domingo, 19 de março de 2023

BRASIL: SANATÓRIO GERAL

                                                                                               Lucilene Gomes Lima



PRIMEIRA PARTE

 

A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a desconfiar que é um continente.

(Machado de Assis – O alienista)

 

 

Assistimos com o governo Jair Messias Bolsonaro um desfile de excentricidades (para usar uma palavra elegante) que faz lembrar a crônica musical composta por Francis Hime e Chico Buarque, gravada em 1984, intitulada “Vai passar”. Na letra dessa canção, a democracia brasileira passa por um episódio catártico, representado num desfile carnavalesco.

Nos dias atuais, tem-se falado amplamente na falta de juízo dos apoiadores do governo Bolsonaro. Chegou-se a comparar os inconformados com a derrota eleitoral desse governo com personagens denominados “canjicas” da narrativa O alienista, de Machado de Assis. Mas, é preciso esclarecer, esses personagens sentiam-se ameaçados pelos desmandos pseudocientíficos de um lunático ao invés de serem seus seguidores.

A narrativa machadiana é muito mais complexa do que uma caricatura de personagens. O alienista analisa a formação acadêmica brasileira, transplantada, e questiona nossa base política e social, a instabilidade e a superficialidade de nossas instituições.  

Voltando à canção “Vai passar”, cujo tema trata do gozo da liberdade após o regime ditatorial militar implantado no Brasil em 1964, é significativo que a letra não aborde a liberdade apenas como tema referente àquele contexto repressivo. De forma mais abrangente, ela se refere alegoricamente ao processo escravista da colonização brasileira.

Nos versos “Palmas pra ala dos/ Barões famintos/ O bloco dos Napoleões/ Retintos/E os pigmeus do bulevar/Meu deus, vem olhar/Vem ver de perto uma/ Cidade a cantar/A evolução da liberdade/Até o dia clarear”, os “barões retintos” têm uma significação que ultrapassa a impropriedade de negros pobres vestidos de nobres europeus. A letra desenvolve uma construção similar à de outras canções sobre o período ditatorial brasileiro, de 1964 a 1984, em que, usando os recursos ficcionais, era possível afrontar artisticamente os censores do regime, que não eram esclarecidos, como, de resto, a maior parte das classes dominantes e dirigentes brasileiras.

Assim como, na canção, os negros que participam do desfile estão fantasiados do que nunca foram, as oligarquias enriquecidas com a exploração colonial também sempre estiveram envergando trajes estranhos, recebendo, por favores, títulos de nobreza, jactando-se de uma instrução postiça, mandando erguer, conforme outro verso da canção, “estranhas catedrais”. A alegoria na canção não poderia ser mais apropriada, pois o Brasil é amplamente esse “vai passar”, essa alegria episódica, essa catarse possível no carnaval, mas cuja estrutura de dominação e expropriação comprova-se em muitas “páginas infelizes” de nossa história.

Em Ao vencedor as batatas (1981), ensaio de Roberto Schwarz que analisa a condição colonial brasileira a partir da obra machadiana, o autor ilustra como se organiza essa sociedade do pastiche, da fantasia, dos conceitos às avessas. Uma sociedade carnavalizada, uma vez que o carnaval significa em sua origem inversão de valores, transfiguração. No Brasil colonial, as casas construídas pelos escravizados tinham suas paredes internas recobertas por motivos arquitetônicos europeus, pinturas greco-romanas, aparentando ser um material que sequer existia localmente. Ao fim da escravatura, no Segundo Império, os criados das famílias abastadas foram substituídos por criados europeus. Na composição do hino à república, de 1890, a escravidão, recém-abolida, é descrita como passado distante com intuito de nos relacionar às sociedades livres, liberais e progressistas centro europeias. Ainda nem findo o regime escravo, já importávamos mão de obra estrangeira, um indicativo de que os milhares de escravizados libertos e seus descendentes seriam marginalizados. Nos processos coloniais, há situações recorrentes: na Guiana inglesa, no século XIX, os donos de plantações substituíram os escravizados negros por trabalhadores indianos contratados.  No Brasil, após a abolição, a ex-mão de obra escrava é, por fim, excluída da economia formal. A partir de então, investe-se na política de branqueamento num país onde a maioria da população é mestiça.

Schwarz destaca que a fantasia civilizacional, segundo os padrões europeus, abrangeu um amplo espectro de nossa sociedade nos meios de entretenimento e informação, nos costumes, nos símbolos nacionais, nas teorias, destoando do contexto local. Mesmo os estilos literários que canonizaram os nossos autores constituíram-se em ideias e ideais fora de contexto.  Isso se comprova, uma vez que a nossa literatura de formação é pouco mais do que o relato e a fantasia da aventura colonizadora. O movimento barroco, que na Europa configura o conflito entre o teocentrismo medieval e o antropocentrismo renascentista, carece de propriedade num tempo e espaço que nunca tivemos. O mesmo se pode conjecturar dos movimentos Neo-classicismo, Romantismo, Naturalismo, Realismo, Simbolismo, Parnasianismo e Modernismo com  programas episódicos exercidos por alguns autores brasileiros, mas descompassados em relação a contextos sociais e históricos europeus.     

Nossa formação partidária durante o Segundo Império, o partido liberal ou o partido liberal conservador, o último uma conjunção antitética, reúne liberalismo e escravismo. Contudo, a contradição não é exclusiva do Brasil. Ocorreu na maioria das colônias americanas, baseadas na economia de plantação de monoculturas. A expressão “liberalismo oligárquico”, utilizada por Alfredo Bosi em Dialética da colonização, (1992) é mais pertinente em todos esses casos.

A sociedade brasileira carnavalizada adota a ideologia liberal em plena escravatura, brada uma independência que não se realizou de fato, proclama uma república da espada, sob interesses oligárquicos, minoritários, adota uma bandeira com o lema positivista “Ordem e progresso”, quando Auguste Comte, o fundador dessa doutrina, era monarquista. Liberalismo, República, Democracia são todos conceitos fora do lugar no Brasil pelas discrepâncias entre esses conceitos, as instituições e nossa realidade.

Nunca os conceitos, as ideias estiveram tão fora do lugar como agora em que as palavras navegam à deriva, ao sabor da desinformação. Monarquia, República, Liberalismo, Democracia, golpe são palavras que têm história. Os conceitos não valem apenas por sua semântica, existem numa relação dialética. John Locke, um dos ideólogos do Liberalismo inglês, cujas concepções embasaram as ideias dos filósofos iluministas, que, por sua vez, embasaram a Revolução francesa, concebia a liberdade e a propriedade como direitos naturais. Contudo, no evento da Revolução francesa, a própria situação social e política da França pré-revolução indica que os direitos, as liberdades não são naturalmente usufruídos pelos indivíduos, resultam de interesses de classes, posições sociais. François- Marie Voltaire, pensador iluminista, inspirou com suas ideias revoluções e formas de governo constitucionais representativos, não absolutistas, mas não era democrata, concebia que a forma de governo ideal seria uma monarquia esclarecida.

As bases daquilo que hoje chamamos democracia representativa, separação e autonomia de poderes, foram propostas em teoria pelo filósofo iluminista Montesquieu, embora ele não pensasse em supremacia absoluta dos representantes do povo por terem o direito de escolher através de voto os seus representantes. Esse seu posicionamento atraia a simpatia das classes nobres e da classe média. Historicamente as palavras são ideologizadas, marcadas por interesses dominantes.

A República talvez seja a forma de governo que mais ambiguidade apresenta na história humana. A palavra tem origem no latim res publica, que significa coisa pública. É, portanto, um conceito contrário ao de coisa privada, particular, vantagem exclusiva. Um governo republicano deve, desse modo, servir ao interesse comum, de todos. A república romana foi a primeira na história das civilizações antigas. Roma foi monárquica, durante o domínio etrusco, a partir de 753 a.c, republicana ao derrubar esse domínio em cerca de 509 ac e imperial, até 476 d.c. No mundo atual, o modelo republicano é evocado como exemplo de correção e lisura, de uma forma de governo que atende às políticas sociais de Estado.

