Lucilene Gomes Lima
PRIMEIRA
PARTE
A loucura,
objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão;
começo a desconfiar que é um continente.
(Machado de
Assis – O alienista)
Assistimos com o
governo Jair Messias Bolsonaro um desfile de excentricidades (para usar uma
palavra elegante) que faz lembrar a crônica musical composta por Francis Hime e
Chico Buarque, gravada em 1984, intitulada “Vai passar”. Na letra dessa canção,
a democracia brasileira passa por um episódio catártico, representado num
desfile carnavalesco.
Nos dias atuais,
tem-se falado amplamente na falta de juízo dos apoiadores do governo Bolsonaro.
Chegou-se a comparar os inconformados com a derrota eleitoral desse governo com
personagens denominados “canjicas” da narrativa O alienista, de Machado de Assis. Mas, é preciso esclarecer, esses
personagens sentiam-se ameaçados pelos desmandos pseudocientíficos de um
lunático ao invés de serem seus seguidores.
A narrativa
machadiana é muito mais complexa do que uma caricatura de personagens. O
alienista analisa a formação acadêmica brasileira, transplantada, e questiona
nossa base política e social, a instabilidade e a superficialidade de nossas
instituições.
Voltando à
canção “Vai passar”, cujo tema trata do gozo da liberdade após o regime ditatorial
militar implantado no Brasil em 1964, é significativo que a letra não aborde a
liberdade apenas como tema referente àquele contexto repressivo. De forma mais
abrangente, ela se refere alegoricamente ao processo escravista da colonização
brasileira.
Nos versos
“Palmas pra ala dos/ Barões famintos/ O bloco dos Napoleões/ Retintos/E os
pigmeus do bulevar/Meu deus, vem olhar/Vem ver de perto uma/ Cidade a cantar/A
evolução da liberdade/Até o dia clarear”, os “barões retintos” têm uma
significação que ultrapassa a impropriedade de negros pobres vestidos de nobres
europeus. A letra desenvolve uma construção similar à de outras canções sobre o
período ditatorial brasileiro, de 1964 a 1984, em que, usando os recursos
ficcionais, era possível afrontar artisticamente os censores do regime, que não
eram esclarecidos, como, de resto, a maior parte das classes dominantes e
dirigentes brasileiras.
Assim como, na
canção, os negros que participam do desfile estão fantasiados do que nunca
foram, as oligarquias enriquecidas com a exploração colonial também sempre
estiveram envergando trajes estranhos, recebendo, por favores, títulos de
nobreza, jactando-se de uma instrução postiça, mandando erguer, conforme outro
verso da canção, “estranhas catedrais”. A alegoria na canção não poderia ser
mais apropriada, pois o Brasil é amplamente esse “vai passar”, essa alegria
episódica, essa catarse possível no carnaval, mas cuja estrutura de dominação e
expropriação comprova-se em muitas “páginas infelizes” de nossa história.
Em Ao vencedor as batatas (1981), ensaio de
Roberto Schwarz que analisa a condição colonial brasileira a partir da obra
machadiana, o autor ilustra como se organiza essa sociedade do pastiche, da
fantasia, dos conceitos às avessas. Uma sociedade carnavalizada, uma vez que o
carnaval significa em sua origem inversão de valores, transfiguração. No Brasil
colonial, as casas construídas pelos escravizados tinham suas paredes internas
recobertas por motivos arquitetônicos europeus, pinturas greco-romanas,
aparentando ser um material que sequer existia localmente. Ao fim da
escravatura, no Segundo Império, os criados das famílias abastadas foram
substituídos por criados europeus. Na composição do hino à república, de 1890, a
escravidão, recém-abolida, é descrita como passado distante com intuito de nos
relacionar às sociedades livres, liberais e progressistas centro europeias.
Ainda nem findo o regime escravo, já importávamos mão de obra estrangeira, um
indicativo de que os milhares de escravizados libertos e seus descendentes seriam
marginalizados. Nos processos coloniais, há situações recorrentes: na Guiana
inglesa, no século XIX, os donos de plantações substituíram os escravizados
negros por trabalhadores indianos contratados.
No Brasil, após a abolição, a ex-mão de obra escrava é, por fim, excluída
da economia formal. A partir de então, investe-se na política de branqueamento
num país onde a maioria da população é mestiça.
Schwarz destaca
que a fantasia civilizacional, segundo os padrões europeus, abrangeu um amplo
espectro de nossa sociedade nos meios de entretenimento e informação, nos
costumes, nos símbolos nacionais, nas teorias, destoando do contexto local.
Mesmo os estilos literários que canonizaram os nossos autores constituíram-se
em ideias e ideais fora de contexto. Isso se comprova, uma vez que a nossa
literatura de formação é pouco mais do que o relato e a fantasia da aventura colonizadora.
O movimento barroco, que na Europa configura o conflito entre o teocentrismo
medieval e o antropocentrismo renascentista, carece de propriedade num tempo e
espaço que nunca tivemos. O mesmo se pode conjecturar dos movimentos Neo-classicismo,
Romantismo, Naturalismo, Realismo, Simbolismo, Parnasianismo e Modernismo com programas episódicos exercidos por alguns
autores brasileiros, mas descompassados em relação a contextos sociais e
históricos europeus.
Nossa formação
partidária durante o Segundo Império, o partido liberal ou o partido liberal
conservador, o último uma conjunção antitética, reúne liberalismo e escravismo.
Contudo, a contradição não é exclusiva do Brasil. Ocorreu na maioria das
colônias americanas, baseadas na economia de plantação de monoculturas. A
expressão “liberalismo oligárquico”, utilizada por Alfredo Bosi em Dialética da colonização, (1992) é mais
pertinente em todos esses casos.
A sociedade
brasileira carnavalizada adota a ideologia liberal em plena escravatura, brada
uma independência que não se realizou de fato, proclama uma república da
espada, sob interesses oligárquicos, minoritários, adota uma bandeira com o
lema positivista “Ordem e progresso”, quando Auguste Comte, o fundador dessa
doutrina, era monarquista. Liberalismo, República, Democracia são todos conceitos
fora do lugar no Brasil pelas discrepâncias entre esses conceitos, as
instituições e nossa realidade.
Nunca os
conceitos, as ideias estiveram tão fora do lugar como agora em que as palavras
navegam à deriva, ao sabor da desinformação. Monarquia, República, Liberalismo,
Democracia, golpe são palavras que têm história. Os conceitos não valem apenas
por sua semântica, existem numa relação dialética. John Locke, um dos ideólogos
do Liberalismo inglês, cujas concepções embasaram as ideias dos filósofos
iluministas, que, por sua vez, embasaram a Revolução francesa, concebia a
liberdade e a propriedade como direitos naturais. Contudo, no evento da
Revolução francesa, a própria situação social e política da França
pré-revolução indica que os direitos, as liberdades não são naturalmente usufruídos
pelos indivíduos, resultam de interesses de classes, posições sociais.
François- Marie Voltaire, pensador iluminista, inspirou com suas ideias
revoluções e formas de governo constitucionais representativos, não
absolutistas, mas não era democrata, concebia que a forma de governo ideal
seria uma monarquia esclarecida.
As bases daquilo
que hoje chamamos democracia representativa, separação e autonomia de poderes,
foram propostas em teoria pelo filósofo iluminista Montesquieu, embora ele não
pensasse em supremacia absoluta dos representantes do povo por terem o direito
de escolher através de voto os seus representantes. Esse seu posicionamento atraia
a simpatia das classes nobres e da classe média. Historicamente as palavras são
ideologizadas, marcadas por interesses dominantes.
A República
talvez seja a forma de governo que mais ambiguidade apresenta na história
humana. A palavra tem origem no latim res
publica, que significa coisa pública. É, portanto, um conceito contrário ao
de coisa privada, particular, vantagem exclusiva. Um governo republicano deve,
desse modo, servir ao interesse comum, de todos. A república romana foi a
primeira na história das civilizações antigas. Roma foi monárquica, durante o
domínio etrusco, a partir de 753 a.c, republicana ao derrubar esse domínio em
cerca de 509 ac e imperial, até 476 d.c. No mundo atual, o modelo republicano é
evocado como exemplo de correção e lisura, de uma forma de governo que atende
às políticas sociais de Estado.
