segunda-feira, 1 de março de 2021

ENCONTRO E DESENCONTRO

                                                                                    Isaac Warden Lewis

Adriana Silva e José Santos conheceram-se numa escola secundária. Tornaram-se colegas, amigos, namorados, noivos, cônjuges, nessa sequência. Depois do ensino secundário, Adriana e José decidiram cursar o magistério. Pretendiam ser professores primários. Adriana levou a sério o ato de estudar, José, nem tanto. No primeiro ano, ele resolveu abandonar o curso de magistério para fazer exames para a polícia. Queria ser policial. Adriana continuou seus estudos. Formou-se professora. Fez concurso para professora primária do estado. Passou e foi designada para lecionar numa escola de um bairro da periferia. Era o que ela queria. José passou nos exames para polícia. Tornou-se soldado, fez outros exames e tornou-se cabo. Cabo Santos. Ele estava feliz. Dizia que era uma autoridade. Propôs casamento à Adriana. Os dois pareciam felizes. Nem tanto. Três anos de casados, a professora Adriana Silva e o cabo José Santos tinham duas crianças, um menino – Josué, e uma menina – Josefina. Adriana cuidava da casa, dos filhos e de seus alunos prazerosamente, mas, há algum tempo, ela vivia intrigada e inquieta. Não entendia como o seu marido conseguia acumular bens e dinheiro com o seu salário de policial. Ele lhe dizia que o coronel Meira era seu amigo de longa data, pois sua mãe trabalhava para a mãe do coronel Meira e, por isso, este sempre o ajudava. Adriana achou tudo isso estranho e tentou compreender a relação de seu marido com o coronel Meira.

Adriana Silva nasceu na Paraíba. Ela tinha dois irmãos e duas irmãs. A família – pai, mãe, irmãos e irmãs – migraram para o Rio de Janeiro quando Adriana tinha sete anos. Ela era a caçula. Ela e seus irmãos eram mulatos claros e mulatos escuros, fortes e determinados. Tinham sentido de justiça e orgulhavam-se de sua afro-descendência. Esforçavam-se para conseguir suas coisas e amavam as coisas simples da vida. Ambicionavam somente o que era necessário para viver bem, sem sobressaltos ou vaidosas preocupações. José Santos nasceu no Rio de Janeiro. Considerava essa a melhor cidade do mundo, embora não a conhecesse minimamente. Ignorava os problemas e as condições que a tornavam uma cidade corrupta e inviável para a maioria de seus habitantes. Tinha um irmão – Paulo Santos, que detestava não só o Rio de Janeiro como os cariocas que gostavam de se exibir nas praias e nas festas. Vivia para ler e pensar, não necessariamente nessa ordem. Sua mãe, Marlene Santos, era empregada doméstica. Ela trabalhava para a dona Glória Meira, esposa do doutor Lúcio Meira, despachante remediado. Dona Glória era baixa, gorda, tinha cabelos longos, esticados e alourados artificialmente. Ela dizia ser morena clara. Parecia se orgulhar de sua imagem. Também nasceu no Rio de Janeiro. Marlene Santos considerava dona Glória uma pessoa muito inteligente. Para ela, toda pessoa rica ou remediada era boa e inteligente. Ela dizia que o marido da dona Glória, Lúcio Meira, e seu filho, Luiz Meira, eram inteligentes. Ela sempre apregoava que a família Meira era maravilhosa.