A República romana não foi, de fato, um exemplo de separação entre a coisa pública e a coisa privada. A começar pela justiça romana na qual o direito formal não contemplava as desigualdades sociais, o que significa dizer que pobres e ricos tinham pesos diferentes para essa justiça. Sobre a corrupção, o historiador Paul Veyne é explícito ao observar que “em Roma cada superior pilha seu subordinado” e que os soldados “tradicionalmente” pagavam aos oficiais pela isenção de serviço. Para realizar tal pagamento tudo valia: o roubo, o banditismo ou mesmo trabalhar em tarefas de escravo. Não somente no meio militar, as relações sociais eram corrompidas. Na função pública também ocorria tráfico de influência entre prepostos e subordinados, que, por sua vez, exploravam os administrados. Veyne destaca que esses fatos se aplicam tanto ao período de grandeza da civilização romana quanto ao de declínio. Ter uma função pública, fosse qual fosse, era ter uma fonte de renda não pelo o que se recebia num cargo, mas pelo privilégio que se adquiria de poder negociá-la (a função) com a clientela de candidatos à sucessão. A situação como um todo é para nós, brasileiros, tristemente familiar nessas palavras de Veyne:“[...] Exigir pagamentos ilegais constituía o grande negócio dos governadores de província, que compravam o silêncio dos inspetores imperiais e dividiam os lucros com seus oficiais e chefes de departamento [...]” (2006, p. 96). Não havia, nessas condições, possibilidade de separação entre coisa pública e coisa privada, logo, também não se pode distinguir serviço público de serviço particular numa república assim constituída.   

Floriano Peixoto, nosso segundo presidente republicano, realizou uma “ditadura republicana”. Quem se vangloria de um Brasil republicano, deve saber que, para o quadro social e político brasileiro, tanto ontem quanto hoje, a república é ainda um conceito formal. A nossa instituição republicana não está voltada para o bem comum, não aplica uma justiça equânime social, econômica e judicialmente a todos. Sempre houve golpe ou tentativa de golpe no Brasil monárquico, regencial e republicano. Uma Assembleia Constituinte que admite um poder moderador é golpista em relação aos princípios democráticos, assim como o monarca que a dissolve e homologa ele próprio a Constituição. A proclamação de nossa república, por sua vez, nem de longe foi democrática, ao contrário, desprezou os interesses populares, comprometendo-se com a classe oligárquica. Não tivéramos uma independência de fato e tivemos uma república que não se realizou no sentido amplo. Em primeiro lugar, o motivo para a proclamação foi golpista, através de um recurso que se tornaria muito usado na história da política brasileira: a divulgação, pelos republicanos, de um boato de que o primeiro-ministro liberal, Visconde de Ouro Preto, decretaria a prisão do marechal Deodoro e do tenente-coronel Benjamin Constant.

Nossa monarquia foi discretamente deposta. O monarca não foi morto, como ocorreu na França e em Portugal em suas passagens do regime monárquico para o republicano. Dom João havia fugido de Portugal para o Brasil, quando aqui estabeleceu o reinado colonial e Dom Pedro II fez o caminho oposto quando abandonou o império colonial aqui implantado e fugiu para Portugal.

 

 

.    SEGUNDA PARTE

 

É a razão do Ocidente imprimindo sentido em outros mundos, criando sujeitos que vão ser a imagem e semelhança dessa racionalidade que instituiu, na América Latina, a política. Essa política dos homens, a governança, a política de governar, que se estabeleceu a partir do aparelho que é o Estado: são os Estados nacionais. Na América Latina, Estado Nacional é Estado colonial. Não existe um estado que não seja colonial.

(Ailton Krenak – Sobre a reciprocidade e a capacidade de juntar mundo)

  

 A história das repúblicas no mundo demonstra que elas praticamente não se fundam sem conflitos. Existiram e existem muitas repúblicas civis, militares, de direita e de esquerda, populares e ditatoriais.

Golpes, tomada de poder, transição moderada ou extrema fazem parte da história na passagem de governos monárquicos para republicanos. Muitas repúblicas da história das nações modernas foram fundadas sob golpe na América, Ásia e África colonial. A história colonial moderna é marcada por golpes de direita e de esquerda. De onde se deduz que tomar poder não é prerrogativa de grupos reacionários. A república francesa, fundada após a Revolução Francesa, é um exemplo de uma tomada de poder popular e, ao mesmo tempo, de segmentos economicamente dominantes.

Liberalismo e Democracia são conceitos muitas vezes relacionados como sucedâneos. No liberalismo, defende-se o livre comércio, a liberdade individual, a liberdade de expressão. Na democracia, a instauração de um governo popular através do qual se expresse a vontade da maioria. Os dois campos remetem à ideia de liberdade. Na história do Brasil, contudo, as oligarquias escravocratas reivindicavam seu direito ao livre comércio escravista, evocando os princípios do liberalismo, e conflitando com os princípios democráticos. Por esse motivo, a Carta Constitucional de 1824 manteve o direito inviolável à propriedade escrava.

Os conceitos expressam sua dialética numa relação colonial. O Afeganistão foi disputado entre os impérios britânico e russo e teve sua república proclamada em 1973 pelo tenente general Sardar Mohahmed Daud Khan, que se tornou seu primeiro presidente. Após esse evento político, o país sofreu sucessivos golpes de estado e findou por adotar uma bandeira toda vermelha com o símbolo de um partido denominado Democrático Popular em 1978. A República Centro-Africana é outro exemplo dos conflitos coloniais. O país tornou-se independente da França em 1960. David Dacko, o seu primeiro presidente, considerou toda a oposição ilegal e estabeleceu laços com a China comunista. Em 1966, foi derrubado pelo general Jean Bedel Bokassa, que expulsou a embaixada chinesa do país. Bokassa prometeu restabelecer a democracia na República, mas, criou sua própria ditadura. Seu governo foi contraditório, pois, ao mesmo tempo em que expulsou a embaixada chinesa, nacionalizou diversas empresas, aproximando-se das atitudes de governos comunistas. Em 1974, uma tentativa de golpe contra ele fracassou, os oficiais envolvidos foram presos e condenados. Em 1976, Bokassa sofre novamente uma tentativa de golpe por militares. Nesse contexto, ele tenta restabelecer relações diplomáticas com a China, mas, em nova reviravolta, converte-se ao Islamismo, passando o país a denominar-se Império Centro-Africano, com um regime de monarquia parlamentar. Bokassa, então denominado Bokassa I, sofre novamente um golpe de estado em 1979, desta vez, exitoso. Ele foge, vai se refugiar na Líbia. O país continuou agitado por golpes. Em 1981, o general André Kolingba tomou o poder, mas o governo civil foi restaurado em 1986, exigiram-se eleições multipartidárias, e nesse período emergiu o Movimento Democrático pela Renovação e Evolução na África-Central (MDREC). Apesar disso, em 1992 o líder desse movimento foi preso. Em 1993, em eleições livres, Angel-Félix Patassé, ex-ministro de Bokassa, é eleito, sendo deposto em 2003 num novo golpe. O líder rebelde Bozizé sobe ao poder, mas também é deposto em 2013. Uma informação também relevante sobre esse país é que tem como principal fonte de riqueza mineral os diamantes, no entanto, figura como um dos países mais pobres do mundo.

As trajetórias das repúblicas do Congo são outros exemplos, dentre tantos, das instabilidades dos governos coloniais. O Congo invadido pelos franceses foi declarado país independente em 1960, tornando-se oficialmente uma república, mas seu primeiro presidente foi derrubado por uma revolta popular em 1963. O novo presidente, Alphonse Massamba, adota uma diretriz de governo socialista. Em 1968, forças do Exército, insatisfeitas com seu governo, aplicam um golpe de estado, sob a liderança do Major Marien Ngouabi, depondo Mussamba. Em 1969, o novo presidente anuncia a criação de uma república popular e funda o Partido Congolês dos Trabalhadores, passando o país a ser denominado de República Popular do Congo. Adota como  símbolos nacionais “A internacional” e uma bandeira vermelha. Em 1970, há uma nova tentativa de golpe pelas forças militares contra o governo de Ngouabi, que é esmagada, seguindo-se um expurgo de todas as vozes de oposição. Mas, em 1977, uma nova reviravolta abala a república. Ngouabi é assassinado e uma junta militar assume o poder. O coronel Sassou-Nguesso substitui a junta em 1979 e governa ditatorialmente até 1989. Seu governo adota uma política de “neutralidade”, relacionando-se tanto com países sob regime capitalista quanto comunista. Por fim, em 1990, o Partido Congolês do Trabalho (PCT) desliga-se da corrente marxista-lenista e, em 1992, uma nova Constituição promove a abertura para um sistema multipartidário. Os conflitos políticos, todavia, continuam com ataques de milícias contra as tropas governamentais em 1993, mantendo-se essa situação até 1995. Em 1997, um novo golpe de estado com apoio de Angola é perpetrado e a república segue sua trajetória conturbada nos anos 1998 e 1999 em que governo e rebeldes se enfrentam numa guerra civil, até a assinatura de um cessar-fogo em 1999.