A República
romana não foi, de fato, um exemplo de separação entre a coisa pública e a
coisa privada. A começar pela justiça romana na qual o direito formal não
contemplava as desigualdades sociais, o que significa dizer que pobres e ricos
tinham pesos diferentes para essa justiça. Sobre a corrupção, o historiador
Paul Veyne é explícito ao observar que “em Roma cada superior pilha seu
subordinado” e que os soldados “tradicionalmente” pagavam aos oficiais pela
isenção de serviço. Para realizar tal pagamento tudo valia: o roubo, o
banditismo ou mesmo trabalhar em tarefas de escravo. Não somente no meio
militar, as relações sociais eram corrompidas. Na função pública também ocorria
tráfico de influência entre prepostos e subordinados, que, por sua vez,
exploravam os administrados. Veyne destaca que esses fatos se aplicam tanto ao
período de grandeza da civilização romana quanto ao de declínio. Ter uma função
pública, fosse qual fosse, era ter uma fonte de renda não pelo o que se recebia
num cargo, mas pelo privilégio que se adquiria de poder negociá-la (a função)
com a clientela de candidatos à sucessão. A situação como um todo é para nós,
brasileiros, tristemente familiar nessas palavras de Veyne:“[...] Exigir
pagamentos ilegais constituía o grande negócio dos governadores de província,
que compravam o silêncio dos inspetores imperiais e dividiam os lucros com seus
oficiais e chefes de departamento [...]” (2006, p. 96). Não havia, nessas
condições, possibilidade de separação entre coisa pública e coisa privada,
logo, também não se pode distinguir serviço público de serviço particular numa
república assim constituída.
Floriano Peixoto,
nosso segundo presidente republicano, realizou uma “ditadura republicana”. Quem
se vangloria de um Brasil republicano, deve saber que, para o quadro social e
político brasileiro, tanto ontem quanto hoje, a república é ainda um conceito
formal. A nossa instituição republicana não está voltada para o bem comum, não
aplica uma justiça equânime social, econômica e judicialmente a todos. Sempre
houve golpe ou tentativa de golpe no Brasil monárquico, regencial e
republicano. Uma Assembleia Constituinte que admite um poder moderador é
golpista em relação aos princípios democráticos, assim como o monarca que a
dissolve e homologa ele próprio a Constituição. A proclamação de nossa
república, por sua vez, nem de longe foi democrática, ao contrário, desprezou
os interesses populares, comprometendo-se com a classe oligárquica. Não
tivéramos uma independência de fato e tivemos uma república que não se realizou
no sentido amplo. Em primeiro lugar, o motivo para a proclamação foi golpista,
através de um recurso que se tornaria muito usado na história da política
brasileira: a divulgação, pelos republicanos, de um boato de que o
primeiro-ministro liberal, Visconde de Ouro Preto, decretaria a prisão do
marechal Deodoro e do tenente-coronel Benjamin Constant.
Nossa monarquia
foi discretamente deposta. O monarca não foi morto, como ocorreu na França e em
Portugal em suas passagens do regime monárquico para o republicano. Dom João
havia fugido de Portugal para o Brasil, quando aqui estabeleceu o reinado
colonial e Dom Pedro II fez o caminho oposto quando abandonou o império
colonial aqui implantado e fugiu para Portugal.
. SEGUNDA PARTE
É a razão do
Ocidente imprimindo sentido em outros mundos, criando sujeitos que vão ser a
imagem e semelhança dessa racionalidade que instituiu, na América Latina, a
política. Essa política dos homens, a governança, a política de governar, que
se estabeleceu a partir do aparelho que é o Estado: são os Estados nacionais.
Na América Latina, Estado Nacional é Estado colonial. Não existe um estado que
não seja colonial.
(Ailton Krenak –
Sobre a reciprocidade e a capacidade de juntar mundo)
A história das repúblicas no mundo
demonstra que elas praticamente não se fundam sem conflitos. Existiram e
existem muitas repúblicas civis, militares, de direita e de esquerda, populares
e ditatoriais.
Golpes, tomada
de poder, transição moderada ou extrema fazem parte da história na passagem de
governos monárquicos para republicanos. Muitas repúblicas da história das
nações modernas foram fundadas sob golpe na América, Ásia e África colonial. A
história colonial moderna é marcada por golpes de direita e de esquerda. De
onde se deduz que tomar poder não é prerrogativa de grupos reacionários. A
república francesa, fundada após a Revolução Francesa, é um exemplo de uma
tomada de poder popular e, ao mesmo tempo, de segmentos economicamente
dominantes.
Liberalismo e
Democracia são conceitos muitas vezes relacionados como sucedâneos. No
liberalismo, defende-se o livre comércio, a liberdade individual, a liberdade
de expressão. Na democracia, a instauração de um governo popular através do
qual se expresse a vontade da maioria. Os dois campos remetem à ideia de
liberdade. Na história do Brasil, contudo, as oligarquias escravocratas
reivindicavam seu direito ao livre comércio escravista, evocando os princípios
do liberalismo, e conflitando com os princípios democráticos. Por esse motivo,
a Carta Constitucional de 1824 manteve o direito inviolável à propriedade
escrava.
Os conceitos
expressam sua dialética numa relação colonial. O Afeganistão foi disputado
entre os impérios britânico e russo e teve sua república proclamada em 1973
pelo tenente general Sardar Mohahmed Daud Khan, que se tornou seu primeiro
presidente. Após esse evento político, o país sofreu sucessivos golpes de
estado e findou por adotar uma bandeira toda vermelha com o símbolo de um
partido denominado Democrático Popular em 1978. A República Centro-Africana é
outro exemplo dos conflitos coloniais. O país tornou-se independente da França
em 1960. David Dacko, o seu primeiro presidente, considerou toda a oposição
ilegal e estabeleceu laços com a China comunista. Em 1966, foi derrubado pelo
general Jean Bedel Bokassa, que expulsou a embaixada chinesa do país. Bokassa
prometeu restabelecer a democracia na República, mas, criou sua própria
ditadura. Seu governo foi contraditório, pois, ao mesmo tempo em que expulsou a
embaixada chinesa, nacionalizou diversas empresas, aproximando-se das atitudes
de governos comunistas. Em 1974, uma tentativa de golpe contra ele fracassou,
os oficiais envolvidos foram presos e condenados. Em 1976, Bokassa sofre
novamente uma tentativa de golpe por militares. Nesse contexto, ele tenta
restabelecer relações diplomáticas com a China, mas, em nova reviravolta,
converte-se ao Islamismo, passando o país a denominar-se Império Centro-Africano,
com um regime de monarquia parlamentar. Bokassa, então denominado Bokassa I,
sofre novamente um golpe de estado em 1979, desta vez, exitoso. Ele foge, vai
se refugiar na Líbia. O país continuou agitado por golpes. Em 1981, o general
André Kolingba tomou o poder, mas o governo civil foi restaurado em 1986,
exigiram-se eleições multipartidárias, e nesse período emergiu o Movimento
Democrático pela Renovação e Evolução na África-Central (MDREC). Apesar disso,
em 1992 o líder desse movimento foi preso. Em 1993, em eleições livres,
Angel-Félix Patassé, ex-ministro de Bokassa, é eleito, sendo deposto em 2003
num novo golpe. O líder rebelde Bozizé sobe ao poder, mas também é deposto em
2013. Uma informação também relevante sobre esse país é que tem como principal
fonte de riqueza mineral os diamantes, no entanto, figura como um dos países
mais pobres do mundo.
As trajetórias
das repúblicas do Congo são outros exemplos, dentre tantos, das instabilidades
dos governos coloniais. O Congo invadido pelos franceses foi declarado país
independente em 1960, tornando-se oficialmente uma república, mas seu primeiro
presidente foi derrubado por uma revolta popular em 1963. O novo presidente,
Alphonse Massamba, adota uma diretriz de governo socialista. Em 1968, forças do
Exército, insatisfeitas com seu governo, aplicam um golpe de estado, sob a
liderança do Major Marien Ngouabi, depondo Mussamba. Em 1969, o novo presidente
anuncia a criação de uma república popular e funda o Partido Congolês dos
Trabalhadores, passando o país a ser denominado de República Popular do Congo.
Adota como símbolos nacionais “A
internacional” e uma bandeira vermelha. Em 1970, há uma nova tentativa de golpe
pelas forças militares contra o governo de Ngouabi, que é esmagada, seguindo-se
um expurgo de todas as vozes de oposição. Mas, em 1977, uma nova reviravolta
abala a república. Ngouabi é assassinado e uma junta militar assume o poder. O
coronel Sassou-Nguesso substitui a junta em 1979 e governa ditatorialmente até
1989. Seu governo adota uma política de “neutralidade”, relacionando-se tanto
com países sob regime capitalista quanto comunista. Por fim, em 1990, o Partido
Congolês do Trabalho (PCT) desliga-se da corrente marxista-lenista e, em 1992,
uma nova Constituição promove a abertura para um sistema multipartidário. Os
conflitos políticos, todavia, continuam com ataques de milícias contra as
tropas governamentais em 1993, mantendo-se essa situação até 1995. Em 1997, um
novo golpe de estado com apoio de Angola é perpetrado e a república segue sua
trajetória conturbada nos anos 1998 e 1999 em que governo e rebeldes se
enfrentam numa guerra civil, até a assinatura de um cessar-fogo em 1999.