Adriana Silva ficou muito decepcionada quando conheceu a mãe de José. Ela considerava Marlene Santos mais uma lacaia dos Meiras do que uma empregada doméstica. Ela não podia entender como, em pleno século XX, depois da revolução francesa e da abolição da escravidão e da servidão em todo mundo, ainda existiam pessoas como a Marlene Santos. O cabo Santos também não vivia muito feliz. Ele pressentia que sua esposa não apreciava o seu sucesso como policial. Ele relatou a ela que ia estudar para se tornar sargento e que o coronel Meira o incentivava. Adriana sabia que ele decidiu ser policial por sugestão da mãe do coronel Meira. Esta sugeriu à mãe do José que este abandonasse o curso de magistério e seguisse uma carreira mais profícua, mais lucrativa, como a da polícia. Adriana lembrou-se de seus professores do ensino secundário. Eles eram pobres, porém sábios. Ela e seus colegas aprenderam muito sobre honradez, dignidade com seus professores. Um velho professor de latim ensinou, com simplicidade, a turma a traduzir textos latinos, a ler e gostar de autores latinos e gregos. O professor de História, sempre com a mesma roupa surrada, retirava fatos escondidos nos escaninhos e ensinava quem  foi o papa Alexandre Borgia que dividiu as terras a serem descobertas entre os espanhóis e portugueses, terras ocupadas pelos índios. Um papa corrupto que seria capaz de pregar novamente Jesus Cristo na cruz e vender o próprio deus para o diabo. Além de ensinar fatos históricos exigidos em concursos e exames, esclareceu sobre a verdadeira personalidade de Cristóvão Colombo, dos colonizadores portugueses que se diziam “descobridores do Brasil”. Lembou-se do professor de literatura que sempre se referia à América Latina como América Latrina. A maioria dos estudantes aprendeu muito com esses professores. Até os professores de matemática ensinavam conteúdos de história, filosofia ou de linguagem. Para esses professores, a reflexão sobre as condições de vida na sociedade humana era mais importante do que as preocupações com os jogos do campeonato de futebol ou as viagens interplanetárias. Parece que o José nada aprendeu. Ele não percebeu que as aulas desses professores ensinavam sobre as desigualdades, as injustiças e as misérias no Brasil. Ele insiste em ignorar que a polícia, a justiça, o governo e os políticos vivem e sobrevivem de corrupção desde que os colonizadores portugueses chegaram a essa cidade, trazendo a religião do amor de Cristo e armas para atirarem em quem não aceitasse incondicionalmente tal amor. Ela concluiu que tudo continua do mesmo jeito no Brasil de hoje.   

Adriana soube, pelo noticiário, que o batalhão de polícia invadiu a comunidade da periferia, cometeu arbitrariedades contra a população pobre, trabalhadores, trabalhadoras, jovens, crianças, atirou indiscriminadamente , matando pessoas desarmadas. Tanto o coronel Meira quanto o cabo Santos foram detidos, acusados de atirarem com suas armas.  Adriana imaginou que seu marido cometia crimes graves, pois ele tinha duas armas. Uma era da corporação, a outra tinha numeração raspada. Há muito, ela estranhava o comportamento de seu marido. Toda a vez que ele discutia com ela parecia estar bêbado ou drogado. Ela decidiu abandonar o marido. Foi morar com os seus familiares, os quais, para ela, eram pessoas simples e normais.

O cabo José Santos era suspeito de assassinar um colega policial que não concordava com as suas abordagens discriminatórias contra pessoas pobres da periferia. Era acusado de atirar contra moradores de rua, camponeses sem terra e de surrar uma prostituta. Apesar disso, continuou atuando como policial, pois todos os inquéritos policiais ou administrativos foram estranhamente arquivados. Depois de seis dias de detenção, o cabo José Santos foi libertado mais uma vez. Foi para casa. Não encontrou Adriana e nem as crianças. Sua esposa deixara-lhe um bilhete, comunicando-lhe que queria separar-se dele e que iria viver com sua família, com o Josué e a Josefina, desejava-lhe muitas felicidades como sargento da polícia. José Santos pensou em reagir, em ameaçar sua mulher, forçá-la a voltar para casa. Depois, imaginou que a esposa já tinha conseguido uma medida protetiva. Depois de muito refletir, percebeu que Adriana não precisava de medida protetiva. O pai, os irmãos e as irmãs de Adriana eram sua medida protetiva.

 

Manaus, fevereiro, 2021.