A República Popular do Congo, antiga possessão colonial belga, também enfrentou uma série de golpes de estado e revoltas desde a declaração de sua independência, em 1960, assim como se fragmentou politicamente entre os blocos capitalista e comunista. Permanece em conflito no século XXI. Como outros países africanos, é um dos mais pobres do mundo, com um índice de desenvolvimento ínfimo, e, ao mesmo tempo, um dos mais ricos do mundo em recursos naturais.

Não se pode considerar formalmente que o imperialismo acabou, pelo fato de as colônias terem obtido suas independências e proclamado suas repúblicas, uma vez que  toda a geopolítica é resultado da expansão imperialista, causa das principais questões sociais e políticas no mundo, deixando marcas e consequências desastrosas. O imperialismo antigo e moderno construiu a história de destruição na terra.

É o imperialismo que constitui e apoia as classes favorecidas nas (ex) colônias e essas classes estão sempre a lutar pela manutenção do poder sobre aqueles que exploram. Independência nas colônias em todo o mundo foi e continua sendo um processo não concluído.

Os países imperialistas têm sido os protagonistas das tragédias e dramas da história global, do Ocidente ao Oriente. Muitas vezes, as potências imperialistas tornam os países subjugados em joguetes de seus confrontos e relações de forças. Muitos governantes nos países dependentes e subjugados são meros títeres das potências em disputa. A independência é dependente das relações de submissão políticas e econômicas. No palco dos confrontos estão sempre os mesmos atores, num incansável jogo de tabuleiro, onde se dividem ideologias de direita e de esquerda, territórios (norte/sul), línguas nativas e línguas do colonizador. O troféu é sempre o mesmo – recursos naturais, ou seja, fontes de riqueza e poder.

 


 

TERCEIRA PARTE

  

Abriu o jornal e logo deu com a

notícia de que os navios da esquadra se haviam insurgido e intimado o presidente a sair do poder. Lembrou-se das reflexões de instantes atrás; um governo forte, até à tirania.

(Lima Barreto – Policarpo Quaresma)

 

O Brasil precisa se reconhecer como país colonizado para pensar e enfrentar suas contradições. Algumas análises jornalísticas e acadêmicas ainda discutem se militarismo e religião devem ter relação com política, quando sabemos que esses aspectos são indissociáveis na história das nações. Não se entende o Brasil olhando apenas o presente. Toda a sua construção histórica diz muito sobre o que ele é hoje.

No Brasil, os militares têm um longo histórico de envolvimento em política. Desde os primeiros tempos da República, as forças armadas almejam chegar ao poder.

Durante a guerra do Paraguai, indígenas e ex-escravizados foram, na sua maioria, forçados, a se juntar ao baixo contingente de militares brasileiros que participavam do conflito. A participação negra e indígena fez grande diferença para a vitória do Brasil. O Exército Brasileiro, que não tinha expressão nacional, ganhou prestígio após o conflito, tendo, a partir daí, uma maior participação nas questões políticas.

Ainda no Segundo Império, os militares pró-república contaram com o apoio político dos latifundiários, senhores de escravos, para derrubar o regime monárquico, pois os últimos sentiam-se insatisfeitos com a omissão do Império em lhes estabelecer uma indenização pelos escravizados libertos. Na verdade, oligarquias escravocratas e militares tinham interesses afins, uma vez que a alta hierarquia das Forças Armadas vinha dessa classe, enquanto o contingente subordinado era composto basicamente de pobres e ex-escravizados.

As Forças Armadas não eram um todo harmônico na Primeira República, enquanto o Exército se aliava ao novo regime de governo, a Marinha permanecia a favor do regime monárquico. Essa divisão era claramente uma posição política e se evidenciou até quando o Marechal Deodoro da Fonseca se tornou chefe do governo provisório. Nas dezenas de oficiais eleitos para o Congresso Constituinte, a rivalidade entre o Exército e a Marinha permaneceu. A própria Constituinte foi convocada sob a pressão dos militares partidários da república liberal, contrários ao estabelecimento de uma semiditadura com o governo de Deodoro. As diferenças de concepção também se fazem notar entre os partidários do governo Deodoro e do futuro governo de seu vice, o Marechal Floriano. 

Os partidários de Deodoro não eram defensores das ideias positivistas. Floriano, por sua vez, também não era positivista, mas seus partidários, sim. Essa diferença se fazia notar dentro do próprio Exército. Baseando-se no modelo norte-americano, a primeira Constituição republicana pretendeu instalar uma República Federativa Liberal.

As restrições em relação ao governo de Deodoro se confirmaram quando ele foi eleito o primeiro presidente da República em 1889 e confrontou o Congresso, numa tentativa de restabelecer o poder moderador. Como republicano, Deodoro deveria respeitar os poderes constitucionais, mas, ao contrário, fechou o Congresso, prometendo novas eleições e revisão da Constituição republicana de 1891. Seu objetivo era centralizar o poder executivo, em detrimento da autonomia dos estados da federação, confirmando-se que o golpe de Deodoro não tinha sido somente contra a monarquia, mas contra o próprio sistema republicano. Por outro lado, o objetivo de muitos dos militares que lhe faziam oposição era o de criar oligarquias militares nos estados. A falta de coesão nas Forças Armadas levou Deodoro a renunciar em 1891, levando seu vice, Floriano, que liderava a oposição, a assumir.

Floriano Peixoto realizou a “ditadura republicana” já ao assumir a presidência de forma golpista, pois, segundo o texto constitucional, novas eleições deveriam ser convocadas em face de vaga no cargo, por qualquer causa, não tendo decorrido dois anos do exercício. Questionado, alegou que assumia o mandato porque a eleição não tinha sido pelo voto. Seu governo também foi antirrepublicano, pôs-se acima da Constituição e, contraditoriamente ou não, uma vez que os militares liberais já tinham dado mostras de seu oportunismo político desde o Império, foi apoiado pelas Forças Armadas e pelo Partido Republicano Paulista, que antes lhe faziam oposição. Seu papel autoritário e antidemocrático no governo também não foi uma novidade, pois quando exerceu o cargo de Comandante das Armas e Presidente do Mato Grosso, apoiado pelo Partido Liberal, adotou uma política de repressão aos indígenas. Ficou conhecido como “Marechal de ferro” por reprimir duramente as revoltas que se deram durante o seu governo, a Revolução Federalista e a Segunda Revolta da armada. Decretou Estado de Sítio após manifestação de opositores e mandou prendê-los, ameaçando o Supremo Tribunal Federal, caso julgasse favoravelmente o habeas corpus impetrado nesse órgão em favor da soltura dos revoltosos.

Nos três governos da Primeira República assumidos por militares formaram-se grupos de militares dissidentes do governo. A insubordinação fez parte da história das Forças Armadas Brasileiras. Muitas manifestações de descontentamento colocaram em xeque a disciplina do Exército na primeira década do século XX. Insatisfeitos com baixos soldos e castigos corporais, sargentos, cabos e soldados se rebelaram. As insubordinações demonstram a força das corporações estaduais, enfrentando o governo central.

A alegação de assumir o poder para promover o saneamento e a honestidade foi o mote da campanha do último militar que assumiu a presidência da República Velha: Hermes da Fonseca, sobrinho de Deodoro. Hermes disputou a presidência com Rui Barbosa e ganhou a eleição à custa de fraude. Seu governo enfrentou a Revolta da Chibata. Os revoltosos obtiveram a suspensão dos castigos corporais na Marinha, ficando também acordado que seriam anistiados pelo ato de insubordinação. Após a rendição, entretanto, o governo Hermes decretou Estado de Sítio, expulsando e prendendo os marinheiros que haviam participado do levante. Em resposta à quebra do acordo, iniciaram-se motins de protesto e o governo do marechal Hermes respondeu com ordem de bombardeio aos portos, matando e prendendo centenas de marinheiros. A “Política da salvação” de Hermes se propunha a varrer a corrupção do país, mas, na verdade, pretendia centralizar o poder. Essa política tinha intenção de intervir nos estados, estabelecendo governos militares em substituição às oligarquias agrárias.

