quinta-feira, 1 de setembro de 2016

E S T R E S S E


                                                                                            Lucilene Gomes Lima
Casa de três cômodos. Espaço pequeno para viver com a família.
Sua situação precisava mudar. Viver como gente, não como boi num curral apertado.
A vida que levava poderia ser satisfatória, se fosse apenas um boi. Mas era um homem... Tinha sonhos. Queria conquistar coisas.
Lutou. Insistiu. Conseguiu um emprego de melhor remuneração.
O novo salário melhorou o orçamento. E tanto se empenhou, fazendo uma ou outra economia, que guardou algum dinheiro. Pouco a pouco, a casa ganhou cômodos novos.
Entretanto, tendo realizado uma aspiração, ele se alimentava de novas aspirações. E essas aspirações revitalizavam sua disposição para o trabalho.
Um dia, acordou pensando em arranjar mais dinheiro. O que ganhava ainda não o satisfazia. Fazendo economias, comprara algumas coisas para a família, melhorara a casa. E era só. Mas era pouco. Jovem ainda, não poderia obter mais da vida? 
Um segundo emprego, noturno, veio num golpe de sorte. Vigia de uma fábrica qualquer num lugar qualquer. Que lhe importava? Ganharia mais dinheiro, isso fazia muita diferença. Novos bens adviriam da carga extra de trabalho.
Durante muito tempo, trabalhou diuturnamente sem fazer corpo mole. Além das horas de trabalho nos dias úteis, passou a fazer também horas extras que o primeiro emprego oferecia nos finais de semana e feriados. Se, por ventura, se manifestasse algum sinal de abatimento, não dava atenção, pensava fortemente nos planos por realizar e o cansaço se ocultava como se fosse poeira por baixo de um tapete.
Enquanto ele se ocupava apenas em trabalhar e fazer projetos para o futuro, o espelho revelava um homem envelhecido precocemente.
Com o acúmulo dos anos, o cansaço se tornou mais insistente. Detestava esses sinais de fraqueza, debilidade. As pernas e os braços, que haviam sido feitos para o trabalho, queriam desafiá-lo, impor-lhe barreiras. Não se deixava intimidar, redobrava a força de vontade para provar a supremacia da mente sobre o corpo.
Julgou encontrar em suplementos vitamínicos a energia que lhe faltava. Tomou-os, primeiramente, com moderação, depois passou a aumentar as doses. Por fim, já os consumia em quantidade superior à alimentação natural. O sono, entretanto, era ainda o maior inimigo que tinha de enfrentar durante as horas noturnas de trabalho. Descobriu que, tomando certas pílulas, o problema do sono seria resolvido.
Tudo estava aparentemente bem, até ocorrer aquele mal-estar durante o trabalho diurno. Adoeceu. Três dias acamado. Um trabalhador doente não era útil. O medo de se desempregar o fez acreditar numa rápida recuperação. Estava curado.  
Apesar dos suplementos, dos estimulantes, adoecia. Passou, então, a trabalhar mesmo quando estava doente como forma de acentuar para si mesmo sua têmpera. Não notava ou não queria notar que a indiferença aos avisos do corpo causava-lhe danos mais sérios. Não importava se o organismo mostrava sinais de fraqueza. A força de vontade para continuar lutando é que contava. Nada era mais forte em seu espírito do que sua determinação. Era um homem honesto, queria vencer pelo trabalho. Nunca roubara nada de ninguém, conseguira tudo com o suor do seu rosto.
A situação mais estranha na sua vida de homem trabalhador e esforçado aconteceu de repente, segundo o que ele pensava. Não via aquilo como algo que se foi acumulando lentamente dentro dele, oriundo de seu próprio viver, mas como um mal surgido misteriosamente, espécie de feitiço ou mal olhado motivado, talvez, pela inveja que alguém tivesse de sua prosperidade.
Simplesmente, num dia comum, rotineiro como qualquer outro, acordou e não teve vontade de se levantar. Não chovia. Fazia um belo dia de sol, capaz de estimular os seres a se deixarem banhar pelos seus raios brilhantes.
Também não sentiu vontade de tomar o café da manhã. Bebeu apenas um gole e despejou o restante pelo ralo da pia. Vendo o café assim se esvaindo, teve a sensação de que lhe acontecia algo semelhante. Evadia-se de si mesmo, de seus interesses.
Sem estímulo, vestiu-se e saiu para o primeiro turno de trabalho.
Trabalhou desatentamente; cometeu erros. Foi repreendido. Não se importou.
Um sopro de resistência surgiu no fim da tarde e ele pensou que pudesse recobrar o ânimo no segundo emprego. Talvez estivesse apenas cansado de um tipo de serviço.
Veio a noite e tudo se passou com a mesma indiferença. Sentia-se como se não tivesse trabalhado. Os outros percebiam seu alheamento e sondavam a causa: estava fatigado? Ele lhes respondia que não. Insistiam em saber se estava passando mal. E ele não sabia responder. Comparava o passado e o presente e pareciam-lhe a mesma coisa. Tudo igual a tudo. Apatia.
O lar foi o último porto em que buscou recobrar a esperança. E por que também não o acolhia? Era somente nele que causava essa sensação de um lugar excessivamente grande e inospitaleiro?
Deitou na cama e manteve o corpo estendido. Pensou no quanto estava impotente sobre o que lhe ocorria. Fosse o caso de doer-lhe alguma parte do corpo, poderia gemer e até gritar. Mas não lhe doía nada. Não havia sofrimento.
Ninguém estava em casa naquele momento. Ninguém de quem pudesse ouvir ou a quem dissesse uma palavra. Apenas um armário a sua frente oferecia o diálogo mudo de suas formas. Sua sombra, que se prolongava na parede, criava a impressão de ser esse objeto maior do que realmente era. Desviando o olhar do armário, ele o fixou na parede. Esta lhe causava também uma sensação de enormidade.
Teriam as coisas tido sempre essa força desumana de objetos maciços, frios e mortos? E quanto ao suor que derramara para obtê-las, não lhes dera com ele a significação de sua vida? Não podiam causar-lhe, por isso, alguma satisfação? Ou o que lhe retribuíam era sua existência inanimada e indiferente a tudo? Não teria ele próprio se transformado em uma coisa e por isso se sentia tão oco por dentro? Com essas indagações, fechou os olhos e quis firmemente acreditar que poderia trilhar o caminho de volta a si mesmo.
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Do livro “O julgamento e outras histórias”.   