A República
Popular do Congo, antiga possessão colonial belga, também enfrentou uma série
de golpes de estado e revoltas desde a declaração de sua independência, em
1960, assim como se fragmentou politicamente entre os blocos capitalista e
comunista. Permanece em conflito no século XXI. Como outros países africanos, é
um dos mais pobres do mundo, com um índice de desenvolvimento ínfimo, e, ao
mesmo tempo, um dos mais ricos do mundo em recursos naturais.
Não se pode
considerar formalmente que o imperialismo acabou, pelo fato de as colônias terem
obtido suas independências e proclamado suas repúblicas, uma vez que toda a geopolítica é resultado da expansão
imperialista, causa das principais questões sociais e políticas no mundo,
deixando marcas e consequências desastrosas. O imperialismo antigo e moderno
construiu a história de destruição na terra.
É o imperialismo
que constitui e apoia as classes favorecidas nas (ex) colônias e essas classes
estão sempre a lutar pela manutenção do poder sobre aqueles que exploram.
Independência nas colônias em todo o mundo foi e continua sendo um processo não
concluído.
Os países
imperialistas têm sido os protagonistas das tragédias e dramas da história
global, do Ocidente ao Oriente. Muitas vezes, as potências imperialistas tornam
os países subjugados em joguetes de seus confrontos e relações de forças.
Muitos governantes nos países dependentes e subjugados são meros títeres das
potências em disputa. A independência é dependente das relações de submissão
políticas e econômicas. No palco dos confrontos estão sempre os mesmos atores,
num incansável jogo de tabuleiro, onde se dividem ideologias de direita e de
esquerda, territórios (norte/sul), línguas nativas e línguas do colonizador. O
troféu é sempre o mesmo – recursos naturais, ou seja, fontes de riqueza e
poder.
TERCEIRA
PARTE
Abriu o jornal e
logo deu com a
notícia de que
os navios da esquadra se haviam insurgido e intimado o presidente a sair do
poder. Lembrou-se das reflexões de instantes atrás; um governo forte, até à
tirania.
(Lima Barreto –
Policarpo Quaresma)
O Brasil precisa
se reconhecer como país colonizado para pensar e enfrentar suas contradições.
Algumas análises jornalísticas e acadêmicas ainda discutem se militarismo e
religião devem ter relação com política, quando sabemos que esses aspectos são
indissociáveis na história das nações. Não se entende o Brasil olhando apenas o
presente. Toda a sua construção histórica diz muito sobre o que ele é hoje.
No Brasil, os
militares têm um longo histórico de envolvimento em política. Desde os
primeiros tempos da República, as forças armadas almejam chegar ao poder.
Durante a guerra
do Paraguai, indígenas e ex-escravizados foram, na sua maioria, forçados, a se
juntar ao baixo contingente de militares brasileiros que participavam do
conflito. A participação negra e indígena fez grande diferença para a vitória
do Brasil. O Exército Brasileiro, que não tinha expressão nacional, ganhou
prestígio após o conflito, tendo, a partir daí, uma maior participação nas
questões políticas.
Ainda no Segundo
Império, os militares pró-república contaram com o apoio político dos
latifundiários, senhores de escravos, para derrubar o regime monárquico, pois
os últimos sentiam-se insatisfeitos com a omissão do Império em lhes
estabelecer uma indenização pelos escravizados libertos. Na verdade,
oligarquias escravocratas e militares tinham interesses afins, uma vez que a
alta hierarquia das Forças Armadas vinha dessa classe, enquanto o contingente
subordinado era composto basicamente de pobres e ex-escravizados.
As Forças Armadas
não eram um todo harmônico na Primeira República, enquanto o Exército se aliava
ao novo regime de governo, a Marinha permanecia a favor do regime monárquico.
Essa divisão era claramente uma posição política e se evidenciou até quando o
Marechal Deodoro da Fonseca se tornou chefe do governo provisório. Nas dezenas
de oficiais eleitos para o Congresso Constituinte, a rivalidade entre o
Exército e a Marinha permaneceu. A própria Constituinte foi convocada sob a
pressão dos militares partidários da república liberal, contrários ao
estabelecimento de uma semiditadura com o governo de Deodoro. As diferenças de
concepção também se fazem notar entre os partidários do governo Deodoro e do futuro
governo de seu vice, o Marechal Floriano.
Os partidários de
Deodoro não eram defensores das ideias positivistas. Floriano, por sua vez,
também não era positivista, mas seus partidários, sim. Essa diferença se fazia
notar dentro do próprio Exército. Baseando-se no modelo norte-americano, a
primeira Constituição republicana pretendeu instalar uma República Federativa
Liberal.
As restrições em
relação ao governo de Deodoro se confirmaram quando ele foi eleito o primeiro
presidente da República em 1889 e confrontou o Congresso, numa tentativa de
restabelecer o poder moderador. Como republicano, Deodoro deveria respeitar os
poderes constitucionais, mas, ao contrário, fechou o Congresso, prometendo novas
eleições e revisão da Constituição republicana de 1891. Seu objetivo era
centralizar o poder executivo, em detrimento da autonomia dos estados da
federação, confirmando-se que o golpe de Deodoro não tinha sido somente contra
a monarquia, mas contra o próprio sistema republicano. Por outro lado, o
objetivo de muitos dos militares que lhe faziam oposição era o de criar oligarquias
militares nos estados. A falta de coesão nas Forças Armadas levou Deodoro a
renunciar em 1891, levando seu vice, Floriano, que liderava a oposição, a
assumir.
Floriano Peixoto
realizou a “ditadura republicana” já ao assumir a presidência de forma
golpista, pois, segundo o texto constitucional, novas eleições deveriam ser
convocadas em face de vaga no cargo, por qualquer causa, não tendo decorrido
dois anos do exercício. Questionado, alegou que assumia o mandato porque a
eleição não tinha sido pelo voto. Seu governo também foi antirrepublicano,
pôs-se acima da Constituição e, contraditoriamente ou não, uma vez que os
militares liberais já tinham dado mostras de seu oportunismo político desde o
Império, foi apoiado pelas Forças Armadas e pelo Partido Republicano Paulista,
que antes lhe faziam oposição. Seu papel autoritário e antidemocrático no
governo também não foi uma novidade, pois quando exerceu o cargo de Comandante
das Armas e Presidente do Mato Grosso, apoiado pelo Partido Liberal, adotou uma
política de repressão aos indígenas. Ficou conhecido como “Marechal de ferro”
por reprimir duramente as revoltas que se deram durante o seu governo, a
Revolução Federalista e a Segunda Revolta da armada. Decretou Estado de Sítio
após manifestação de opositores e mandou prendê-los, ameaçando o Supremo
Tribunal Federal, caso julgasse favoravelmente o habeas corpus impetrado nesse órgão em favor da soltura dos
revoltosos.
Nos três
governos da Primeira República assumidos por militares formaram-se grupos de
militares dissidentes do governo. A insubordinação fez parte da história das
Forças Armadas Brasileiras. Muitas manifestações de descontentamento colocaram
em xeque a disciplina do Exército na primeira década do século XX. Insatisfeitos
com baixos soldos e castigos corporais, sargentos, cabos e soldados se
rebelaram. As insubordinações demonstram a força das corporações estaduais,
enfrentando o governo central.
A alegação de
assumir o poder para promover o saneamento e a honestidade foi o mote da
campanha do último militar que assumiu a presidência da República Velha: Hermes
da Fonseca, sobrinho de Deodoro. Hermes disputou a presidência com Rui Barbosa
e ganhou a eleição à custa de fraude. Seu governo enfrentou a Revolta da Chibata.
Os revoltosos obtiveram a suspensão dos castigos corporais na Marinha, ficando
também acordado que seriam anistiados pelo ato de insubordinação. Após a
rendição, entretanto, o governo Hermes decretou Estado de Sítio, expulsando e
prendendo os marinheiros que haviam participado do levante. Em resposta à
quebra do acordo, iniciaram-se motins de protesto e o governo do marechal
Hermes respondeu com ordem de bombardeio aos portos, matando e prendendo
centenas de marinheiros. A “Política da salvação” de Hermes se propunha a
varrer a corrupção do país, mas, na verdade, pretendia centralizar o poder.
Essa política tinha intenção de intervir nos estados, estabelecendo governos
militares em substituição às oligarquias agrárias.