Em 1911, o Governo Federal tomou medidas para intervir em São Paulo, deparando-se com um estado preparado para o confronto, inclusive com apoio de batalhões patrióticos organizados pelo Partido Republicano Paulista (PRP) e da Missão Militar Francesa e teve de recuar. No mesmo ano, houve conflito armado entre as tropas federais e a resistência oligárquica de Rosa e Silva em Pernambuco. Com o apoio popular do Exército, O governo central conseguiu colocar o general Dantas Barreto no poder. Em 1912, eclodiram na Bahia, no Ceará e em Alagoas confrontos entre forças militares estaduais e o governo central. Na Bahia, o embate era entre a candidatura de J.J. Seabra, apoiado pelo Exército, e a de um candidato do Partido Republicano Baiano (PRB). A polícia baiana enfrentou populares pró-governo central e o Forte São Marcelo bombardeou Salvador para conter o conflito. Em razão dos confrontos terem resultado em muitas mortes, o governador baiano renunciou.    

Em 1915, mais de uma centena de suboficiais no Rio de Janeiro reivindicaram à Câmara Federal, através do projeto do deputado Maurício de Lacerda, a equiparação das classes de sargentos e o aumento dos soldos. As reivindicações ultrapassaram a questão salarial e ganharam escopo político quando os revoltosos exigiram a criação de uma república parlamentar, substituindo o presidencialismo. Ao descobrir o plano dos militares sediciosos, o governo do presidente Venceslau Brás expulsa-os do Exército e condena 256 sargentos. A revolta ainda se prolongou até 1916 com a adesão de soldados, cabos e oficiais, porém essas tentativas de insurreição fracassaram novamente como as anteriores.

A essas revoltas sucedem-se as da década de 1920 que eclodiram primeiramente em razão da disputa política para a presidência do país entre Nilo Peçanha e Artur Bernardes. Enquanto o primeiro era defensor do florianismo, ou seja, pró-militar, o segundo foi envolvido numa fraude de cartas falsas que o acusavam de ser ofensor dos militares. O movimento dos anos 1920 ficou conhecido como Tenentismo e foi encabeçado por oficiais de nível intermediário do Exército, tenentes e capitães. Houve primeiramente uma manifestação que ficou conhecida como Revolta dos dezoito do Forte de Copacabana, em 05 de julho de 1922, tendo como pretexto salvar a honra do Exército após o ato de fechamento do Clube Militar, devido esse clube ter protestado pela utilização de tropas do governo central em intervenção política em Pernambuco, na época, governado por Hermes da Fonseca. Os rebelados, sob a influência de Hermes, chegaram a lançar alguns tiros de canhão, mas foram cercados e se entregaram. Restou, contudo, um grupo de dezessete militares e um civil que resistiram e foram novamente combatidos, tendo morrido dezesseis e dois sobrevivido – os tenentes Siqueira Campos e Eduardo Gomes. Uma denominada “Segunda Revolta Tenentista” eclodiu em 1924, liderada por oficiais. Desta vez, o objetivo político era derrubar o presidente Artur Bernardes.

A “Revolução de 1930” é o nome dado ao confronto armado entre as polícias militares dos Estados de Minas Gerais, Paraíba, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul, tenentistas, manifestantes civis e o Exército brasileiro, policiais militares legalistas, jagunços. O embate culminou no Golpe de Estado que depôs o presidente Washington Luís, impediu a posse do presidente eleito, Júlio Prestes, pondo na presidência o gaúcho Getúlio Vargas, um dos comandantes do levante, rompendo com a “Política do café com leite” em que somente candidatos dos Estados de São Paulo e Minas Gerais se elegiam para a presidência do país.

Ao assumir o poder, transmitido pela Junta Militar Provisória, Vargas depôs a maioria dos presidentes (como então eram denominados os governadores) dos estados, nomeou interventores militares, na maioria tenentes, que haviam participado do levante, fechou o Congresso Nacional e as Assembleias estaduais e municipais, suspendeu a Constituição vigente, não convocou eleições e governou por decretos até o novo confronto armado em 1932. O levante de 1932, também conhecido como “Revolução constitucionalista” ou “Guerra paulista”, ocorreu entre forças policiais do Estado, da 2ª Região Militar do Exército, de grupos civis armados e as Forças armadas do governo central. O principal objetivo do levante paulista era derrubar o governo provisório de Vargas e convocar uma Assembleia Nacional Constituinte, mas, após quase três meses de enfrentamento, as tropas federais, que eram maioria, foram vitoriosas e o governo paulista se rendeu. Vargas também teve de ceder às pressões e convocar eleições para a Assembleia Nacional Constituinte em 1933, sendo promulgada a nova Constituição em 1934 e realizada sua eleição para presidente pelo voto indireto. A nova constituição vigorou por um período efêmero de dois anos.

Em 1937, gestou-se um novo golpe através do chamado Plano Cohen, um falso argumento de que o comunismo dominaria o país, forjado pelo então capitão Olímpio Mourão Filho que, posteriormente, conspiraria para o golpe militar de 1964. Sob suas ordens, a 4ª Divisão de Infantaria marchou para o Rio de Janeiro a fim de concretizar o golpe. Na implantação do Estado Novo, em 1937, Vargas fechou o Congresso e outorgou uma carta constitucional (Constituição do Estado Novo), dando início ao regime ditatorial do mesmo nome. Em 1938, houve uma tentativa de golpe ao seu governo pelos integralistas que contou com a adesão dos generais Castro Júnior, Guedes da Fontoura e do tenente Severo Fournier, sendo debelado rapidamente. 

O Estado Novo de Vargas teve fim em 1945, com um golpe de generais, entre eles, Eurico Gaspar Dutra que, em 1946, tornou-se Presidente após o interregno em que o poder foi assumido por uma junta militar. Dutra tornou-se, assim, o quarto militar na Presidência. Tivera uma presença ostensiva em movimentos sediciosos e na política, participara da Revolta da Vacina, fora ministro da guerra durante o governo provisório de Vargas e teve papel decisivo juntamente com Vargas e o general Gois Monteiro na conspiração e instauração do governo golpista de 1937. Fez, oportunamente, o caminho contrário em 1945, participando na deposição de Vargas. De certa forma, repetiu Floriano, que estava no governo de Deodoro e articulou a derrubada deste. A política, especialmente no Brasil, não pode ser entendida pela coerência. É mais simples entendê-la por suas contradições, que, no jogo político, podem se chamar “relações oportunas”.  Assim é que a eleição de Dutra para a Presidência tornou-se possível pelo apoio de Vargas. Com esse apoio, venceu nas urnas o adversário, o brigadeiro Eduardo Gomes, em eleições diretas, governando de 1946 a 1950. Getúlio Vargas voltou à Presidência em 1951, após eleições diretas disputadas com o brigadeiro Eduardo Gomes, e governou até seu suicídio em 1954, motivado pela pressão de uma nova ameaça de golpe, vinda tanto de ex-aliados quanto de adversários. O vice de Getúlio, João Café Filho, assumiu a Presidência e comprometeu-se a cumprir o calendário das eleições para Presidente, para a Câmara, o Senado, e os governos estaduais, conforme estava previsto na Constituição. A candidatura de Juscelino Kubitschek foi recusada por antigetulistas e pelos militares da Escola Superior de Guerra que ascendiam também como força política. Não demorou para que o golpe fosse novamente assunto principal no país, inclusive com o boato de um novo estratagema, desta vez, um suposto documento de chefes militares que vetaria a candidatura de Juscelino. A campanha eleitoral também teve, como era habitual, jogada fraudulenta. Surgiu um texto apócrifo, que ficou conhecido como “Carta Brandi”, com denúncia de que João Goulart, vice de Juscelino, pretendia, em articulação com Peron, Presidente da Argentina, instalar uma república sindicalista no Brasil. A inautenticidade da carta foi revelada, Juscelino ganhou as eleições, mas havia uma campanha contra a sua posse. Em primeiro lugar, o Presidente Café Filho, convenientemente, adoece um mês após a vitória eleitoral de Juscelino e o presidente da Câmara, Carlos Luz, simpático ao golpe militar para impedir a posse do candidato eleito, assume interinamente a Presidência. Sucede-se, então, o episódio que ficou conhecido como “Movimento de 11 de novembro de 1955” ou o golpe preventivo, articulado por militares para garantir a posse de Juscelino, com mobilização de tropas do Exército pelo general Lott, as quais ocupam edifícios governamentais, jornais e estações de rádio e, principalmente, cercam as bases navais e aéreas, uma vez que a Marinha e a Aeronáutica se colocam contra a mobilização para reprimir o golpe. Mais uma vez se demonstrava que as Forças armadas, apesar de reunidas numa mesma denominação, não eram unidas. Café Filho tentou retornar à presidência, mas tanto ele quanto Carlos Luz, que havia sido deposto pela mobilização, foram afastados e impedidos pelo Congresso Nacional de ocupar o cargo, tendo o presidente do senado, Nereu Ramos, o ocupado. Preventivamente, o Congresso acatou o pedido feito pelos militares de decretar Estado de Sítio até a posse de Juscelino.

