Isaac Warden Lewis
Adriana Silva e
José Santos conheceram-se numa escola secundária. Tornaram-se colegas, amigos,
namorados, noivos, cônjuges, nessa sequência. Depois do ensino secundário,
Adriana e José decidiram cursar o magistério. Pretendiam ser professores
primários. Adriana levou a sério o ato de estudar, José, nem tanto. No primeiro
ano, ele resolveu abandonar o curso de magistério para fazer exames para a
polícia. Queria ser policial. Adriana continuou seus estudos. Formou-se
professora. Fez concurso para professora primária do estado. Passou e foi
designada para lecionar numa escola de um bairro da periferia. Era o que ela
queria. José passou nos exames para polícia. Tornou-se soldado, fez outros
exames e tornou-se cabo. Cabo Santos. Ele estava feliz. Dizia que era uma
autoridade. Propôs casamento à Adriana. Os dois pareciam felizes. Nem tanto.
Três anos de casados, a professora Adriana Silva e o cabo José Santos tinham
duas crianças, um menino – Josué, e uma menina – Josefina. Adriana cuidava da
casa, dos filhos e de seus alunos prazerosamente, mas, há algum tempo, ela
vivia intrigada e inquieta. Não entendia como o seu marido conseguia acumular
bens e dinheiro com o seu salário de policial. Ele lhe dizia que o coronel
Meira era seu amigo de longa data, pois sua mãe trabalhava para a mãe do
coronel Meira e, por isso, este sempre o ajudava. Adriana achou tudo isso
estranho e tentou compreender a relação de seu marido com o coronel Meira.
Adriana Silva
nasceu na Paraíba. Ela tinha dois irmãos e duas irmãs. A família – pai, mãe,
irmãos e irmãs – migraram para o Rio de Janeiro quando Adriana tinha sete anos.
Ela era a caçula. Ela e seus irmãos eram mulatos claros e mulatos escuros,
fortes e determinados. Tinham sentido de justiça e orgulhavam-se de sua afro-descendência.
Esforçavam-se para conseguir suas coisas e amavam as coisas simples da vida.
Ambicionavam somente o que era necessário para viver bem, sem sobressaltos ou
vaidosas preocupações. José Santos nasceu no Rio de Janeiro. Considerava essa a
melhor cidade do mundo, embora não a conhecesse minimamente. Ignorava os
problemas e as condições que a tornavam uma cidade corrupta e inviável para a
maioria de seus habitantes. Tinha um irmão – Paulo Santos, que detestava não só
o Rio de Janeiro como os cariocas que gostavam de se exibir nas praias e nas
festas. Vivia para ler e pensar, não necessariamente nessa ordem. Sua mãe,
Marlene Santos, era empregada doméstica. Ela trabalhava para a dona Glória
Meira, esposa do doutor Lúcio Meira, despachante remediado. Dona Glória era baixa,
gorda, tinha cabelos longos, esticados e alourados artificialmente. Ela dizia
ser morena clara. Parecia se orgulhar de sua imagem. Também nasceu no Rio de
Janeiro. Marlene Santos considerava dona Glória uma pessoa muito inteligente.
Para ela, toda pessoa rica ou remediada era boa e inteligente. Ela dizia que o
marido da dona Glória, Lúcio Meira, e seu filho, Luiz Meira, eram inteligentes.
Ela sempre apregoava que a família Meira era maravilhosa.
Adriana Silva
ficou muito decepcionada quando conheceu a mãe de José. Ela considerava Marlene
Santos mais uma lacaia dos Meiras do que uma empregada doméstica. Ela não podia
entender como, em pleno século XX, depois da revolução francesa e da abolição
da escravidão e da servidão em todo mundo, ainda existiam pessoas como a
Marlene Santos. O cabo Santos também não vivia muito feliz. Ele pressentia que
sua esposa não apreciava o seu sucesso como policial. Ele relatou a ela que ia
estudar para se tornar sargento e que o coronel Meira o incentivava. Adriana
sabia que ele decidiu ser policial por sugestão da mãe do coronel Meira. Esta
sugeriu à mãe do José que este abandonasse o curso de magistério e seguisse uma
carreira mais profícua, mais lucrativa, como a da polícia. Adriana lembrou-se
de seus professores do ensino secundário. Eles eram pobres, porém sábios. Ela e
seus colegas aprenderam muito sobre honradez, dignidade com seus professores.
