagar. Bate lentamente. Pára.
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Do livro “O mestre e o discípulo e outras histórias    

 

  

  

 

A VIOLÊNCIA REAL NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA


                                                                                              Isaac Warden Lewis
A educação brasileira vai de mal a pior, embora haja ministros da educação, secretários da educação, diretores, supervisores e administradores escolares (intitulados de gestores), pedagogos e professores afirmando o contrário.
Os Meios de Comunicação – que se tornaram veículos de informações de ocorrências policiais e de como o Brasil vai ficar depois da Copa do Mundo de 2014 e de divulgação restrita de matérias que realmente interessem à sociedade brasileira – passaram a noticiar as violências praticadas nas escolas. Essas violências tendem a aumentar, uma vez que as autoridades educacionais e governamentais ignoram ou fingem ignorar as causas dessa violência.
Há muito tempo que essas autoridades deliberaram politicamente expandir a educação nos três níveis de ensino (Fundamental, Médio e Superior) para a maioria da população sem considerar o mínimo de qualidade desse ensino que levasse os alunos ao domínio do conhecimento que é ou deveria ser ensinado nas escolas. Esse processo iniciou-se na década de 1960 a partir das propostas MEC-USAID, patrocinadas pelo Governo norte-americano e executadas pelo Governo brasileiro (tanto os da ditadura militar quanto os da pós-ditadura) para atender as orientações do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial.
Filosofias educacionais da Escola Nova (Dewey, Montessori e outros) passaram a nortear a educação brasileira. A escola não deveria ser o lugar para estimular e nem desenvolver o conhecimento científico dos alunos e dos professores. Ela deveria preparar os alunos para a vida, entendendo-se por isso a preparação dos alunos para o mercado. Por isso, há uma confusão generalizada entre o que é ciência e o que é tecnologia, o que é pesquisa científica e o que é pesquisa aplicada. Muitas vezes, alunos (e até professores) são premiados por realizações tecnológicas como se fossem realizações cientificas.
Práticas pedagógicas criadas para ensinar alunos com deficiência mental ou física foram adotadas indistintamente nas escolas para todos os alunos. É bom ressaltar que há alunos com deficiência mental ou física que não gostam de ser tratados como se fossem pessoas incapazes ou debilóides.
Além disso, os professores não precisariam mais dominar conhecimento de sua área de ensino, bastando ser animadores de inúmeras atividades extracurriculares, profanas ou religiosas que, na maioria das vezes, não acrescentam nada ao intelecto do aluno, dificultando-lhe o desenvolvimento do pensamento crítico. Como se não bastassem os programas de animação e de “esporte” e de “religião” transmitidos de domingo a domingo através de inúmeros canais da televisão brasileira.
Nesse país, que pode ser definido como um estado burocrático de direito, os professores e as professoras são obrigados a cumprirem determinações dos burocratas das Secretarias da Educação e do Ministério da Educação e de outros órgãos do Estado, que tolhem continuamente o trabalho educacional sério dos profissionais do magistério brasileiro.
Com relação à avaliação, pedagogos, governantes e autoridades educacionais escolanovistas sugerem que os alunos sejam aprovados automaticamente ou que sejam pré-aprovados, ao se matricularem em alguma escola ou faculdade. Pressupõem que os professores ou as professoras que reprovam a maioria de seus alunos ou que os aprovam  com notas baixas são incompetentes. Não lhes ocorre que os professores ou as professoras que aprovam cem por cento de seus alunos com notas altas podem ser extremamente incompetentes.
Os professores sérios e competentes sentem-se cada vez mais acuados, agredidos, violentados por alunos, pais de alunos, autoridades educacionais que não valorizam e nem respeitam o trabalho desses profissionais. Essa é a violência real, visível e/ou invisível, sofrida por professores e professoras brasileiros.
O sistema educacional brasileiro é perfeito para um país eternamente emergente, dependente e que ambiciona exportar sua experiência educacional (de doação generosa de certificados e diplomas) para outros países emergentes, dependentes que também se constituem em estados burocráticos de direito.
________________
Do livro “Educação: doutrinação ou desvelamento”  