Desde a Proclamação da República, portanto, os militares rondam o poder, urdindo, apoiando e implantando governos, participando efetivamente dos eventos políticos, incluindo os eleitorais. Sua participação na política vem de antes da transição do regime monárquico para o republicano. O Partido Português que atuou durante o Período Colonial, e tinha militares em sua composição, queria a recolonização ao invés da independência.  No período republicano, a sua participação política se acentuou. Os generais Dutra e Eduardo Gomes concorreram à Presidência em 1945, Vargas concorreu com Eduardo Gomes em 1950, Juscelino com o general Juarez Távora em 1955 e o general Lott concorreu com Jânio em 1960. Tanto Gomes quanto Távora haviam participado do Tenentismo, um movimento cuja fundamentação político-militar era a defesa da ditadura. O governo Juscelino, embora civil, possibilitou ampla participação de militares. Postos-chave foram ocupados por militares, a ponto de alguns receberem a classificação de Generais Executivos. Os militares estavam em todas as comissões executivas, como também nos órgãos de planejamento regional e demais serviços públicos. Entre eles, Ernesto Geisel, Golbery do Couto e Silva e o general Henrique Lott, que assumiu o ministério da guerra. Logo no início do governo Juscelino, ocorrera a Revolta de Jacareacanga, chefiada por militares da Aeronáutica e com apoio de Eduardo Gomes. Como Vargas, Juscelino buscava se garantir no poder.  

O general Lott não conseguiu lograr a presidência, foi derrotado assim como Eduardo Gomes o fora duas vezes, mas teve papel de destaque novamente ao impedir a prisão de João Goulart, quando este foi forçado a abandonar a Presidência, que assumira com a renúncia de Jânio. Entre a renúncia de Jânio e a deposição de João Goulart, pairou mais uma vez o fantasma do golpe, que se confirmaria em 1964, com a instalação do regime ditatorial implantado no país, permitindo que vários militares se sucedessem no poder.

Não é especulação, mas fato, que os militares articulam golpes, estando ou não no poder, inclusive por via eleitoral direta, democrática. Golpes para se manterem no poder, golpes para ascenderem ao poder. Existem articulações de bastidores e as peripécias golpistas são tão comuns no Brasil quanto na maior parte dos países colonizados. E, principalmente, ainda que não tenhamos tido governos militares em todo o transcurso de nossa história republicana, as forças militares brasileiras consideram-se um poder acima dos demais poderes da República, pretendendo chegar e se manter no governo pela força ou coação. Por isso, o regime militar golpista de 1964 não deve ser o único foco para se questionar a democracia no Brasil, uma vez que nossa história é marcada pela instabilidade política.

 



QUARTA PARTE

  

Nunca fomos catequizados.

Fizemos foi carnaval.

(Oswald de Andrade – Manifesto Antropófago) 

 

A relação entre política e religião estabelece-se com a invasão do território, convertida na ideologia de contato amistoso e pacífico. Não há evento mais representativo desse fato do que a primeira missa realizada em terra ainda desconhecida na chegada das caravelas portuguesas, a partir de 1500. O território foi batizado de “Terra de Vera Cruz” ou de “Santa Cruz” conforme o escrivão do reino, Mestre João, e o cronista Pero Vaz de Caminha. A “missa”, como é descrita por Caminha, tem várias incoerências. Os indígenas desconheciam os realizadores e o ritual, mas recebem-nos tranquilamente, sem rejeição ou estranhamento. Chegam, segundo o cronista, a se ajoelharem, fazerem gesto de oração, levantando as mãos para o céu, e a comungarem. Relacionam, num gesto, o altar armado pelos invasores e o céu. Nesse ato, indígenas e natureza são pacíficos. Entre invasores e invadidos há comunhão e congraçamento, daí o ritual da missa. Nas palavras de Lília Schwarz e Heloisa Starling (2015), a primeira missa foi entendida como “um nascimento militar e cristão do território”, o que é compreendido pelo gesto do capitão, ao erguer a bandeira de Cristo. A partir de 1512, quando a madeira pau  brasil é introduzida no mercado internacional, a então América Portuguesa passa a denominar-se Brasil ou a combinar os nomes de Terra Sante Crusis de lo Brasil e del Portugal”, fundindo o sentido mercantil e a tarefa religiosa, segundo as autoras. Desse modo, a denominação do país conflui para uma ambivalência entre fé e ganância.

Apesar de os habitantes autóctones aparecerem integrados na cerimônia da primeira missa, a teoria corrente sobre sua origem recusa-se a considerá-los como descendentes de Adão, sua descendência é buscada em referenciais míticos exógenos: gigantes, ninfas, gnomos, pigmeus e até, por uma pincelada de cientificismo, como fruto de geração espontânea. Estranhamente, na terra batizada com nome santo, em que os indígenas aprendem de imediato a rezar, não há uma língua com os fonemas F, L ou R, segundo Pero de Magalhães Gândavo, outro cronista do reino, que justificou a falta dos fonemas como a própria falta de fé (religião), lei (ordem) e rei (comando). A recepção que teriam tidos os índios ao ritual foi descrita de forma igualmente idealizada na pintura de Victor Meireles em 1860, trezentos e sessenta anos mais tarde, na vaga da pintura romântica do Segundo Império e até hoje compõe a iconografia oficial do país, difundindo uma distorção histórica. A pintura ufanista sobre a história brasileira é mais um exemplo do transplante que constitui nossa formação, representando características exógenas e não locais. O famoso quadro do pintor Pedro Américo, de 1888, retratando o Grito da Independência, falta tanto à verdade quanto o da primeira missa.

Contra a versão oficial, é preciso enfatizar que os indígenas sabiam que aquela era uma gente estranha e que seu espaço estava sendo invadido. O empreendimento colonial de catequisar e evangelizar os indígenas era, portanto, fundamental para reprimir a resistência. Tanto indígenas quanto, posteriormente, africanos cônscios e senhores de seus referenciais míticos e culturais são mais difíceis de serem dominados.  Lília Schwarcz e Heloísa Starling informam que a palavra “candomblé” é usada pela primeira vez num contexto de rebelião. Essa foi a denominação dada ao refúgio dos escravizados rebelados na periferia de Salvador em 1896. Os quilombos uniam politicamente grupos com afinidade cultural e religiosa. Houve levante de grupos de escravizados que pretenderam formar reinos muçulmanos. Essas revoltas marcam um precedente para revoltas populares religiosas posteriores, como as de Canudos na Bahia e a do Contestado, na região fronteiriça entre os Estados do Paraná e Santa Catarina.

As revoltas de Canudos, de 1896 a 1897; do Contestado, de 1912 a 1916, e a Sedição de Juazeiro, de 1916, são apontadas como Movimentos messiânicos brasileiros porque seus líderes arregimentaram pela fé religiosa um grande contingente de população pobre, despossuída e excluída. As lideranças de Antônio Conselheiro no povoado de Canudos, na Bahia, de José Maria em Santa Catarina distinguem-se da liderança de padre Cícero em Juazeiro, no Ceará. Os dois primeiros, apesar de terem atraído seguidores pela fé, não possuíam vínculos com instituição religiosa, eram considerados pelo governo como fanáticos.