Em 1911, o
Governo Federal tomou medidas para intervir em São Paulo, deparando-se com um estado
preparado para o confronto, inclusive com apoio de batalhões patrióticos
organizados pelo Partido Republicano Paulista (PRP) e da Missão Militar Francesa
e teve de recuar. No mesmo ano, houve conflito armado entre as tropas federais
e a resistência oligárquica de Rosa e Silva em Pernambuco. Com o apoio popular
do Exército, O governo central conseguiu colocar o general Dantas Barreto no
poder. Em 1912, eclodiram na Bahia, no Ceará e em Alagoas confrontos entre
forças militares estaduais e o governo central. Na Bahia, o embate era entre a
candidatura de J.J. Seabra, apoiado pelo Exército, e a de um candidato do
Partido Republicano Baiano (PRB). A polícia baiana enfrentou populares pró-governo
central e o Forte São Marcelo bombardeou Salvador para conter o conflito. Em
razão dos confrontos terem resultado em muitas mortes, o governador baiano
renunciou.
Em 1915, mais de
uma centena de suboficiais no Rio de Janeiro reivindicaram à Câmara Federal,
através do projeto do deputado Maurício de Lacerda, a equiparação das classes
de sargentos e o aumento dos soldos. As
reivindicações ultrapassaram a questão salarial e ganharam escopo político
quando os revoltosos exigiram a criação de uma república parlamentar,
substituindo o presidencialismo. Ao descobrir o plano dos militares sediciosos,
o governo do presidente Venceslau Brás expulsa-os do Exército e condena 256
sargentos. A revolta ainda se prolongou até 1916 com a adesão de soldados,
cabos e oficiais, porém essas tentativas de insurreição fracassaram novamente
como as anteriores.
A essas revoltas
sucedem-se as da década de 1920 que eclodiram primeiramente em razão da disputa
política para a presidência do país entre Nilo Peçanha e Artur Bernardes.
Enquanto o primeiro era defensor do florianismo, ou seja, pró-militar, o
segundo foi envolvido numa fraude de cartas falsas que o acusavam de ser
ofensor dos militares. O movimento dos anos 1920 ficou conhecido como Tenentismo
e foi encabeçado por oficiais de nível intermediário do Exército, tenentes e
capitães. Houve primeiramente uma manifestação que ficou conhecida como Revolta
dos dezoito do Forte de Copacabana, em 05 de julho de 1922, tendo como pretexto
salvar a honra do Exército após o ato de fechamento do Clube Militar, devido
esse clube ter protestado pela utilização de tropas do governo central em
intervenção política em Pernambuco, na época, governado por Hermes da Fonseca.
Os rebelados, sob a influência de Hermes, chegaram a lançar alguns tiros de
canhão, mas foram cercados e se entregaram. Restou, contudo, um grupo de
dezessete militares e um civil que resistiram e foram novamente combatidos,
tendo morrido dezesseis e dois sobrevivido – os tenentes Siqueira Campos e
Eduardo Gomes. Uma denominada “Segunda Revolta Tenentista” eclodiu em 1924,
liderada por oficiais. Desta vez, o objetivo político era derrubar o presidente
Artur Bernardes.
A “Revolução de
1930” é o nome dado ao confronto armado entre as polícias militares dos Estados
de Minas Gerais, Paraíba, a Brigada Militar do Rio Grande do Sul, tenentistas,
manifestantes civis e o Exército brasileiro, policiais militares legalistas, jagunços.
O embate culminou no Golpe de Estado que depôs o presidente Washington Luís,
impediu a posse do presidente eleito, Júlio Prestes, pondo na presidência o
gaúcho Getúlio Vargas, um dos comandantes do levante, rompendo com a “Política
do café com leite” em que somente candidatos dos Estados de São Paulo e Minas
Gerais se elegiam para a presidência do país.
Ao assumir o
poder, transmitido pela Junta Militar Provisória, Vargas depôs a maioria dos
presidentes (como então eram denominados os governadores) dos estados, nomeou
interventores militares, na maioria tenentes, que haviam participado do
levante, fechou o Congresso Nacional e as Assembleias estaduais e municipais,
suspendeu a Constituição vigente, não convocou eleições e governou por decretos
até o novo confronto armado em 1932. O levante de 1932, também conhecido como
“Revolução constitucionalista” ou “Guerra paulista”, ocorreu entre forças
policiais do Estado, da 2ª Região Militar do Exército, de grupos civis armados e
as Forças armadas do governo central. O principal objetivo do levante paulista
era derrubar o governo provisório de Vargas e convocar uma Assembleia Nacional
Constituinte, mas, após quase três meses de enfrentamento, as tropas federais,
que eram maioria, foram vitoriosas e o governo paulista se rendeu. Vargas
também teve de ceder às pressões e convocar eleições para a Assembleia Nacional
Constituinte em 1933, sendo promulgada a nova Constituição em 1934 e realizada
sua eleição para presidente pelo voto indireto. A nova constituição vigorou por
um período efêmero de dois anos.
Em 1937, gestou-se
um novo golpe através do chamado Plano Cohen, um falso argumento de que o
comunismo dominaria o país, forjado pelo então capitão Olímpio Mourão Filho que,
posteriormente, conspiraria para o golpe militar de 1964. Sob suas ordens, a 4ª
Divisão de Infantaria marchou para o Rio de Janeiro a fim de concretizar o
golpe. Na implantação do Estado Novo, em 1937, Vargas fechou o Congresso e
outorgou uma carta constitucional (Constituição do Estado Novo), dando início
ao regime ditatorial do mesmo nome. Em 1938, houve uma tentativa de golpe ao seu
governo pelos integralistas que contou com a adesão dos generais Castro Júnior,
Guedes da Fontoura e do tenente Severo Fournier, sendo debelado
rapidamente.
O Estado Novo de
Vargas teve fim em 1945, com um golpe de generais, entre eles, Eurico Gaspar
Dutra que, em 1946, tornou-se Presidente após o interregno em que o poder foi
assumido por uma junta militar. Dutra tornou-se, assim, o quarto militar na Presidência.
Tivera uma presença ostensiva em movimentos sediciosos e na política, participara
da Revolta da Vacina, fora ministro da guerra durante o governo provisório de
Vargas e teve papel decisivo juntamente com Vargas e o general Gois Monteiro na
conspiração e instauração do governo golpista de 1937. Fez, oportunamente, o
caminho contrário em 1945, participando na deposição de Vargas. De certa forma,
repetiu Floriano, que estava no governo de Deodoro e articulou a derrubada
deste. A política, especialmente no Brasil, não pode ser entendida pela coerência.
É mais simples entendê-la por suas contradições, que, no jogo político, podem
se chamar “relações oportunas”. Assim é
que a eleição de Dutra para a Presidência tornou-se possível pelo apoio de
Vargas. Com esse apoio, venceu nas urnas o adversário, o brigadeiro Eduardo
Gomes, em eleições diretas, governando de 1946 a 1950. Getúlio Vargas voltou à
Presidência em 1951, após eleições diretas disputadas com o brigadeiro Eduardo
Gomes, e governou até seu suicídio em 1954, motivado pela pressão de uma nova
ameaça de golpe, vinda tanto de ex-aliados quanto de adversários. O vice de Getúlio,
João Café Filho, assumiu a Presidência e comprometeu-se a cumprir o calendário
das eleições para Presidente, para a Câmara, o Senado, e os governos estaduais,
conforme estava previsto na Constituição. A candidatura de Juscelino Kubitschek
foi recusada por antigetulistas e pelos militares da Escola Superior de Guerra
que ascendiam também como força política. Não demorou para que o golpe fosse
novamente assunto principal no país, inclusive com o boato de um novo
estratagema, desta vez, um suposto documento de chefes militares que vetaria a
candidatura de Juscelino. A campanha eleitoral também teve, como era habitual,
jogada fraudulenta. Surgiu um texto apócrifo, que ficou conhecido como “Carta
Brandi”, com denúncia de que João Goulart, vice de Juscelino, pretendia, em
articulação com Peron, Presidente da Argentina, instalar uma república
sindicalista no Brasil. A inautenticidade da carta foi revelada, Juscelino
ganhou as eleições, mas havia uma campanha contra a sua posse. Em primeiro
lugar, o Presidente Café Filho, convenientemente, adoece um mês após a vitória
eleitoral de Juscelino e o presidente da Câmara, Carlos Luz, simpático ao golpe
militar para impedir a posse do candidato eleito, assume interinamente a Presidência.