domingo, 2 de abril de 2017

A VIOLÊNCIA HISTÓRICA NA SOCIEDADE BRASILEIRA


                                                                                           Isaac Warden Lewis
            Os colonizadores europeus – portugueses, espanhóis, ingleses, franceses, holandeses, belgas – invadiram  territórios da Ásia,  África e da América, norteados por ideias preconcebidas em relação às populações que viviam nesses continentes.
Por considerarem  inferiores, bárbaros e selvagens os seres humanos, que viviam nas terras invadidas, e suas culturas, os colonizadores europeus arrogaram-se o direito de se apropriarem  das terras invadidas com o objetivo de explorarem os recursos materiais e humanos dessas terras.
Para isso, utilizaram-se de armas de fogo e de ensinamentos supostamente cristãos, desconhecidos dos povos que viviam nas terras invadidas, para realizarem massacres, genocídios, decapitações, esquartejamentos de todos os colonizados que se recusassem a aceitar as práticas civilizatórias e religiosas, impostas pelos colonizadores.
O escritor medieval Luís de Camões ilustra bem o comportamento dos colonizadores em geral, embora ele louve especialmente os colonizadores portugueses em sua epopeia denominada “Os Lusíadas”: Neste livro, os portugueses são considerados gentes boas e os colonizados, gentes ruins. A cultura portuguesa é boa e a cultura dos colonizados, ruim. As barbaridades e as selvagerias dos portugueses são consideradas heroicas e meritórias e as dos colonizados, terríveis e atrozes.

No Brasil, no século XVI, os colonizadores portugueses trouxeram arcabuzes, inquisidores, padres, ordens religiosas e as leis manuelinas, joaninas e filipinas, que discriminavam negativamente ateus, judeus, ciganos, índios, africanos negros, muçulmanos como gentes sujas, não merecedoras de consideração e de direitos do reino português, mas que deveriam respeitar e cumprir os deveres impostos a eles.

As ordens religiosas organizaram campos onde concentravam os índios (crianças e adultos), ensinando-lhes os costumes e comportamentos que deveriam adotar para se tornarem trabalhadores civilizados. Os índios que reagiram ou se rebelaram contra essa domesticação foram  mortos ou escravizados através de guerras justas ou guerra aos bárbaros, previstas nas leis elaboradas pelos reis portugueses.

Desse modo, através da violência e da domesticação, os índios se tornaram trabalhadores e escravos suprindo Portugal de pau brasil, drogas do sertão, especiarias e ainda foram forçados a trabalharem nas primeiras plantações e engenhos de açúcar.

Ao ampliarem  investimentos em plantações de cana e de engenhos de açúcar, os portugueses trouxeram africanos negros para o Brasil e obrigaram-nos a trabalharem à força. Os negros africanos e brasileiros ainda foram empregados à força nas plantações de tabaco, de cacau, de café e na mineração.

Em todo o período colonial e no período imperial, as autoridades jurídicas e policiais perseguiram e puniram índios e negros rebeldes ou que se recusassem a trabalhar eficientemente nas plantações e nos engenhos, torturando-os, deportando-os, matando-os, degolando-os, esquartejando-os. Não somente, índios e negros foram punidos bárbara ou selvagemente,  também  foram  punidos dessa forma homens livres, incluindo altos funcionários brasileiros e portugueses que se rebelaram contra as determinações das autoridades reinóis.

Em resumo, o Brasil foi fundado,  estruturado e consolidado através da violência bárbara e selvagem perpetrada pelos colonizadores portugueses, pelas autoridades políticas, jurídicas, militares (incluindo bandeirantes) e policiais, brasileiras e portuguesas, a serviço das classes privilegiadas de Portugal (até 1822).

O estado burocrático de direito, construído, a partir de 1549, no Brasil, para garantir a expropriação das terras indígenas, a exploração do trabalho forçado dos indígenas e africanos e a submissão e o respeito dos súditos portugueses e luso-brasileiros às diretrizes políticas estabelecidas pelas cortes portuguesas, era administrado, inicialmente, por funcionários portugueses (governadores gerais, vice-reis, militares, auditores, juízes e seus auxiliares), tendo, depois, muitos desses funcionários (a maioria constituída de mamelucos) nascidos no Brasil.

A partir de 1822, declarada a independência do Brasil de Portugal, o estado burocrático de direito passou a ser administrado  para atender os interesses comerciais e industriais da Inglaterra, a nação amiga, que apadrinhara a iniciativa de independência de setores escravagistas brasileiros. Por conseguinte, os traficantes e os senhores de escravos brasileiros entraram em conflito com os projetos políticos de D. Pedro I, acusado de beneficiar comerciantes estrangeiros (portugueses e ingleses) que começaram a instalar negócios em várias cidades do país (Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Recife, Belém, Manaus). Além disso, D. Pedro I propunha em sua constituição que nenhuma condenação à morte de qualquer pessoa (livre ou escrava) poderia ser executada sem pedido obrigatório de graça ao imperador; proibia açoites, torturas e todas as penas cruéis aos escravos; concedia cidadania aos negros libertos e sugeriu concessão de terras a colonos europeus. José Bonifácio, entre outras propostas, defendeu que o estado concedesse terra e implementos aos negros libertos. Pressionado, D. Pedro renunciou e partiu para Portugal. José Bonifácio também foi forçado a exilar-se.