A massa de revoltosos do Contestado compunha-se de desempregados da Companhia Brasil Railway, camponeses na miséria, expulsos de suas terras, confiscadas pelo governo, para a construção da estrada de ferro ligando São Paulo ao Rio Grande do Sul. Agregaram-se primeiramente em torno das promessas de cura do “monge” José Maria, cujo nome verdadeiro era Miguel Lucena de Boaventura, militar desertor do 14° Regimento de Cavalaria de Curitiba. Assumindo o nome José Maria de outro líder messiânico da época da Revolução federalista, ele consegue congregar seguidores fieis pela promessa de uma “monarquia celeste”, que fundia seitas hereges do tempo da Reforma protestante com messianismo sebastianista de Portugal. Apesar dessa miscelânea de doutrinas, o líder e seus seguidores conseguiram construir uma resistência unida e enfrentaram surpreendentemente as tropas estaduais em combates, só sendo vencidos após bombardeio pelas tropas federais.

Os mesmos enfrentamentos e resistências ocorreram sob a liderança de Antônio Conselheiro, que agregou camponeses fugidos da situação de miséria e exclusão social pela injusta distribuição de terras e de recursos no sertão baiano. Ironicamente, quem fazia a segurança da comunidade que almejava extinguir diferenças sociais, criando rebanhos e mantendo lavouras comunitárias eram ex-jagunços ou ex-cangaceiros de fazendeiros oligarcas.

Tanto os movimentos de Conselheiro quanto o de José Maria se confrontavam com a república recém-implantada, sendo considerados movimentos pró-monarquia. Na verdade, eram movimentos de explorados contra exploradores e representavam a tentativa de implantar uma reforma agrária num país dominado por oligarquias. Padre Cícero, apesar de também comandar levantes armados com um contingente de camponeses pobres, era representante dos Accioli no Ceará, cujo objetivo era o confronto com as tropas federais para manter seu domínio, além disso, Padre Cícero também era proprietário de terras e tinha ambições políticas. Estava comprometido com um “pacto de coronéis”, não com mudanças substanciais da situação dos pobres e despossuídos, que o seguiam pela fé, permanecendo contemplados apenas por pequenos favores que mitigavam sua condição de miséria.

Nos levantes dos escravizados e nas rebeliões do Contestado e de Canudos, a religião fez papel contrário ao doutrinamento catequético de dominação, levou massas oprimidas a se organizarem e a se rebelarem contra o poder oligárquico e o poder do Estado, instituindo não somente a resistência como também o próprio lugar de resistência, representado pelos quilombos e pelos arraiais fundados por Antônio Conselheiro e José Maria.  

A Igreja Católica Romana no Brasil sempre esteve envolvida em política. Padre Cícero e sua ligação com a oligarquia não é uma exceção. A igreja católica esteve de mãos dadas com os coronéis da velha república e permanece até hoje protegida e amparada pelo Estado. Tem ingerência na vida das pessoas, licença para batizá-las, crismá-las, casá-las. Na Constituição de 1824, havia abertura para culto religioso, não eram proibidos cultos de outras denominações, nem a existência de seus templos. A partir da Constituição de 1891, deixou de existir uma religião oficial no Brasil, Estado e Igreja passaram a ser instituições separadas, o que significou a laicização do Estado. Todavia, sem postular uma religião específica, o Estado brasileiro continuou a promover a Igreja Católica Romana como instituição de Estado.

Em 1930, Nossa Senhora da Conceição Aparecida foi proclamada Rainha do Brasil e sua padroeira oficial por decreto do Papa Pio XI.  Em 1946, iniciou-se a construção do Santuário de Nossa Senhora Aparecida, na cidade paulista do mesmo nome. O santuário foi considerado o maior dedicado à Virgem Maria em todo o mundo. Em 1980, o dia 12 de outubro foi decretado dia de Nossa Senhora Aparecida e feriado nacional.

A igreja católica deu um apoio importante ao governo Getúlio Vargas desde 1930. Em retribuição, Vargas, decretou uma série de ações governamentais favoráveis à instituição. A inauguração da estátua do Cristo Redentor, em 1931, foi programada para o dia 12 de outubro, coincidindo com a data do descobrimento da América. Na inauguração, a nação foi consagrada pelo cardeal Lemos ao “Coração Santíssimo de Jesus”, além de ter reconhecido o ícone cristão como rei e senhor da nação para sempre. Vargas também instituiu, por decreto, o ensino religioso nas escolas públicas. Além disso, conjugou militarismo e religião nas comemorações cívicas e nos desfiles estudantis.

A CNBB, criada em 1952, instituição católica que organiza e administra uma série de eventos religiosos, inclusive a Campanha Nacional de Fraternidade, tem em sua sigla a chancela nacional.  

Mesmo não tendo uma religião oficial, o Brasil tem uma padroeira cristã e cada Estado tem sua padroeira ou padroeiro cristão com instituição de feriados estaduais. O estado decreta também o feriado de Corpus Cristi a cada ano. Tudo se explica, não oficialmente, pelo Brasil ser considerado “tradicionalmente” um país católico.  

Ainda na Constituição de 1891, passou a ser livre nos cemitérios, transferidos à administração municipal, o culto de todas as crenças religiosas. Boris Fausto (2002) comenta que, além de apaziguar os ânimos entre Estado e Igreja, essa medida visou facilitar a integração de imigrantes alemães que eram em maioria luteranos. Existe uma série de outros aspectos em que o Estado brasileiro respeitou, considerou e favoreceu a expressão de outras religiões que não a católica. As manifestações culturais estrangeiras, excetuando-se as africanas, sempre foram bem recebidas e consideradas dignas de respeito. As manifestações indígenas e africanas, por outro lado, sempre foram vistas como primitivas e demoníacas. Obrigados a adotar a religião católica desde a chegada dos portugueses, os indígenas não tiveram liberdade nem acolhimento para manifestar seus próprios rituais e ícones espirituais. Em nenhum cemitério público se vê imagens que se associem a ritos africanos ou qualquer estátua de divindade por seus povos cultuada. O comércio de artefatos desses ritos e divindades nas casas chamadas de umbanda é quase clandestino, como se aquele que ali quisesse entrar estivesse cometendo um ato reprovável. 

As sinagogas, templos, lojas de maçonaria, mesquitas são prédios integrados no espaço urbano, enquanto os locais de ritos autóctones e dos povos escravizados são considerados marginais e se situam como periféricos, como os terreiros até hoje discriminados. As igrejas, catedrais, basílicas fazem parte do patrimônio do país, têm tombamento e financiamento público para reforma. O Estado trata com certo privilégio e distinção também as vertentes religiosas do protestantismo e a miríade de congregações que dele se originam ou se afastam. No Estado laico, emissoras de tv aberta, concessões do Estado, podem professar e impor denominação religiosa em seus programas, exaltando-a, e demonizar os cultos afros, exorcizar os indígenas.

O sincretismo religioso é tratado como uma característica positiva na cultura brasileira, embora não represente só a harmonia entre diferentes referenciais religiosos ou espirituais, pelo contrário, representa também o conflito e o amálgama de crenças e ritos envolvidos no processo colonial, a ponto de haver tanto repúdio quanto incorporação. Isso é exposto na peça O pagador de promessas, de Dias Gomes, encenada pela primeira vez em 1960. Resumidamente, o enredo retrata a história de Zé do burro e sua tentativa de cumprir uma promessa feita num terreiro de Candomblé: carregar uma cruz de madeira até a igreja de Santa Bárbara, em Salvador, oferecê-la ao padre para que seu burro doente se recupere. Quando tem ciência de que Zé fizera a promessa a uma sacerdote pagã, a mãe de santo, o padre se recusa a receber a oferenda. Logo se revela uma cadeia de interesses imediatos e oportunos, dos praticantes do candomblé, que veem no pagador de promessa um líder símbolo contra a discriminação, de jornais ávidos por transformá-lo num defensor da reforma agrária, além do interesse e determinação do protagonista em cumprir a promessa. Cria-se, principalmente, um antagonismo entre populares a favor do cumprimento da promessa e o padre intolerante. É nesse momento que o poder de força do Estado entra em cena para garantir, contra o interesse público, a igreja como propriedade privada. Há inevitavelmente um confronto, tendo como vítima o pagador de promessas que, enfim, entra na igreja, morto, sobre a cruz, carregado pelos fieis rebelados.

O sincretismo religioso, a democracia racial, a colonização pacífica são justificativas ideológicas para a negação e o esmagamento do outro.