Sucede-se, então, o episódio que ficou conhecido como “Movimento de 11 de
novembro de 1955” ou o golpe preventivo, articulado por militares para garantir
a posse de Juscelino, com mobilização de tropas do Exército pelo general Lott,
as quais ocupam edifícios governamentais, jornais e estações de rádio e,
principalmente, cercam as bases navais e aéreas, uma vez que a Marinha e a
Aeronáutica se colocam contra a mobilização para reprimir o golpe. Mais uma vez
se demonstrava que as Forças armadas, apesar de reunidas numa mesma
denominação, não eram unidas. Café Filho tentou retornar à presidência, mas
tanto ele quanto Carlos Luz, que havia sido deposto pela mobilização, foram
afastados e impedidos pelo Congresso Nacional de ocupar o cargo, tendo o
presidente do senado, Nereu Ramos, o ocupado. Preventivamente, o Congresso
acatou o pedido feito pelos militares de decretar Estado de Sítio até a posse
de Juscelino.
Desde a
Proclamação da República, portanto, os militares rondam o poder, urdindo,
apoiando e implantando governos, participando efetivamente dos eventos
políticos, incluindo os eleitorais. Sua participação na política vem de antes
da transição do regime monárquico para o republicano. O Partido Português que
atuou durante o Período Colonial, e tinha militares em sua composição, queria a
recolonização ao invés da independência. No período republicano, a sua participação
política se acentuou. Os generais Dutra e Eduardo Gomes concorreram à Presidência
em 1945, Vargas concorreu com Eduardo Gomes em 1950, Juscelino com o general
Juarez Távora em 1955 e o general Lott concorreu com Jânio em 1960. Tanto Gomes
quanto Távora haviam participado do Tenentismo, um movimento cuja fundamentação
político-militar era a defesa da ditadura. O governo Juscelino, embora civil,
possibilitou ampla participação de militares. Postos-chave foram ocupados por
militares, a ponto de alguns receberem a classificação de Generais Executivos.
Os militares estavam em todas as comissões executivas, como também nos órgãos
de planejamento regional e demais serviços públicos. Entre eles, Ernesto Geisel,
Golbery do Couto e Silva e o general Henrique Lott, que assumiu o ministério da
guerra. Logo no início do governo Juscelino, ocorrera a Revolta de
Jacareacanga, chefiada por militares da Aeronáutica e com apoio de Eduardo
Gomes. Como Vargas, Juscelino buscava se garantir no poder.
O general Lott
não conseguiu lograr a presidência, foi derrotado assim como Eduardo Gomes o
fora duas vezes, mas teve papel de destaque novamente ao impedir a prisão de
João Goulart, quando este foi forçado a abandonar a Presidência, que assumira
com a renúncia de Jânio. Entre a renúncia de Jânio e a deposição de João
Goulart, pairou mais uma vez o fantasma do golpe, que se confirmaria em 1964, com
a instalação do regime ditatorial implantado no país, permitindo que vários
militares se sucedessem no poder.
Não é
especulação, mas fato, que os militares articulam golpes, estando ou não no
poder, inclusive por via eleitoral direta, democrática. Golpes para se manterem
no poder, golpes para ascenderem ao poder. Existem articulações de bastidores e
as peripécias golpistas são tão comuns no Brasil quanto na maior parte dos
países colonizados. E, principalmente, ainda que não tenhamos tido governos
militares em todo o transcurso de nossa história republicana, as forças
militares brasileiras consideram-se um poder acima dos demais poderes da República,
pretendendo chegar e se manter no governo pela força ou coação. Por isso, o
regime militar golpista de 1964 não deve ser o único foco para se questionar a
democracia no Brasil, uma vez que nossa história é marcada pela instabilidade
política.
QUARTA
PARTE
Nunca fomos
catequizados.
Fizemos foi
carnaval.
(Oswald de Andrade – Manifesto Antropófago)
A relação entre
política e religião estabelece-se com a invasão do território, convertida na
ideologia de contato amistoso e pacífico. Não há evento mais representativo
desse fato do que a primeira missa realizada em terra ainda desconhecida na
chegada das caravelas portuguesas, a partir de 1500. O território foi batizado
de “Terra de Vera Cruz” ou de “Santa Cruz” conforme o escrivão do reino, Mestre
João, e o cronista Pero Vaz de Caminha. A “missa”, como é descrita por Caminha,
tem várias incoerências. Os indígenas desconheciam os realizadores e o ritual,
mas recebem-nos tranquilamente, sem rejeição ou estranhamento. Chegam, segundo
o cronista, a se ajoelharem, fazerem gesto de oração, levantando as mãos para o
céu, e a comungarem. Relacionam, num gesto, o altar armado pelos invasores e o
céu. Nesse ato, indígenas e natureza são pacíficos. Entre invasores e invadidos
há comunhão e congraçamento, daí o ritual da missa. Nas palavras de Lília
Schwarz e Heloisa Starling (2015), a primeira missa foi entendida como “um
nascimento militar e cristão do território”, o que é compreendido pelo gesto do
capitão, ao erguer a bandeira de Cristo. A partir de 1512, quando a madeira
pau brasil é introduzida no mercado internacional,
a então América Portuguesa passa a denominar-se Brasil ou a combinar os nomes
de Terra Sante Crusis de lo Brasil e del Portugal”, fundindo o sentido
mercantil e a tarefa religiosa, segundo as autoras. Desse modo, a denominação
do país conflui para uma ambivalência entre fé e ganância.
Apesar de os
habitantes autóctones aparecerem integrados na cerimônia da primeira missa, a
teoria corrente sobre sua origem recusa-se a considerá-los como descendentes de
Adão, sua descendência é buscada em referenciais míticos exógenos: gigantes,
ninfas, gnomos, pigmeus e até, por uma pincelada de cientificismo, como fruto
de geração espontânea. Estranhamente, na terra batizada com nome santo, em que
os indígenas aprendem de imediato a rezar, não há uma língua com os fonemas F,
L ou R, segundo Pero de Magalhães Gândavo, outro cronista do reino, que
justificou a falta dos fonemas como a própria falta de fé (religião), lei
(ordem) e rei (comando). A recepção que teriam tidos os índios ao ritual foi
descrita de forma igualmente idealizada na pintura de Victor Meireles em 1860,
trezentos e sessenta anos mais tarde, na vaga da pintura romântica do Segundo
Império e até hoje compõe a iconografia oficial do país, difundindo uma
distorção histórica. A pintura ufanista sobre a história brasileira é mais um
exemplo do transplante que constitui nossa formação, representando
características exógenas e não locais. O famoso quadro do pintor Pedro Américo,
de 1888, retratando o Grito da Independência, falta tanto à verdade quanto o da
primeira missa.
Contra a versão
oficial, é preciso enfatizar que os indígenas sabiam que aquela era uma gente
estranha e que seu espaço estava sendo invadido. O empreendimento colonial de
catequisar e evangelizar os indígenas era, portanto, fundamental para reprimir
a resistência. Tanto indígenas quanto, posteriormente, africanos cônscios e
senhores de seus referenciais míticos e culturais são mais difíceis de serem
dominados. Lília Schwarcz e Heloísa
Starling informam que a palavra “candomblé” é usada pela primeira vez num
contexto de rebelião. Essa foi a denominação dada ao refúgio dos escravizados
rebelados na periferia de Salvador em 1896. Os quilombos uniam politicamente
grupos com afinidade cultural e religiosa. Houve levante de grupos de
escravizados que pretenderam formar reinos muçulmanos. Essas revoltas marcam um
precedente para revoltas populares religiosas posteriores, como as de Canudos
na Bahia e a do Contestado, na região fronteiriça entre os Estados do Paraná e
Santa Catarina.
As revoltas de
Canudos, de 1896 a 1897; do Contestado, de 1912 a 1916, e a Sedição de
Juazeiro, de 1916, são apontadas como Movimentos messiânicos brasileiros porque
seus líderes arregimentaram pela fé religiosa um grande contingente de
população pobre, despossuída e excluída. As lideranças de Antônio Conselheiro
no povoado de Canudos, na Bahia, de José Maria em Santa Catarina distinguem-se
da liderança de padre Cícero em Juazeiro, no Ceará. Os dois primeiros, apesar
de terem atraído seguidores pela fé, não possuíam vínculos com instituição
religiosa, eram considerados pelo governo como fanáticos.