A partir de então, os senhores e traficantes de escravos conseguiram transformar o estado burocrático de direito brasileiro numa feitoria administrada pelas classes favorecidas locais em benefício dos interesses das classes privilegiadas (comerciantes e industriais ingleses), apesar desses interesses conflitarem com os mesquinhos interesses dos senhores e traficantes de escravos. Em consequência, as medidas e as propostas de D. Pedro I e de José Bonifácio foram revogadas ou ignoradas e as autoridades políticas, jurídicas e policiais continuaram perseguindo, punindo violentamente índios, negros e mestiços (escravos e livres) e homens livres considerados rebeldes ou malfeitores. Nesse período, revoltas populares (Cabanagem, Cabanada, Sabinada, Balaiada) foram reprimidas pelo exército, pela polícia e pela Guarda Nacional por pretenderem melhorias de condições de vida e de trabalho através de reformas (política, agrária). Os traficantes e os senhores de escravos aprovaram, em 1850, a Lei da Terra, estabelecendo que a aquisição de terra só poderia ser feita através de compra ao governo imperial, dificultando, desse modo, o acesso à terra aos escravos e aos homens livres (índios, mestiços, negros, brancos e imigrantes europeus)

A sociedade brasileira independente continuou excludente e violenta com relação à maioria da população. Os escravos libertos em 1888 foram lançados na marginalidade. Em 1889, os senhores de escravos proclamam a república, sem a participação popular e conformaram o estado burocrático de direito aos seus interesses imediatos (manutenção de latifúndios, exploração violenta dos trabalhadores imigrantes, negros, índios, mestiços (mulatos, mamelucos, cafuzos etc), tornando o país exportador de produtos agrícolas (café, cacau, borracha) e de matérias primas e importador de produtos industrializados. O sistema político, jurídico, policial reprimia violentamente negros, índios, mestiços e imigrantes italianos, portugueses e espanhóis que se recusavam a serem tratados como escravos. Imigrantes italianos foram expulsos por tentarem organizar sindicatos para defender os interesses dos trabalhadores. 

Ao longo do período republicano, a polícia perseguiu, torturou ou matou trabalhadores, favelados, detentos, praticantes de religiões africanas com a complacência de secretários de segurança, ministros da justiça e de juízes que se resumiam a prometer fazer investigações e sindicâncias jamais concluídas. Nessa conjuntura, latifundiários assassinaram trabalhadores sem terra, homens mataram mulheres em nome da sua honra, os índios tiveram suas terras invadidas e alguns foram assassinados, sindicalistas, advogados, juízes, políticos que criticaram as injustiças, as desigualdades e a corrupção estrutural na sociedade foram perseguidos e até mortos, detentos foram  mortos nas prisões, grupos de extermínio têm atuado impunemente em todo país e uma parcela significativa da população sempre aceitava essas anomalias com naturalidade.

Um escritor negro, Paulo Lins, escreveu um romance “Cidade de deus”, no qual focaliza as histórias de criminosos residentes num conjunto popular, no Rio de Janeiro. O romance narra histórias de meninos pobres que se tornam criminosos, vendedores e consumidores de drogas, rotulados erroneamente de traficantes, que cometem assassinatos e são, por sua vez, assassinados. O livro foi saudado e aplaudido por intelectuais hipócritas porque, em nenhum  momento, o autor relacionou o contexto do referido conjunto residencial com o contexto colonial, social, histórico e cultural da sociedade brasileira que produziu e estigmatizou as periferias criadas por ela.

Outra hipocrisia professada por alguns intelectuais e “revolucionários de esquerda” é pensar ou imaginar que a violência, a perseguição, a tortura e o assassinato nas prisões só ocorreram em  um período da história do Brasil, mais precisamente, por ocasião do golpe militar de 1964.

Enquanto isso, as autoridades políticas, jurídicas e policiais atuais continuam preocupadas com a saúde e o bem estar da política econômica e social para atender os interesses mercantis das classes privilegiadas internacionais como se o papel dessas autoridades fosse manter a ordem e o progresso da periferia do capitalismo. 
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Publicado originalmente no Jornal da ADUA, nº 74, Manaus, fev., 2017