No Brasil, portanto, ontem como hoje, política e religião sempre se misturaram. Se não pela participação direta em cargos políticos, como Padre Cícero que foi Prefeito de Juazeiro do Norte e Deputado Federal, pelo apoio e pela cumplicidade com líderes políticos. Com a ampliação das congregações protestantes pentecostais, e mais ainda com as neopentecostais, o elo se robusteceu. O espaço de atuação e conversão exercido por essas congregações sofreu um alargamento sem precedentes com o acesso às redes sociais e aos aplicativos de mensagens individualizadas. Enquanto a presença da Igreja Católica Romana no ciberespaço tem, em sua maioria, sido litúrgica (missa, divulgação de eventos religiosos), as participações das igrejas não católicas, especialmente as neopentecostais, são individualizadas, num processo de catequização corpo a corpo, sem formalidades e com ingredientes de espetáculo.

Ao mesmo tempo, o espaço para participação parlamentar de representações religiosas, denominadas evangélicas, também se ampliou, chegando a duplicar entre a primeira e a segunda décadas do século XXI, o que significa que a atuação política de pessoas ligadas a alguma religião ou congregação religiosa não se limita mais apenas ao próprio espaço dos templos (com datas e horários marcados) ou à influência de bastidores, passando a ser uma participação parlamentar efetiva, com influência na votação de projetos. Outro fato é que se a resposta das autoridades católicas apostólicas romanas, através de seu Código de Direito Canônico, é ainda de que seus sacerdotes não devem se envolver em cargos políticos, as congregações neopentecostais, por outro lado, não se defrontam com restrições para assenhorear-se da função político-parlamentar.

 

  

QUINTA PARTE

 

Coronéis e jagunços, em arma se matavam na disputa da terra, a melhor do mundo para a agricultura do cacau.

(Jorge Amado – A descoberta da América pelos turcos)

 


A mudança de regime político no Brasil, da monarquia para a república, não mudou significativamente a economia do país. O latifúndio continuou a dominar, social, econômica e politicamente. A república brasileira caracterizou-se como um conceito formal de transição de poder, assim como não houve conflito de classes na independência, os latifundiários continuaram sendo latifundiários, não houve também mudança de poder na República. Boris Fausto observa que “Como episódio, a passagem do Império para a República foi quase um passeio” (2002, p. 139), o que indica que não houve enfrentamento, não houve, absolutamente, revolução.

A palavra oligarquia é de origem grega e significa governo de poucos, logo, opõe-se a República. A denominada “República oligárquica brasileira” constitui-se também em mais uma carnavalização conceitual. “Deus, família e propriedade” é um lema de mais de quinhentos anos no Brasil. Já abordamos como se apresenta a religião; a família e a propriedade são temas correlatos. A caracterização do latifúndio e do poder oligárquico no Brasil começa com a decisão da Coroa portuguesa de criar as chamadas “Capitanias hereditárias”, ou seja, delegar a administração da área invadida pelo reino português (considera-se a invasão de holandeses e franceses em relação à posse estabelecida pelos portugueses e não a própria ação invasora portuguesa) a particulares, os donatários. A divisão constituiu-se em quinze lotes, pelos quais seriam responsáveis doze donatários. Desse modo, as terras ditas “achadas”, no relato da carta de Pero Vaz de Caminha, foram doadas a uma minoria (funcionários do reino, burocratas, comerciantes e militares), expropriando populações nativas que habitavam essas terras, estimadas em oito milhões de habitantes, número em muito superior aos habitantes de Portugal em 1500, cerca de um milhão de pessoas. Os militares, portanto, fizeram parte da partilha espúria e desigual do território, assim como também participaram da primeira Assembleia Constituinte, em 1823 da qual o povo foi excluído. Por óbvias evidências, a “classe” militar é uma das oligarquias brasileiras. Tem aposentadoria especial, plano de habitação com direito a vilas próprias, plano exclusivo de saúde, com hospitais próprios, poupança exclusiva, pensão vitalícia para os descendestes, direito a julgamento por tribunal próprio.

No período colonial, apesar de os donatários não poderem vender ou dividir as capitanias porque eram propriedades do rei, tinham liberdade para explorá-las, pagando os impostos devidos à Coroa, e para fundar vilas, doar sesmarias, alistar colonos e formar milícias. Posteriormente, a Coroa comprou as capitanias, mas sua passagem ao poder público não extinguiu os privilégios que já tinham se estabelecido.

A classe industrial brasileira tem origem oligárquica, pois se constituiu a partir da acumulação de capitais possibilitada pela exploração das monoculturas. Desde o final do século XIX, grandes fazendeiros investiram na atividade fabril através do capital excedente gerado em seus latifúndios. Durante a velha república, as oligarquias estaduais constituíram-se em poder paralelo, enfrentando o governo central com seu exército de jagunços, arrebanhado entre a população miserável e desempregada. Consideravam apenas o poder das armas e da influência econômica. Os governantes estaduais e o próprio poder central instauraram formalmente um combate às oligarquias dos estados, mas, ao mesmo tempo, também estabeleceram relações nada republicanas com os oligarcas, numa cumplicidade eleitoral e de troca de favores. Em troca de verbas e privilégios, os patriarcas de cada estado elegiam governadores e presidentes, obtendo votos da população pobre e desassistida em troca de mínimos favores, exercendo coação ou mesmo praticando fraudes.

A “Política dos governadores” instituída pelo presidente Campos Sales em 1900, feita em nível federal e estadual, consistindo tanto no apoio do presidente em fim de mandato aos governadores dos estados, quanto no apoio desses governadores ao candidato à presidente perdura no Brasil até hoje. A “Política dos coronéis” igualmente perdura, pois, na maioria dos Estados, os administradores municipais permanecem submetidos aos interesses e aos comandos dos governos estaduais que, por sua vez, estão ligados a grupos oligárquicos. A fisiologia política não mudou substancialmente das primeiras décadas do século XX para as primeiras décadas do século XXI. Ainda são os clãs familiares que dominam a política dos estados e municípios brasileiros, apesar da alternância eleitoral de partidos, a maioria comprometida com essa fisiologia. É assim no Amazonas, em Rondônia, no Acre, no Pará, no Maranhão, na Bahia, em Alagoas, no Piauí, no Ceará, no Mato Grosso, membros familiares se alternam no poder. A observação do deputado Pontes de Miranda, em 1924, ainda é atual: “O Brasil [é] o único país do mundo sem partidos políticos... o que há são agrupamentos em torno de um homem ou alguns homens”. A delegação do cargo político continua a ser patriarcal, apesar de ser proibido o nepotismo. Parlamentares decidem que seus cônjuges, seus familiares podem ser seus suplentes.   

Atribuir corrupção apenas aos representantes do Parlamento é como apontar para o topo de uma montanha, desconsiderando-se sua estrutura. As instituições do Estado brasileiro são marcadas pela presença de oligarquias beneficiadas através de uma rede de clientelismo e apadrinhamento. Do mesmo modo, é beneficiada a iniciativa privada quando as instituições de Estado favorecem-na em detrimento da maioria da população brasileira. 

 

  

SEXTA PARTE

 

  

 Que há de pregar o cachorro,

 sendo uma vil criatura,

 se não sabe de escritura

                                                                    mais que aquela que o pôs forro?

 Quem lhe dá ajuda e socorro

 são quatro sermões antigos

 que lhe vão dando os amigos;

 e se amigos tem um cão,

 milagres do Brasil são

 (Gregório de Matos – sátira)

 

 

 

A herança oligárquica dos latifundiários das capitanias hereditárias, da república dos governadores, dos clãs dos coronéis se apresenta no século XXI com premissas semelhantes; apoiada por poderes paralelos como a banda podre das polícias civis e militares, do poder judiciário e do poder legislativo, pelas milícias vendedoras de segurança privada, envolvidas em negócios ilícitos, extermínios, geradas pela ausência e omissão do Estado; pelos segmentos criminosos do tráfico de entorpecentes, biopirataria, exploração ilegal de recursos naturais, muitas vezes em amálgama tentacular e capilar.

O governo Bolsonaro levou à exacerbação a falida estrutura republicana. Desassistiu educação, saúde e segurança públicas. Cortou ou reduziu verbas públicas em todas as áreas essenciais. Com tal perspectiva, estranhamente, um percentual expressivo da população se manifestou “bolsonarista”. O adjetivo não significa necessariamente uma corrente ou ideário, apenas seguidores. Não se questiona se os seguidores o são por interesses ou por convicções, pois interesses sempre os há. O fato é que seguidores são reprodutores discursivos dos seguidos (na linguagem e nas ações). Se os seguidos são mentecaptos, os seguidores também o serão.