A massa de
revoltosos do Contestado compunha-se de desempregados da Companhia Brasil
Railway, camponeses na miséria, expulsos de suas terras, confiscadas pelo
governo, para a construção da estrada de ferro ligando São Paulo ao Rio Grande
do Sul. Agregaram-se primeiramente em torno das promessas de cura do “monge”
José Maria, cujo nome verdadeiro era Miguel Lucena de Boaventura, militar
desertor do 14° Regimento de Cavalaria de Curitiba. Assumindo o nome José Maria
de outro líder messiânico da época da Revolução federalista, ele consegue congregar
seguidores fieis pela promessa de uma “monarquia celeste”, que fundia seitas
hereges do tempo da Reforma protestante com messianismo sebastianista de
Portugal. Apesar dessa miscelânea de doutrinas, o líder e seus seguidores conseguiram
construir uma resistência unida e enfrentaram surpreendentemente as tropas
estaduais em combates, só sendo vencidos após bombardeio pelas tropas federais.
Os mesmos
enfrentamentos e resistências ocorreram sob a liderança de Antônio Conselheiro,
que agregou camponeses fugidos da situação de miséria e exclusão social pela
injusta distribuição de terras e de recursos no sertão baiano. Ironicamente,
quem fazia a segurança da comunidade que almejava extinguir diferenças sociais,
criando rebanhos e mantendo lavouras comunitárias eram ex-jagunços ou
ex-cangaceiros de fazendeiros oligarcas.
Tanto os
movimentos de Conselheiro quanto o de José Maria se confrontavam com a
república recém-implantada, sendo considerados movimentos pró-monarquia. Na
verdade, eram movimentos de explorados contra exploradores e representavam a
tentativa de implantar uma reforma agrária num país dominado por oligarquias.
Padre Cícero, apesar de também comandar levantes armados com um contingente de
camponeses pobres, era representante dos Accioli no Ceará, cujo objetivo era o
confronto com as tropas federais para manter seu domínio, além disso, Padre
Cícero também era proprietário de terras e tinha ambições políticas. Estava
comprometido com um “pacto de coronéis”, não com mudanças substanciais da situação
dos pobres e despossuídos, que o seguiam pela fé, permanecendo contemplados
apenas por pequenos favores que mitigavam sua condição de miséria.
Nos levantes dos
escravizados e nas rebeliões do Contestado e de Canudos, a religião fez papel
contrário ao doutrinamento catequético de dominação, levou massas oprimidas a
se organizarem e a se rebelarem contra o poder oligárquico e o poder do Estado,
instituindo não somente a resistência como também o próprio lugar de
resistência, representado pelos quilombos e pelos arraiais fundados por Antônio
Conselheiro e José Maria.
A Igreja
Católica Romana no Brasil sempre esteve envolvida em política. Padre Cícero e
sua ligação com a oligarquia não é uma exceção. A igreja católica esteve de
mãos dadas com os coronéis da velha república e permanece até hoje protegida e
amparada pelo Estado. Tem ingerência na vida das pessoas, licença para
batizá-las, crismá-las, casá-las. Na Constituição de 1824, havia abertura para
culto religioso, não eram proibidos cultos de outras denominações, nem a
existência de seus templos. A partir da Constituição de 1891, deixou de existir
uma religião oficial no Brasil, Estado e Igreja passaram a ser instituições
separadas, o que significou a laicização do Estado. Todavia, sem postular uma religião
específica, o Estado brasileiro continuou a promover a Igreja Católica Romana
como instituição de Estado.
Em 1930, Nossa
Senhora da Conceição Aparecida foi proclamada Rainha do Brasil e sua padroeira oficial por decreto do Papa Pio
XI. Em 1946, iniciou-se a construção do
Santuário de Nossa Senhora Aparecida, na cidade paulista do mesmo nome. O
santuário foi considerado o maior dedicado à Virgem Maria em todo o mundo. Em
1980, o dia 12 de outubro foi decretado dia de Nossa Senhora Aparecida e feriado
nacional.
A igreja
católica deu um apoio importante ao governo Getúlio Vargas desde 1930. Em
retribuição, Vargas, decretou uma série de ações governamentais favoráveis à
instituição. A inauguração da estátua do Cristo Redentor, em 1931, foi programada
para o dia 12 de outubro, coincidindo com a data do descobrimento da América.
Na inauguração, a nação foi consagrada pelo cardeal Lemos ao “Coração Santíssimo
de Jesus”, além de ter reconhecido o ícone cristão como rei e senhor da nação
para sempre. Vargas também instituiu, por decreto, o ensino religioso nas
escolas públicas. Além disso, conjugou militarismo e religião nas comemorações
cívicas e nos desfiles estudantis.
A CNBB, criada
em 1952, instituição católica que organiza e administra uma série de eventos
religiosos, inclusive a Campanha Nacional de Fraternidade, tem em sua sigla a
chancela nacional.
Mesmo não tendo
uma religião oficial, o Brasil tem uma padroeira cristã e cada Estado tem sua
padroeira ou padroeiro cristão com instituição de feriados estaduais. O estado
decreta também o feriado de Corpus Cristi
a cada ano. Tudo se explica, não oficialmente, pelo Brasil ser considerado
“tradicionalmente” um país católico.
Ainda na
Constituição de 1891, passou a ser livre nos cemitérios, transferidos à
administração municipal, o culto de todas as crenças religiosas. Boris Fausto
(2002) comenta que, além de apaziguar os ânimos entre Estado e Igreja, essa
medida visou facilitar a integração de imigrantes alemães que eram em maioria
luteranos. Existe uma série de outros aspectos em que o Estado brasileiro
respeitou, considerou e favoreceu a expressão de outras religiões que não a
católica. As manifestações culturais estrangeiras, excetuando-se as africanas,
sempre foram bem recebidas e consideradas dignas de respeito. As manifestações
indígenas e africanas, por outro lado, sempre foram vistas como primitivas e
demoníacas. Obrigados a adotar a religião católica desde a chegada dos
portugueses, os indígenas não tiveram liberdade nem acolhimento para manifestar
seus próprios rituais e ícones espirituais. Em nenhum cemitério público se vê
imagens que se associem a ritos africanos ou qualquer estátua de divindade por
seus povos cultuada. O comércio de artefatos desses ritos e divindades nas
casas chamadas de umbanda é quase clandestino, como se aquele que ali quisesse
entrar estivesse cometendo um ato reprovável.
As sinagogas,
templos, lojas de maçonaria, mesquitas são prédios integrados no espaço urbano,
enquanto os locais de ritos autóctones e dos povos escravizados são
considerados marginais e se situam como periféricos, como os terreiros até hoje
discriminados. As igrejas, catedrais, basílicas fazem parte do patrimônio do
país, têm tombamento e financiamento público para reforma. O Estado trata com
certo privilégio e distinção também as vertentes religiosas do protestantismo e
a miríade de congregações que dele se originam ou se afastam. No Estado laico,
emissoras de tv aberta, concessões do Estado, podem professar e impor denominação
religiosa em seus programas, exaltando-a, e demonizar os cultos afros,
exorcizar os indígenas.
O sincretismo
religioso é tratado como uma característica positiva na cultura brasileira,
embora não represente só a harmonia entre diferentes referenciais religiosos ou
espirituais, pelo contrário, representa também o conflito e o amálgama de
crenças e ritos envolvidos no processo colonial, a ponto de haver tanto repúdio
quanto incorporação. Isso é exposto na peça O
pagador de promessas, de Dias Gomes, encenada pela primeira vez em 1960.
Resumidamente, o enredo retrata a história de Zé do burro e sua tentativa de
cumprir uma promessa feita num terreiro de Candomblé: carregar uma cruz de
madeira até a igreja de Santa Bárbara, em Salvador, oferecê-la ao padre para
que seu burro doente se recupere. Quando tem ciência de que Zé fizera a
promessa a uma sacerdote pagã, a mãe de santo, o padre se recusa a receber a
oferenda. Logo se revela uma cadeia de interesses imediatos e oportunos, dos
praticantes do candomblé, que veem no pagador de promessa um líder símbolo
contra a discriminação, de jornais ávidos por transformá-lo num defensor da
reforma agrária, além do interesse e determinação do protagonista em cumprir a
promessa. Cria-se, principalmente, um antagonismo entre populares a favor do
cumprimento da promessa e o padre intolerante. É nesse momento que o poder de
força do Estado entra em cena para garantir, contra o interesse público, a
igreja como propriedade privada. Há inevitavelmente um confronto, tendo como
vítima o pagador de promessas que, enfim, entra na igreja, morto, sobre a cruz,
carregado pelos fieis rebelados.
O sincretismo
religioso, a democracia racial, a colonização pacífica são justificativas
ideológicas para a negação e o esmagamento do outro.