Um velho professor de latim ensinou, com simplicidade, a turma a traduzir
textos latinos, a ler e gostar de autores latinos e gregos. O professor de
História, sempre com a mesma roupa surrada, retirava fatos escondidos nos
escaninhos e ensinava quem foi o papa
Alexandre Borgia que dividiu as terras a serem descobertas entre os espanhóis e
portugueses, terras ocupadas pelos índios. Um papa corrupto que seria capaz de
pregar novamente Jesus Cristo na cruz e vender o próprio deus para o diabo.
Além de ensinar fatos históricos exigidos em concursos e exames, esclareceu
sobre a verdadeira personalidade de Cristóvão Colombo, dos colonizadores
portugueses que se diziam “descobridores do Brasil”. Lembou-se do professor de
literatura que sempre se referia à América Latina como América Latrina. A maioria dos estudantes aprendeu muito com esses
professores. Até os professores de matemática ensinavam conteúdos de história,
filosofia ou de linguagem. Para esses professores, a reflexão sobre as
condições de vida na sociedade humana era mais importante do que as
preocupações com os jogos do campeonato de futebol ou as viagens
interplanetárias. Parece que o José nada aprendeu. Ele não percebeu que as
aulas desses professores ensinavam sobre as desigualdades, as injustiças e as
misérias no Brasil. Ele insiste em ignorar que a polícia, a justiça, o governo
e os políticos vivem e sobrevivem de corrupção desde que os colonizadores
portugueses chegaram a essa cidade, trazendo a religião do amor de Cristo e
armas para atirarem em quem não aceitasse incondicionalmente tal amor. Ela
concluiu que tudo continua do mesmo jeito no Brasil de hoje.
Adriana soube,
pelo noticiário, que o batalhão de polícia invadiu a comunidade da periferia,
cometeu arbitrariedades contra a população pobre, trabalhadores, trabalhadoras,
jovens, crianças, atirou indiscriminadamente , matando pessoas desarmadas.
Tanto o coronel Meira quanto o cabo Santos foram detidos, acusados de atirarem
com suas armas. Adriana imaginou que seu
marido cometia crimes graves, pois ele tinha duas armas. Uma era da corporação,
a outra tinha numeração raspada. Há muito, ela estranhava o comportamento de
seu marido. Toda a vez que ele discutia com ela parecia estar bêbado ou
drogado. Ela decidiu abandonar o marido. Foi morar com os seus familiares, os
quais, para ela, eram pessoas simples e normais.
O cabo José
Santos era suspeito de assassinar um colega policial que não concordava com as
suas abordagens discriminatórias contra pessoas pobres da periferia. Era
acusado de atirar contra moradores de rua, camponeses sem terra e de surrar uma
prostituta. Apesar disso, continuou atuando como policial, pois todos os
inquéritos policiais ou administrativos foram estranhamente arquivados. Depois
de seis dias de detenção, o cabo José Santos foi libertado mais uma vez. Foi
para casa. Não encontrou Adriana e nem as crianças. Sua esposa deixara-lhe um bilhete,
comunicando-lhe que queria separar-se dele e que iria viver com sua família,
com o Josué e a Josefina, desejava-lhe muitas felicidades como sargento da
polícia. José Santos pensou em reagir, em ameaçar sua mulher, forçá-la a voltar
para casa. Depois, imaginou que a esposa já tinha conseguido uma medida
protetiva. Depois de muito refletir, percebeu que Adriana não precisava de
medida protetiva. O pai, os irmãos e as irmãs de Adriana eram sua medida
protetiva.
Manaus, fevereiro, 2021.