Um governo constituído por falsos argumentos, dispersos, colhidos aqui e ali, sem organicidade, caracterizando um pastiche. Ideias incongruentes entre si, descontextualizadas, como as que remetem ao Integralismo, movimento político de 1932, do qual foi tomado o lema “Deus, pátria e família”. O Integralismo foi um movimento de extrema direita, católico, combatia o capitalismo financeiro, pretendendo estabelecer o controle do Estado sobre a economia, nada mais destoante do quadro atual. O governo que se intitula liberal, como ressaltou o vice-presidente no pronunciamento do último dia de mandato, demonstra ignorância conceitual. O slogan do programa oficial do governo Bolsonaro, “Pátria acima de tudo, deus acima de todos” impõe uma concepção de religião, mais especificamente de grupos religiosos, sendo que a doutrina liberal se expressa justamente em meio às lutas pela tolerância religiosa. No ideário liberal, o Estado tem poderes limitados, enquanto o governo Bolsonaro tenta sobrepor o poder executivo sobre os outros poderes, a fim de controlá-los segundo seus interesses.

Nem mesmo a ideologia partidária deste governo é autêntica, pois se intitula de direita e apropria-se de discursos da esquerda, como a crítica à repressão e à censura. O conservadorismo propalado por esse governo também é um simulacro de ideologias difundidas por segmentos de extrema direita, onde quer que eles se encontrem no mundo atual. A falta de lucidez e de coerência do Governo Bolsonaro é uma fantasia carnavalesca que disfarça os reais interesses que estão em jogo.    

O que parece ousado, surpreendente ou “radical” agora são as mesmas palavras de ordem, a eleição do mesmo inimigo de outrora. Revendo os acontecimentos de março de 1964, no Rio de Janeiro, ali se encontram essas evidências do reacionarismo das classes economicamente dominantes e dirigentes brasileiras. Quando João Goulart tenta uma mobilização popular em prol de reformas sociais progressistas, segmentos reacionários se insurgem contra sua ascensão ao poder. Na “Marcha da Família com Deus pela liberdade”, revela-se a insatisfação de empresários, de parte da Igreja Católica, das Forças Armadas e de setores da classe média com o “governo comunista”. Esses precedentes históricos dispensam relações complexas e menos precisas que hoje se fazem do governo Bolsonaro e seus apoiadores com o Fascismo e o Nazismo. Quando apoiadores de seu governo evocam o AI-5, querem fazer tremular as mesmas bandeiras, sem disfarçar nem as palavras de ordem. Nem o pretexto de combater a corrupção é novo, uma vez que também era evocado naquele contexto e em anteriores.

Não importa se a família já não é a mesma, nem o contexto econômico mundial, nem o militarismo, nem a geopolítica mundial. Para as oligarquias seculares no Brasil, sejam agrárias ou financeiras, pouco importa o fosso entre um contexto e outro, importa quem será o beneficiário. Tornou-se claro que a crítica na eleição à mamata do grupo adversário era um argumento fabular do tipo “Quem, desdenha, quer comprar”. Só uma coisa se renova, se considerarmos a observação de Boris Fausto de que o regime de 1964 nunca assumiu expressamente sua feição autoritária. Agora o autoritarismo é claramente assumido, até mesmo teatralizado com pinceladas de pseudo-patriotismo.

O governo Bolsonaro pôs em prática medidas arbitrarias, como o governo ditatorial de 1964. Passou para a competência do Presidente da República a iniciativa dos projetos de lei que criaram ou aumentaram a despesa pública, mais especificamente “furou” o teto de gastos. Aqueles que se escondem através da imunidade parlamentar e que dizem não poder ter seus direitos suspensos talvez não saibam ou finjam não saber que no regime de 1964 as imunidades parlamentares foram suspensas, tendo o “Comando Supremo da Revolução” sido autorizado a cassar mandatos e a suspender direitos políticos pelo prazo de dez anos. A suspensão da imunidade fazia com que não se pudesse discordar do poder instituído. Houve perseguição a sindicatos e a entidades estudantis. Universidades foram fechadas. Comparando-se essas práticas institucionais com as manifestações dos grupos pró-golpe, em 1964, é possível identificar uma afinação de propósitos. De forma semelhante, há uma afinação entre as práticas do governo Bolsonaro e as bandeiras de seus seguidores. As Ligas camponesas foram perseguidas naquele período, especialmente as do Nordeste. O ódio aos nordestinos propagado agora, a divisão entre Sul rico, desenvolvido, trabalhador e Nordeste miserável e preguiçoso tem precedentes não só no discurso reacionário do golpe de 1964, como também na opção do Estado brasileiro pela mão de obra imigrante europeia. Uma antiga canção de imigrantes italianos expressa como eles constroem uma autoimagem positiva de seu trabalho e seu esforço, oposta, portanto, à imagem que se construiu do autóctone: “Na América onde chegamos/Não encontramos nem palha nem feno/Dormíamos no chão, ao sereno, /Como animais/ e com o engenho de nossos italianos/ E com o esforço de nossos patrícios/ Em poucos anos construímos países e cidades”. A visão local, na Revista Renascença, de 1907, é ainda mais esclarecedora, em termos coloniais, de como o espaço é percebido e a que ele se destina: O Brasil é vasta e extraordinariamente rico, oculta no seu solo minas de incalculável valor, tem um tesouro inexplorado nas madeiras de suas florestas, possui terras fertilíssimas (...) mas falta o homem para explorar todas essas riquezas” Era uma época de efervescência da imigração europeia e o periódico fazia, na verdade, um chamamento, uma convocação. Desde o princípio, o europeu foi considerado como mais apto e capacitado para explorar o território, daí que a industrialização se deu, principalmente, por mão estrangeira.

No governo Bolsonaro tudo foi invertido. Intolerância tornou-se liberdade; mentira, verdade; democracia, plutocracia; nacionalismo, adoração ao estrangeiro; Estado, interesse particular e escuso.

Apesar do nome Messias, Jair Bolsonaro nada tem a ver com os líderes que se insubordinaram no Brasil durante a Velha República. Embora não seja um governante satírico, como o é o personagem Galvez, da obra Galvez, imperador do Acre, de Márcio Souza, muitas características e ações suas coincidem com as desse personagem. O narrador diz, sobre os súditos de Galvez, que se submetiam aos fatos e aos acontecimentos sem conseguir abarcá-los, murmurando boatos. O grito de vitória de Galvez, ao tomar Puerto Alonso, é “Pátria e liberdade”. Como imperador, cria orçamento nacional e um Comitê de Salvação Nacional composto pelos militares que o apoiaram na tomada do poder. Governa abolindo impostos para os ricos proprietários, recebendo favores em troca. Os desertores de seu exército de salvação abandonam a farda, atraídos pelas facilidades do regime de Galvez. Esses desertores são péssimos cristãos. Galvez nomeia os bajuladores que o rodeiam ministros; é um governante que tenta instituir uma república sem se preocupar muito com o que isso quer dizer. O seu regime de governo pouco promete mudar a situação dos desfavorecidos, exceto para pior. Mesmo assim, tem miseráveis e famintos na base de apoio ao seu governo. Em seus expedientes como imperador é um mandrião, só dá o ar de sua augusta presença antes do almoço. As desordens que acontecem na capital do império de Galvez são semelhantes às fanfarronices dos apoiadores de Bolsonaro. As personalidades de seus apoiadores também são similares – uma guerrilheira que quer se dar bem e arranjar marido norte-americano, uma pistoleira de cabaré, uma devassa disfarçada de beata, um valentão covarde. Seu império não é reconhecido por nenhum país. Além de tudo isso, a completa carnavalização do governo Bolsonaro (protestos espetacularizados, destoando com disciplina militar, conservadorismo, moralismo) em sintonia com o império bufo de Galvez. Enfim, ambos, folhetins à brasileira em que as coincidências entre ficção e realidade podem ser atribuídas ao fato de que todos os governantes fantoches se parecem.

O governo Bolsonaro foi caótico, mas seus interesses e os interesses dos apaniguados militares, de artistas, esportistas, de setores reacionários, de grupos econômicos favorecidos com seu desgoverno estavam bem orquestrados. Tudo teve o lugar ideal para se ampliar e difundir: o ciberespaço. O governo e a própria pessoa do político são o exemplo da empresa colonial brasileira, semelhante a muitas outras sul-americanas, africanas e asiáticas: corrupto, contraventor, inescrupuloso, extrativista-predatório.