No Brasil,
portanto, ontem como hoje, política e religião sempre se misturaram. Se não
pela participação direta em cargos políticos, como Padre Cícero que foi
Prefeito de Juazeiro do Norte e Deputado Federal, pelo apoio e pela
cumplicidade com líderes políticos. Com a ampliação das congregações
protestantes pentecostais, e mais ainda com as neopentecostais, o elo se
robusteceu. O espaço de atuação e conversão exercido por essas congregações
sofreu um alargamento sem precedentes com o acesso às redes sociais e aos
aplicativos de mensagens individualizadas. Enquanto a presença da Igreja
Católica Romana no ciberespaço tem, em sua maioria, sido litúrgica (missa,
divulgação de eventos religiosos), as participações das igrejas não católicas,
especialmente as neopentecostais, são individualizadas, num processo de
catequização corpo a corpo, sem formalidades e com ingredientes de espetáculo.
Ao mesmo tempo,
o espaço para participação parlamentar de representações religiosas,
denominadas evangélicas, também se ampliou, chegando a duplicar entre a
primeira e a segunda décadas do século XXI, o que significa que a atuação
política de pessoas ligadas a alguma religião ou congregação religiosa não se
limita mais apenas ao próprio espaço dos templos (com datas e horários
marcados) ou à influência de bastidores, passando a ser uma participação
parlamentar efetiva, com influência na votação de projetos. Outro fato é que se
a resposta das autoridades católicas apostólicas romanas, através de seu Código
de Direito Canônico, é ainda de que seus sacerdotes não devem se envolver em
cargos políticos, as congregações neopentecostais, por outro lado, não se
defrontam com restrições para assenhorear-se da função político-parlamentar.
QUINTA
PARTE
Coronéis e
jagunços, em arma se matavam na disputa da terra, a melhor do mundo para a
agricultura do cacau.
(Jorge Amado – A
descoberta da América pelos turcos)
A mudança de
regime político no Brasil, da monarquia para a república, não mudou
significativamente a economia do país. O latifúndio continuou a dominar,
social, econômica e politicamente. A república brasileira caracterizou-se como
um conceito formal de transição de poder, assim como não houve conflito de
classes na independência, os latifundiários continuaram sendo latifundiários,
não houve também mudança de poder na República. Boris Fausto observa que “Como
episódio, a passagem do Império para a República foi quase um passeio” (2002,
p. 139), o que indica que não houve enfrentamento, não houve, absolutamente,
revolução.
A palavra oligarquia é de origem grega e significa
governo de poucos, logo, opõe-se a República. A denominada “República
oligárquica brasileira” constitui-se também em mais uma carnavalização
conceitual. “Deus, família e propriedade” é um lema de mais de quinhentos anos
no Brasil. Já abordamos como se apresenta a religião; a família e a propriedade
são temas correlatos. A caracterização do latifúndio e do poder oligárquico no
Brasil começa com a decisão da Coroa portuguesa de criar as chamadas “Capitanias
hereditárias”, ou seja, delegar a administração da área invadida pelo reino
português (considera-se a invasão de holandeses e franceses em relação à posse
estabelecida pelos portugueses e não a própria ação invasora portuguesa) a
particulares, os donatários. A divisão constituiu-se em quinze lotes, pelos
quais seriam responsáveis doze donatários. Desse modo, as terras ditas
“achadas”, no relato da carta de Pero Vaz de Caminha, foram doadas a uma
minoria (funcionários do reino, burocratas, comerciantes e militares),
expropriando populações nativas que habitavam essas terras, estimadas em oito
milhões de habitantes, número em muito superior aos habitantes de Portugal em
1500, cerca de um milhão de pessoas. Os militares, portanto, fizeram parte da
partilha espúria e desigual do território, assim como também participaram da
primeira Assembleia Constituinte, em 1823 da qual o povo foi excluído. Por
óbvias evidências, a “classe” militar é uma das oligarquias brasileiras. Tem
aposentadoria especial, plano de habitação com direito a vilas próprias, plano
exclusivo de saúde, com hospitais próprios, poupança exclusiva, pensão
vitalícia para os descendestes, direito a julgamento por tribunal próprio.
No período
colonial, apesar de os donatários não poderem vender ou dividir as capitanias
porque eram propriedades do rei, tinham liberdade para explorá-las, pagando os
impostos devidos à Coroa, e para fundar vilas, doar sesmarias, alistar colonos
e formar milícias. Posteriormente, a Coroa comprou as capitanias, mas sua
passagem ao poder público não extinguiu os privilégios que já tinham se
estabelecido.
A classe
industrial brasileira tem origem oligárquica, pois se constituiu a partir da
acumulação de capitais possibilitada pela exploração das monoculturas. Desde o
final do século XIX, grandes fazendeiros investiram na atividade fabril através
do capital excedente gerado em seus latifúndios. Durante a velha república, as
oligarquias estaduais constituíram-se em poder paralelo, enfrentando o governo
central com seu exército de jagunços, arrebanhado entre a população miserável e
desempregada. Consideravam apenas o poder das armas e da influência econômica.
Os governantes estaduais e o próprio poder central instauraram formalmente um
combate às oligarquias dos estados, mas, ao mesmo tempo, também estabeleceram
relações nada republicanas com os oligarcas, numa cumplicidade eleitoral e de
troca de favores. Em troca de verbas e privilégios, os patriarcas de cada estado
elegiam governadores e presidentes, obtendo votos da população pobre e desassistida
em troca de mínimos favores, exercendo coação ou mesmo praticando fraudes.
A “Política dos
governadores” instituída pelo presidente Campos Sales em 1900, feita em nível
federal e estadual, consistindo tanto no apoio do presidente em fim de mandato
aos governadores dos estados, quanto no apoio desses governadores ao candidato
à presidente perdura no Brasil até hoje. A “Política dos coronéis” igualmente
perdura, pois, na maioria dos Estados, os administradores municipais permanecem
submetidos aos interesses e aos comandos dos governos estaduais que, por sua
vez, estão ligados a grupos oligárquicos. A fisiologia política não mudou
substancialmente das primeiras décadas do século XX para as primeiras décadas
do século XXI. Ainda são os clãs familiares que dominam a política dos estados
e municípios brasileiros, apesar da alternância eleitoral de partidos, a
maioria comprometida com essa fisiologia. É assim no Amazonas, em Rondônia, no
Acre, no Pará, no Maranhão, na Bahia, em Alagoas, no Piauí, no Ceará, no Mato
Grosso, membros familiares se alternam no poder. A observação do deputado
Pontes de Miranda, em 1924, ainda é atual: “O Brasil [é] o único país do mundo
sem partidos políticos... o que há são agrupamentos em torno de um homem ou
alguns homens”. A delegação do cargo político continua a ser patriarcal, apesar
de ser proibido o nepotismo. Parlamentares decidem que seus cônjuges, seus
familiares podem ser seus suplentes.
Atribuir
corrupção apenas aos representantes do Parlamento é como apontar para o topo de
uma montanha, desconsiderando-se sua estrutura. As instituições do Estado
brasileiro são marcadas pela presença de oligarquias beneficiadas através de
uma rede de clientelismo e apadrinhamento. Do mesmo modo, é beneficiada a
iniciativa privada quando as instituições de Estado favorecem-na em detrimento
da maioria da população brasileira.
SEXTA
PARTE
Que
há de pregar o cachorro,
sendo
uma vil criatura,
se
não sabe de escritura
mais que aquela
que o pôs forro?
Quem
lhe dá ajuda e socorro
são
quatro sermões antigos
que
lhe vão dando os amigos;
e
se amigos tem um cão,
milagres
do Brasil são
(Gregório
de Matos – sátira)
A herança
oligárquica dos latifundiários das capitanias hereditárias, da república dos
governadores, dos clãs dos coronéis se apresenta no século XXI com premissas semelhantes;
apoiada por poderes paralelos como a banda podre das polícias civis e
militares, do poder judiciário e do poder legislativo, pelas milícias
vendedoras de segurança privada, envolvidas em negócios ilícitos, extermínios,
geradas pela ausência e omissão do Estado; pelos segmentos criminosos do
tráfico de entorpecentes, biopirataria, exploração ilegal de recursos naturais,
muitas vezes em amálgama tentacular e capilar.
O governo Bolsonaro
levou à exacerbação a falida estrutura republicana. Desassistiu educação, saúde
e segurança públicas. Cortou ou reduziu verbas públicas em todas as áreas
essenciais. Com tal perspectiva, estranhamente, um percentual expressivo da
população se manifestou “bolsonarista”. O adjetivo não significa
necessariamente uma corrente ou ideário, apenas seguidores. Não se questiona se
os seguidores o são por interesses ou por convicções, pois interesses sempre os
há. O fato é que seguidores são reprodutores discursivos dos seguidos (na
linguagem e nas ações). Se os seguidos são mentecaptos, os seguidores também o
serão.