ESCOLA SEM PARTIDO: POR QUÊ, PARA QUEM?

                                                                                                Isaac Warden Lewis

Começaremos com algumas premissas. Religião não existe sem sociedade. Partido não existe sem sociedade. Uma sociedade de classes não existe sem pessoas, trabalhadoras ou exploradoras do trabalho dos outros, desfavorecidas ou privilegiadas, conscientes  ou  alienadas. Pessoas que pensam e pessoas que não gostam de pensar. Geralmente aprendemos a pensar na escola ou com pessoas que gostam de pensar. A função da escola, no mundo moderno, pós-renascentista, pós-iluminista, pós-revolução francesa, é desenvolver a capacidade crítica e científica do aluno, ou seja, é ensinar o educando a pensar. Por isso, a maioria das sociedades modernas estabeleceu a laicização do ensino.
Nós sabemos que os fundamentalistas religiosos (cristãos ou muçulmanos) posicionam-se contra a laicização do ensino (nas escolas e nas universidades), da política, do governo, do judiciário, da república, enfim, de todos os organismos de um estado moderno, com a complacência de políticos que se dizem democratas ou socialistas. Um exemplo disso ocorreu há dois ou três anos, no estado do Amazonas, quando as secretarias de educação coagiram professores e professoras de todas as áreas de conhecimento a fazerem curso de ensino religioso para conseguirem mais outra carga horária para melhorar seus parcos salários.  
Os defensores da escola sem partido não se questionam se é possível a existência de uma escola sem partido numa sociedade de classes, onde há conflitos entre várias classes quanto aos seus interesses. Esses defensores, também coerentemente, não se perguntam a quem interessa uma escola supostamente sem partido. Esses defensores não saíram a defender, aqui no estado do Amazonas, uma escola sem ensino religioso e nem se perguntaram a quem interessava ensino religioso nas escolas. Também não se perguntam por que pastores e missionários, ao invés de pregarem amor ao próximo para os pobres no Terceiro Mundo, não pregam amor ao próximo aos capitalistas e aos ideólogos dos Complexos Industriais Militares dos países do Primeiro Mundo? Os defensores da escola sem partido e com ensino religioso não questionam as atividades de alienação mental praticadas por missionários e pastores no Terceiro Mundo.
As secretarias de educação e o Ministério da Educação deveriam discutir uma séria formação científica dos estudantes nas escolas e dos acadêmicos de todas as áreas nas universidades com o objetivo de prepará-los para entenderem não só os saberes de suas áreas profissionais como também a história das sociedades em geral, da sociedade em que vivem e das instituições que existem nessas sociedades, incluindo as religiosas e os partidos políticos. Isso implica, obviamente, a análise crítica dessas instituições. Por isso, mais importante do que inserir ensino religioso nas escolas ou instituir a escola sem partido é ensinar os educandos a entenderem a história das religiões e das instituições políticas desde a pré-história até a época contemporânea para possibilitar seu desenvolvimento intelectual completo e crítico.