Um governo
constituído por falsos argumentos, dispersos, colhidos aqui e ali, sem
organicidade, caracterizando um pastiche. Ideias incongruentes entre si,
descontextualizadas, como as que remetem ao Integralismo, movimento político de
1932, do qual foi tomado o lema “Deus, pátria e família”. O Integralismo foi um
movimento de extrema direita, católico, combatia o capitalismo financeiro,
pretendendo estabelecer o controle do Estado sobre a economia, nada mais
destoante do quadro atual. O governo que se intitula liberal, como ressaltou o
vice-presidente no pronunciamento do último dia de mandato, demonstra
ignorância conceitual. O slogan do
programa oficial do governo Bolsonaro, “Pátria acima de tudo, deus acima de
todos” impõe uma concepção de religião, mais especificamente de grupos
religiosos, sendo que a doutrina liberal se expressa justamente em meio às
lutas pela tolerância religiosa. No ideário liberal, o Estado tem poderes
limitados, enquanto o governo Bolsonaro tenta sobrepor o poder executivo sobre
os outros poderes, a fim de controlá-los segundo seus interesses.
Nem mesmo a
ideologia partidária deste governo é autêntica, pois se intitula de direita e
apropria-se de discursos da esquerda, como a crítica à repressão e à censura. O
conservadorismo propalado por esse governo também é um simulacro de ideologias
difundidas por segmentos de extrema direita, onde quer que eles se encontrem no
mundo atual. A falta de lucidez e de coerência do Governo Bolsonaro é uma
fantasia carnavalesca que disfarça os reais interesses que estão em jogo.
O que parece
ousado, surpreendente ou “radical” agora são as mesmas palavras de ordem, a eleição
do mesmo inimigo de outrora. Revendo os acontecimentos de março de 1964, no Rio
de Janeiro, ali se encontram essas evidências do reacionarismo das classes
economicamente dominantes e dirigentes brasileiras. Quando João Goulart tenta
uma mobilização popular em prol de reformas sociais progressistas, segmentos
reacionários se insurgem contra sua ascensão ao poder. Na “Marcha da Família
com Deus pela liberdade”, revela-se a insatisfação de empresários, de parte da
Igreja Católica, das Forças Armadas e de setores da classe média com o “governo
comunista”. Esses precedentes históricos dispensam relações complexas e menos
precisas que hoje se fazem do governo Bolsonaro e seus apoiadores com o
Fascismo e o Nazismo. Quando apoiadores de seu governo evocam o AI-5, querem
fazer tremular as mesmas bandeiras, sem disfarçar nem as palavras de ordem. Nem
o pretexto de combater a corrupção é novo, uma vez que também era evocado
naquele contexto e em anteriores.
Não importa se a
família já não é a mesma, nem o contexto econômico mundial, nem o militarismo,
nem a geopolítica mundial. Para as oligarquias seculares no Brasil, sejam
agrárias ou financeiras, pouco importa o fosso entre um contexto e outro,
importa quem será o beneficiário. Tornou-se claro que a crítica na eleição à
mamata do grupo adversário era um argumento fabular do tipo “Quem, desdenha,
quer comprar”. Só uma coisa se renova, se considerarmos a observação de Boris
Fausto de que o regime de 1964 nunca assumiu expressamente sua feição
autoritária. Agora o autoritarismo é claramente assumido, até mesmo
teatralizado com pinceladas de pseudo-patriotismo.
O governo
Bolsonaro pôs em prática medidas arbitrarias, como o governo ditatorial de
1964. Passou para a competência do Presidente da República a iniciativa dos
projetos de lei que criaram ou aumentaram a despesa pública, mais
especificamente “furou” o teto de gastos. Aqueles que se escondem através da
imunidade parlamentar e que dizem não poder ter seus direitos suspensos talvez
não saibam ou finjam não saber que no regime de 1964 as imunidades
parlamentares foram suspensas, tendo o “Comando Supremo da Revolução” sido
autorizado a cassar mandatos e a suspender direitos políticos pelo prazo de dez
anos. A suspensão da imunidade fazia com que não se pudesse discordar do poder instituído.
Houve perseguição a sindicatos e a entidades estudantis. Universidades foram
fechadas. Comparando-se essas práticas institucionais com as manifestações dos
grupos pró-golpe, em 1964, é possível identificar uma afinação de propósitos. De
forma semelhante, há uma afinação entre as práticas do governo Bolsonaro e as
bandeiras de seus seguidores. As Ligas camponesas foram perseguidas naquele
período, especialmente as do Nordeste. O ódio aos nordestinos propagado agora,
a divisão entre Sul rico, desenvolvido, trabalhador e Nordeste miserável e
preguiçoso tem precedentes não só no discurso reacionário do golpe de 1964,
como também na opção do Estado brasileiro pela mão de obra imigrante europeia. Uma
antiga canção de imigrantes italianos expressa como eles constroem uma
autoimagem positiva de seu trabalho e seu esforço, oposta, portanto, à imagem
que se construiu do autóctone: “Na América onde chegamos/Não encontramos nem
palha nem feno/Dormíamos no chão, ao sereno, /Como animais/ e com o engenho de
nossos italianos/ E com o esforço de nossos patrícios/ Em poucos anos
construímos países e cidades”. A visão local, na Revista Renascença, de 1907, é
ainda mais esclarecedora, em termos coloniais, de como o espaço é percebido e a
que ele se destina: O Brasil é vasta e extraordinariamente rico, oculta no seu
solo minas de incalculável valor, tem um tesouro inexplorado nas madeiras de
suas florestas, possui terras fertilíssimas (...) mas falta o homem para
explorar todas essas riquezas” Era uma época de efervescência da imigração
europeia e o periódico fazia, na verdade, um chamamento, uma convocação. Desde
o princípio, o europeu foi considerado como mais apto e capacitado para
explorar o território, daí que a industrialização se deu, principalmente, por
mão estrangeira.
No governo
Bolsonaro tudo foi invertido. Intolerância tornou-se liberdade; mentira,
verdade; democracia, plutocracia; nacionalismo, adoração ao estrangeiro;
Estado, interesse particular e escuso.
Apesar do nome
Messias, Jair Bolsonaro nada tem a ver com os líderes que se insubordinaram no
Brasil durante a Velha República. Embora não seja um governante satírico, como o
é o personagem Galvez, da obra Galvez,
imperador do Acre, de Márcio Souza, muitas características e ações suas
coincidem com as desse personagem. O narrador diz, sobre os súditos de Galvez,
que se submetiam aos fatos e aos acontecimentos sem conseguir abarcá-los,
murmurando boatos. O grito de vitória de Galvez, ao tomar Puerto Alonso, é
“Pátria e liberdade”. Como imperador, cria orçamento nacional e um Comitê de
Salvação Nacional composto pelos militares que o apoiaram na tomada do poder.
Governa abolindo impostos para os ricos proprietários, recebendo favores em
troca. Os desertores de seu exército de salvação abandonam a farda, atraídos
pelas facilidades do regime de Galvez. Esses desertores são péssimos cristãos.
Galvez nomeia os bajuladores que o rodeiam ministros; é um governante que tenta
instituir uma república sem se preocupar muito com o que isso quer dizer. O seu
regime de governo pouco promete mudar a situação dos desfavorecidos, exceto
para pior. Mesmo assim, tem miseráveis e famintos na base de apoio ao seu
governo. Em seus expedientes como imperador é um mandrião, só dá o ar de sua
augusta presença antes do almoço. As desordens que acontecem na capital do
império de Galvez são semelhantes às fanfarronices dos apoiadores de Bolsonaro.
As personalidades de seus apoiadores também são similares – uma guerrilheira
que quer se dar bem e arranjar marido norte-americano, uma pistoleira de
cabaré, uma devassa disfarçada de beata, um valentão covarde. Seu império não é
reconhecido por nenhum país. Além de tudo isso, a completa carnavalização do
governo Bolsonaro (protestos espetacularizados, destoando com disciplina
militar, conservadorismo, moralismo) em sintonia com o império bufo de Galvez.
Enfim, ambos, folhetins à brasileira em que as coincidências entre ficção e
realidade podem ser atribuídas ao fato de que todos os governantes fantoches se
parecem.
O governo Bolsonaro
foi caótico, mas seus interesses e os interesses dos apaniguados militares, de
artistas, esportistas, de setores reacionários, de grupos econômicos favorecidos
com seu desgoverno estavam bem orquestrados. Tudo teve o lugar ideal para se
ampliar e difundir: o ciberespaço. O governo e a própria pessoa do político são
o exemplo da empresa colonial brasileira, semelhante a muitas outras sul-americanas,
africanas e asiáticas: corrupto, contraventor, inescrupuloso,
extrativista-predatório.